Rodrigo Casarin – Em abril de 1995, o escritor, semiólogo e filósofo italiano Umberto Eco foi convidado pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, para participar de um simpósio que celebrava a libertação da Europa das mão dos nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra. Eco escreveu e leu um texto que chamou de “O Fascismo Eterno”, logo na sequência publicado na The New York Review os Books e depois editado em livro na coletânea “Cinco Escritos Morais”, lançada pela Record no final do século passado.
Já no fim de 2018, a mesma casa reeditou a peça que ganhou um volume apenas para si: o breve e potente “O Fascismo Eterno”. No livreto de 64 páginas, o autor de “O Nome da Rosa” lembra de sua infância acompanhando tanto fascistas e nazistas quanto pessoas que compunham a resistência aos regimes totalitários, numa vida que até então conhecia apenas a realidade bélica. “Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano”, recorda o autor que morreu há dois anos.
Antes de entrar no cerne do livro – como “fascismo”, que adquire variáveis de acordo com épocas e lugares distintos, transformou-se numa denominação que serve para diversos movimentos totalitários -, Eco delineia as principais características do autoritarismo de Benito Mussolini, o ditador italiano. Dentre outros traços, era um sistema baseado em um chefe carismático sem qualquer tipo de filosofia, apenas alguma retórica, no corporativismo, no nacionalismo exacerbado, na junção de exército com milícias, nos privilégios concedidos à Igreja e numa educação que exaltava a violência e o livre mercado.
O grande inimigo de Mussolini e seus capangas era a ameaça comunista que soprava da então União Soviética, motivo suficiente para que criassem “uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir”. O “fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, um alveário de contradições”, constata o autor, que ainda lembra que o partido fascista, por mais que proclamasse uma ruptura do sistema, era bancado por proprietários rurais conservadores, que esperavam, isso sim, uma contrarrevolução.
Brasil ticando os indícios de fascismo
Bem, se já soou o alerta de traços apontados por Eco que podem ser facilmente detectados no atual cenário político brasileiro, a coisa piora quando o autor elenca 14 características típicas daquilo que ele chama de “Ur-Fascismo”, o “fascismo eterno” que dá nome ao texto escrito há mais de 20 anos e que mostra vitalidade e atualidade impressionantes. “Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista”, alerta o italiano antes de elencá-las. Eis algumas delas:
Culto da ação pela ação – ou seja, dispensar qualquer tipo de reflexão e refutar o intelectualismo. “Da declaração atribuída a Goebbels (‘Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola’) ao uso frequente de expressões como ‘porcos intelectuais’, ‘cabeças-ocas’, ‘esnobes radicais’, ‘As universidades são um ninho de comunistas‘, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais” (os destaques são meus).
Origem na frustração individual ou social – “Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos”.
Base no populismo qualitativo – “Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo de TV ou Internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo'” (sim, Eco escreveu isso muitíssimo antes dos grupos de WhatsApp).
Aposta na novilíngua, em referência ao idioma criado pelo governo autoritário de “1984”, clássico de George Orwell – ” Todos os textos escolares nazistas ou fascistas se baseavam em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico” (qualquer semelhança com os memes – e, mais grave, as pessoas que só se “informam” por memes – não é mera coincidência, bem como a busca por uma escola focada na formação de mão de obra para o mercado de trabalho).
Obsessão por conspirações, possivelmente internacionais, mas as ameaças também precisam ser encontradas no interior do país (só penso na propagada ameaça comunista e no tal globalismo que tanto preocupa nosso novo chanceler).
Pacifismo como concluiu com o inimigo – “o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedom: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final, depois da qual o movimento assumirá o controle do mundo. Esta solução final implica uma sucessiva era de paz, uma idade de ouro que contestaria o princípio da guerra permanente”.
No Ur-Fascismo, todos são educados para se tornarem heróis. No entanto, tanto o heroísmo quanto a guerra permanente são, nas palavras de Eco, jogos difíceis de jogar, então:
“O Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz [substituto] fálico: seus jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente”.
Já deu para perceber o quanto os apontamentos de Eco refletem no nosso atual panorama político, certo? Mas os outros indícios de Ur-Fascismo também nos são, em maior ou menor grau, um tanto caros: os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais; desprezo pelos fracos; culto da tradição; a recusa da modernidade; o desacordo é traição – ou seja, não pode haver críticas ao governo; e a exacerbação do medo ao diferente. Como escreveu o alemão Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”, então é bom estarmos sempre atentos – e, neste momento, cada vez mais alertas.
Lembrando-me daquelas discussões sobre se algumas pessoas queridas (uma tia supersimpática que compartilha barbaridades no WhatsApp, por exemplo) poderiam ou não ser fascistas, volto a Eco: “O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: ‘Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!’ Infelizmente, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo”.
https://paginacinco.blogosfera.uol.com.br/2019/01/09/brasil-praticamente-gabarita-tracos-de-fascismo-apontados-por-umberto-eco/
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