Suzana C. Petropouleas – Ricardo Coltro Antunes é sociólogo brasileiro e autor de O sentido do trabalho e O novo sindicalismo no Brasil, entre outras obras. Em seu novo livro, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (Boitempo, 2018), discute as novas formas em que o trabalho se apresenta num mundo cada vez mais conectado, desregulamentado e complexo, onde servidão e retrocessos frequentemente confundem-se com privilégios e avanços.
Seu novo livro apresenta as principais tendências da classe trabalhadora hoje. Quais são elas?
A primeira tendência é a monumental digitalização do trabalho online, mas isso não significou um trabalho menos penoso ou a eliminação do trabalho manual. Houve redução do trabalho manual em certas áreas e ampliação em outras. Um exemplo: para que sejam produzidos smartphones, o primeiro trabalho – sem o qual um celular não existe – é o de extração mineral, feito manualmente e um dos mais penosos e mais sofridos de toda a história da classe trabalhadora.
Essa combinação de trabalho online com trabalho manual se deu num contexto de reestruturação produtiva permanente do capital – estamos agora às vésperas da indústria 4.0 – e num processo onde há uma amplificação do neoliberalismo sob hegemonia do capital financeiro. No mundo produtivo e das empresas, significa a vigência de um receituário que é infalível: flexibilização, informalidade, precarização mais acentuada (uma vez que há perda de direitos e corrosão da regulação social) e, agora mais recentemente e de modo muito intenso, a existência de trabalhos intermitentes por exemplo, uma modalidade que foi regulamentada no Brasil com a Reforma Trabalhista de 2017.
Isso criou então um cenário contraditório. Há um mosaico de atividades, desde ultra qualificadas (trabalhos comandados por tecnologias de informação e comunicação, inteligência artificial, internet das coisas etc) até, na base, uma miríade de trabalhos precários e intermitentes que estão nos fast foods, na indústria hoteleira, nos call centers, setores de limpeza e cuidados etc.
E essas são tendências também globais?
Cito exemplos expressivos: na Inglaterra, o que se chamou de “zero hour contract”, no qual os trabalhadores como médicos, advogados, enfermeiros, motoristas, ficam à disposição e, se são chamados, recebem estritamente pelo tempo que trabalharam. Se ficarem 2 ou 3 dias sem receber nenhuma chamada, não são remunerados pelo tempo à espera. São os trabalhos intermitentes ou de ocasião – você tem trabalho hoje, mas pode não ter amanhã. Há uma outra modalidade que vigorou até 2017 na Itália e que foi o trabalho pago por voucher. Contabilizavam-se as horas trabalhadas no voucher – cada um valia uma hora – e eram trocados por um salário mínimo italiano. Em Portugal essa modalidade chamou-se de “recibos verdes” e é um processo que tem se esparramado pelo mundo inteiro, de tal modo que – daí o traço aparentemente contraditório – um alto avanço tecnológico tem coexistido com formas de trabalho tão precarizadas que as chamo em meu livro de formas pautadas por uma escravidão digital.
Como o trabalho digital online e intermitente precariza as condições de trabalho até de profissionais altamente qualificados da área de serviços, como desenvolvedores de TI?
O capitalismo hoje, montado sob plataformas, é uma espécie de proto-forma do capitalismo. Nas empresas hoje onde o trabalho digital é prevalente e dominante, os trabalhadores não têm horas definidas, porque o celular acabou com aquela separação entre vida pública e privada. Têm sempre um sistema de metas mais intensas a cumprir. Não sabem quanto tempo essas empresas vão durar, porque uma unidade dessas empresas pode sofrer uma crise e perda de valor repentina. A imprevisibilidade passou a ser a regra.
Aumentaram os níveis de depressão, suicídios e mortes no trabalho. Posso citar vários exemplos: a FoxCom, na China, em 2010, quando 16 ou 17 operários tentaram suicídio e lamentavelmente alguns conseguiram. A Telecom France, com o processo de privatização, viu mais de 50 suicídios ocorrerem no seu espaço de trabalho. O Japão tem não só o karoshi – que é a morte súbita no trabalho – mas tem o karojisatsu, que é o suicídio no trabalho.
Esses trabalhadores de TI são, no linguajar brasileiro, PJ (pessoa jurídica). Se auto assumem como empreendedores, são autônomos. Não há seguridade porque esses trabalhos estão, muito frequentemente, ao largo da legislação social protetora do trabalho. Esse é o quadro que tipifica as condições do trabalho digital.
Nesse sentido, é claro que é uma precarização diferente da que sofre um mineiro ou uma trabalhadora da indústria hoteleira que tem que arrumar 25 quartos por dia, ou o atendente de fast food. Mas todos eles combinam uma tecnologia que não serve ao trabalho no sentido de torná-lo menos pesado, mas muito frequentemente tem gerado uma intensificação maior dos ritmos, tempos e volume de trabalho, cujas consequências são adoecimentos, acidentes e suicídio.
Quais as perspectivas para o trabalhador brasileiro diante das novas configurações políticas, a reforma trabalhista, a ideia da carteira de trabalho “verde e amarela”?
