Internacional

A China dissidente – parte 1

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Carlos Carujo – Jovens comunistas, a minoria muçulmana, novos pobres urbanos, LGBTQ , feministas, grevistas e sindicalistas. São uma China diferente, tão longe das imagens orientalistas ocidentais quanto dos discursos oficiais.

Um dos mitos persistentes sobre a China apresenta um país em que cada movimento é controlado e onde, por isso, não há margem para qualquer subversão. Outro dos mitos insiste que a civilização oriental é fundada no respeito para com a autoridade e as hierarquias. Tendo a revolução cultural sido a exceção que confirmou a regra, depois dela a paz social autoritária teria sido um regresso à normalidade histórico-cultural.

São mitos que parecem mais preocupados em diabolizar o Partido Comunista Chinês (PCC) do que em compreender o país ou mais fixados numa obsessão culturalista orientalista do que nas dinâmicas reais. Apagam da história quer as milenares revoltas camponesas, quer as revoltas urbanas depois da abertura da China aos mercados internacionais no século XIX, quer as atuais resistências ao poder.

Para compreender a política chinesa hoje é preciso olhar tanto para os inimigos que o poder designa quanto para as resistências que o enfrentam. É preciso olhar para um país feito de micro-resistências desconhecidas fora das suas fronteiras. O esquerda.net apresenta aqui é um retrato muito incompleto dessa outra China: a dos dissidentes, dos inimigos públicos e das classes perigosas.

LGBTQ China

Um episódio. Em maio, duas mulheres foram agredidas na sofisticada zona 798, o bairro artístico da moda de Beijing. Traziam o símbolo do arco-íris porque iam a um evento de comemoração do dia internacional contra a homofobia. Em resposta, a principal rede social chinesa, a Weibo, foi inundada com a hashtag referente a este dia.

Prequela. A mesma Weibo que, em abril, tinha banido quaisquer referências LGBTQ . Enfrentou uma revolta. A hashtag #IamGayfoi visualizada 300 milhões de vezes. Depois disso, até o People’s Daily criticou a rede social afirmando em editorial que “é uma obrigação de uma sociedade justa proteger os direitos das minorias.” E a Weibo recuou.

Spin offs. Nas televisões como nas redes sociais o tema não é pacífico. No final de 2015, a associação de produtores de ficção televisiva baniu qualquer conteúdo LGBTQ considerando-o “vulgar, imoral e não saudável”. Em maio deste ano, quem tenha visto o festival eurovisão da canção a partir da China não viu o mesmo que o resto do mundo. O serviço online que o transmitiu, a Mango TV, editou o evento de forma a excluir a atuação do cantor irlandês, devido ao duo de bailarinos masculinos que constituíam um par amoroso. Também as bandeiras LGBTQ que se viram durante a atuação dos suíços foram desfocadas.

Estes episódios indiciam a ambiguidade da atitude oficial sobre o tema. E a duplicidade da sociedade também: entre violência, preconceito e discriminação e uma resposta militante aberta da contra-cultura e do ativismo queer. A homossexualidade já não é ilegal desde 1997 e foi desclassificada como doença mental em 2001. Mas a discriminação permanece por entre política de “não aprovar, não desaprovar, não promover”. É o “não promover” que deixa a porta aberta a proibições indiscriminadas de eventos.

Tongzhi e Lala. Na linguagem corrente, tongzhi quer dizer camarada. Subterraneamente remete para a identidade gay. Lala só tem genealogia suposta: terá nascido a partir da protagonista da novela Lágrimas de crocodilo de Qiu Miaojin. São códigos e palavras-comunidade. Aponta-se para os anos 90 o momento em que começou a nascer algo como uma “comunidade LGBTQ ”.

Entre vozes isoladas, comunidade online e ONG que se mascaram de defesa da saúde ou de combate ao HIV, são diversas redes. O combate ao HIV traz fundos governamentais e credibilidade mas traz também uma vigilância direta sobre estas organizações. A primeira Conferência Chinesa Tongzhi, em Hong Kong, foi em 1997. O primeiro festival de cinema em 2001. A primeira revista lésbica foi publicada em 2009. Os marcos multiplicam-se tanto que podiam ser outros.

Mulheres não são sobras

A igualdade era uma bandeira. A propaganda inicial da revolução chinesa dizia que o PCC tinha libertado as mulheres da dominação milenar. E, já nesses tempos, o feminismo chinês não era uma novidade histórica. Basta lembrar He-Yin Zhen, autora feminista do início do século XX.