A reforma trabalhista desfigurou a CLT e impôs o negociado sobre o legislado e restrições muito profundas à Justiça do Trabalho. Posteriormente, o STF deu validade à proposta de terceirização total da sociedade brasileira e, no dia 21 de setembro (há pouco mais de um mês e meio), o governo assinou um decreto que permite a terceirização no setor público. Iniciou-se um processo de devastação e corrosão de tudo o que foi conquistado (como 13º salário e remuneração igual para homens e mulheres) pelo menos desde a greve geral de 1917 no Brasil.
A situação é de tal amplitude hoje, que a ideia da carteira verde e amarela é oficializar uma segunda categoria de trabalhadores que só pode negociar nas condições de aceitarem o trabalho precário. E quando o índice de desemprego diminui, é porque aumentou o trabalho precarizado – e uma precarização que é brutal. Ou seja, quando há emprego e há contratação, é de intermitente, part-time, sem direitos ou numa esfera em que a burla é completa, a tal ponto que hoje há trabalhadores e trabalhadoras – sempre no masculino e feminino, porque a divisão sócio-sexual do trabalho é decisiva e é preciso compreender o papel de ambos-, que muitas vezes recebem um valor que não lhes permite sequer pagar a previdência.
Por isso o senhor define o trabalho, nesse contexto, como um privilégio de servir?
A questão que se coloca é a seguinte: tem futuro uma humanidade como essa? Por isso intitulei meu livro de O privilégio da servidão. Tirei esse título de um fragmento da obra de Albert Camus, O primeiro homem, quando ele, falando dos trabalhadores imigrantes, dizia: “eles só têm férias quando se acidentam e suas empresas têm seguro-saúde”. Completa: “o trabalho deixou de ser uma virtude e tornou-se o privilégio da servidão”. Os jovens de hoje que tiverem sorte serão servos. É a escravidão digital que falei anteriormente: horas de trabalho que levam dias e noites, metas sempre maiores que nos dias anteriores, a ideia de trabalhar e criar para a empresa como se fosse deles – não é por acaso que são “colaboradores”, “parceiros”, “tem que ter resiliência”. É um palavrório que tenta esconder uma realidade do trabalho que é a de conversão do trabalho que é um valor em um não-valor. O capitalismo do nosso tempo, da era informal, digital e financial converteu um valor em um desvalor. Só que o desvalor é vital para criar um outro valor, que dá riqueza às grandes corporações.
Por isso temos esse quadro trágico mundial do trabalho hoje, e o Brasil avança celeremente para um processo não de pauperização ou empobrecimento, mas de miserabilização acentuada da sua força de trabalho. O nível de informalidade hoje ultrapassa 40%. É inaceitável. Para uma população economicamente ativa em torno de 100 milhões, nós estamos à beira de uma tragédia social muito profunda.
Nesse contexto, qual sua leitura sobre greves como a dos caminhoneiros de maio de 2018?
A paralisação dos caminhoneiros há de merecer uma reflexão que será resultado de pesquisas que ainda não temos. É um fenômeno muito recente e marcante, quase um delimitador de mudança de uma era para outra na história social e política brasileira. O que posso antecipar é que teve uma dupla dimensão, entre reivindicações em alguma medida autênticas e uma politização de setores da extrema direita que viram nesse movimento uma forma de dar uma virada à direita ao país. Não é novidade. Os caminhoneiros em muitas partes do mundo – não em todos lugares mas em muitas –, ajudaram a desencadear golpes militares como o do Chile de 1973, entre outros exemplos. Foi uma greve muito canalizada pela extrema-direita porque mostrou um Estado completamente corroído, em processo de putrefação, porque é capaz de qualquer coisa. Isso deu forças para que, num conjunto mundial onde há uma exacerbação da extrema-direita, a greve fosse um dos marcos da miragem que se configurou, meses depois, com as eleições.
Pensando-se no futuro e considerando-se esse cenário de deterioração do trabalho, o que pode ser feito no Brasil para conter os retrocessos que se apresentam como avanços?
Essas reformas têm um desenho global – não foi por acaso que Macron, na França; Temer, no Brasil; e Macri, na Argentina, as fizeram simultaneamente – essencialmente elas têm os mesmos princípios destrutivos do trabalho, e avançam em países em que a resistência é menor. Se você pensar, por exemplo, na reforma da previdência, quando a população percebeu que era muito nefasta, no final do ano passado, se recusou a aceitá-la. Demorou para entender essa reforma porque é muito complexa. Foi montada praticamente sem debate, na calada da noite, por um Congresso que está saindo agora e foi o pior da história republicana brasileira. Tinha-se a ideia de que era uma reforma que traz direitos, mas na verdade ela os subtrai. O desafio então está em passar essas reformas destrutivas por um processo de discussão.
É preciso que haja um processo de resistência. É uma fase muito difícil, porque é uma resistência política, social e econômica num cenário que é muito adverso. Mas a única coisa que temos certeza é que a aceitação dessas medidas será a regressão do Brasil a um nível de miserabilidade muito próximo àquele que encontramos em países como a Índia hoje – que tem uma burguesia riquíssima e uma classe de trabalhadores assalariada ampla que vive em condições abjetas.
Ricardo Antunes: ‘Os jovens de hoje que tiverem sorte serão servos’
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