Mas nem por isso as novas feministas deixaram de surpreender quando irromperam pelo espaço público desafiando o moralismo patriarcal colado ao regime, colocando em causa a sua imagem de família tradicional e o papel submisso da mulher que teria uma dívida para saldar à sociedade, obrigada ao casamento e à procriação.

Em 2012, cerca de uma centena de mulheres participava regularmente em performances públicas sobre discriminação no lugar de trabalho e na universidade e abusos sexuais. Usaram, por exemplo, vestidos de noiva ensanguentados no dia dos namorados para chamar a atenção para a violência doméstica.

Em vésperas do 8 de março de 2015, cinco mulheres foram detidas em Beijing sob a acusação de atividades subversivas. Tinham planeado distribuir material de protesto contra o assédio sexual. Tornaram-se um símbolo. Depois de 37 dias de detenção e de pressão social foram libertadas.

Leta Hong Fincher realça este momento como fundador do novo feminismo chinês no livro Betraying Big Brother: The Feminist Awakening in China (Verso, 2018). No seu livro anterior. Leftover Women: The Resurgence of Gender Inequality in China (Zed, 2014) denunciava que o governo empreendeu, a partir de 2007, uma campanha para estigmatizar mulheres solteiras, apostadas na sua carreira, na casa dos vinte e muitos anos. Foram classificadas como mulheres-“resto” e pressionadas socialmente a casar.

As feministas enfrentam outras formas de censura e de pressão. Em maio do ano passado, o jornal oficial People’s Daily avisava sobre a interferência de “forças ocidentais hostis” que usavam o “feminismo ocidental” para desestabilizar o país. E em março deste ano, o site Vozes Feministas, o mais influente site feminista chinês, foi fechado por um mês. Marcadas como inimigas ocidentalizadas ou caricaturadas como “sobras”, tem sobrado às feministas chinesas coragem para enfrentar aquilo que denominam o pensamento patriarcal sustentado pelo PCC.

Já a 1 de janeiro deste ano, uma nova etapa começou: Luo Xixi, ex-estudante de doutoramento da Universidade de Beihang em Beijing, denunciou no Weibo o assédio do seu orientador. 3 milhões viram a denúncia nesse mesmo dia e a investigação subsequente provou a veracidade do caso. Foi o começo do movimento #MeToo à chinesa. A hashtag bem pode ser censurada rotineiramente, como têm acusado as feministas, mas os casos não param de crescer.

Ambiente de micro-protestos

A cultura do protesto está afinal bem enraizada na sociedade chinesa. A todo o momento, conta-se uma miríade de protestos em qualquer ponto do país. Nomeadamente os ambientais fruto da industrialização rápida e desordenada que têm sido os mais vincados e publicitados. Mas também as disputas de terras que opõem camponeses a entidades oficiais ou pais que lutam por melhores condições nas escolas.

Lu Yuyu, que foi preso há dois anos, dedicava-se a contabilizar e a registar no seu blogue e no Twitter estas ocorrências. Nos três anos antes de ser preso contou 70 mil protestos.

Por exemplo, em março de 2017 mais de 800 grupos de chat online foram criados por residentes da cidade de Sihui em Guangdong para organizar a oposição à construção de uma incineradora de detritos. Para além dos novos meios de comunicação, o sistema de petição é tradicionalmente um meio para canalizar denúncias de abusos sobre quadros intermédios do governo ou empresas.

Segundo o jornal The Economist, a diferença entre o consulado de Xi Jinping e os anteriores não está na diminuição de protesto. Pelo contrário, aumentou a sua escala e intensidade. Mas agora apertam-se mais os controlos na internet e assiste-se à prisão de mais trabalhadores de ONGs e de ativistas pelos direitos humanos.

O que implicaria uma alteração no sistema de “autoritarismo regateado” de que falavam Ching Kwan Lee e Yonghong Zhang num estudo de 2013 sobre a forma como o Estado absorve os protestos. Neste estudo mostrava-se que pagar diretamente ou indiretamente era uma estratégia comum de pacificação de protestos. Os municípios dispunham mesmo de fundos de “manutenção da estabilidade” concebidos para este efeito.

Mas a cedência casual ou a repressão não são a única resposta governamental aos protestos ambientais. Foi devido à multiplicação de protestos que o governo tem reforçado campanhas ecológicas ou decidido aplicar multas a empresas poluidoras. Xi fala na criação de uma “civilização ecológica” e de uma “economia verde”. A poluição, a crise ambiental e os protestos fazem parte decisiva deste ecossistema político. A ecologia chegou para ficar na China.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Poder-e-ContraPoder/A-China-dissidente-parte-1/55/42794

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