Renata Cafardo – Essas são algumas das histórias que o Estado ouviu na última semana. Universidades públicas e privadas do País vivem um clima de denuncismo e medo. A reportagem conversou com dezenas de alunos e professores de instituições de vários Estados e constatou o receio da perda da liberdade nos ambientes acadêmicos.
Interferências autorizadas por juízes em universidades na semana anterior à do segundo turno das eleições tornou maior a tensão. Trata-se do reflexo a um dos momentos políticos mais polarizados da história do País. Outro motivo de apreensão para docentes e estudantes é a iminência da aprovação do projeto conhecido como Escola sem Partido, defendido pelo presidente eleito.
“A afronta à autonomia universitária e à liberdade de cátedra não acontece só pela intervenção do Estado ou poder político, como na ditadura militar”, diz o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano de Azevedo Marques Neto. “Isso pode acontecer por meio de grupos que queiram impedir aulas, por exemplo, seja de direita ou esquerda”.
Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) uma lista com cerca de 15 nomes circulou na semana passada, intitulada “Doutrinadores e alunos que serão banidos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas”. Cada professor ou estudante era identificado com insultos específicos, como “comunista antidemocrático”, “socialista que faz apologia do uso de drogas”, “viado” e “feminazi”.
Na mesma instituição, o professor de Filosofia Rodrigo Jungmann, de 52 anos, teve cartazes no estilo “procura-se” pendurado pelo câmpus. “Eles me chamam de fascista e têm a fantasia de que eu quero ser reitor e privatizar a universidade”, disse. “Declarei meu voto ao Bolsonaro, mas nunca fiz campanha nas minhas aulas”. Jungmann chegou a ser impedido de sair da cantina e dar aulas porque alunos o cercaram com ofensas e ameaças de agressão.
A guarda universitária teve de escoltá-lo até em casa. A instituição divulgou nota repudiando o comportamento de ambos os lados e disse que vai comunicar os fatos ao Ministério Público e àPolícia Federal.
“Está muito difícil dar aulas, há pressão para que a gente não fale as coisas que pensa e passamos a ter medo dos alunos”, afirma um professor da Belas Artes, centro universitário particular com cursos de comunicação, artes e arquitetura. Ele não quer ter o nome divulgado por medo de represália. Segundo docentes, a reitoria da instituição declarou apoio ao projeto Escola sem Partido e pediu que não sejam feitos comentários sobre política.
Em texto no site da instituição, o reitor e proprietário da Belas Artes, Paulo Cardim, diz que “é público e notório” e “com crescimento considerável durante o governo petista”, que professores “usam a sala de aula como palanque para as suas pregações ideológicas”. O pró-reitor acadêmico Sydnei Leitediz que a posição do reitor é pessoal e não reflete o que ocorre na faculdade. “Muito pelo contrário, a recomendação é puxar a corda, levar os autores, os pensadores, queremos que os alunos tenham dúvidas.”
O polêmico projeto Escola sem Partido está em discussão em uma comissão especial da Câmara e sua votação vem sendo adiada. Em resumo, ele proíbe que atividades usem os termos gênero ou orientação sexual e que professores digam suas opiniões, preferências ideológicas, religiosas, morais e políticas. O texto afirma ainda que “o poder público não se imiscuirá (intrometerá) no processo de amadurecimento sexual dos alunos”. Se virar lei, as salas de aula do ensino básico ao superior terão cartazes com os deveres do docente.
“Me preocupa dizer que universidade não é lugar de discutir política, se não, vamos discutir aonde?”, diz o diretor do Direito da USP. Para ele, é muito difícil definir o que seria um conteúdo aceitável, segundo a lei. “A ideia do conhecimento neutro já foi demonstrada como falsa. O melhor antídoto para o conhecimento direcionado é a pluralidade.”
O reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Knobel, também se diz “completamente contrário” ao projeto. “Não é possível consolidar as bases de um ambiente acadêmico eficiente sem a garantia do livre debate de ideias, que garantem a todos o direito de assumir e externar livremente suas convicções.”
Redes sociais
Em uma universidade federal do Sudeste, professores que pediram para não serem identificados contam que os conflitos se intensificaram nas redes sociais. Estudantes fotografam a lousa em aulas das quais discordam do conteúdo e divulgam em grupos de WhatsApp, com acusações. Deixam também mensagens no Facebook de professores avisando que farão denúncias caso a “doutrinação” e a “idolatria a anticristãos” continuem. “Nosso temor é que alunos se sintam bem mais à vontade para expressar opiniões preconceituosas”, diz uma docente.
“Meu medo é que não fique só na ameaça”, diz a professora de Biologia do Norte do País cujo aluno afirmou que lhe daria um tiro. Dias antes, houve um debate na turma sobre biodiversidade na Amazônia e a docente chamou a atenção para os planos de governo dos candidatos sobre o assunto. “Mas ele não se manifestou nesse dia. Depois, quando recebeu a prova, me ameaçou e falou de Bolsonaro.”
“Algumas manifestações correspondem um pouco ao que se fazia antes”, diz o sociólogo e professor da USP Brasilio Sallum, referindo-se ao período da Ditadura Militar. Sallum era aluno da instituição quando colegas foram presos e 24 professores foram compulsoriamente aposentados, em 1969. A decisão partiu do comando militar após o Ato Institucional Nº 5, que suspendeu garantias constitucionais e foi assinado por um ex-professor da USP, o então ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva.
Entre os colegas cassados, estavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o sociólogo Florestan Fernandes e o próprio então reitor da USP, Helio Lourenço, que havia reclamado da medida. “Há temores, um clima de suspeita de que coisas arbitrárias virão, mas acho difícil. As estruturas estão muito consolidadas na universidade.”
Pesquisadores de gênero temem boicote de verbas
Professores e pesquisadores de áreas como gênero e sexualidade se preocupam com a diminuição de verbas para pesquisas. Agências federais são as grandes financiadoras da Ciência no País. “O que nos assusta é a falta de conhecimento básico, reduzir gênero a uma ideologia simplista. Pesquisamos situações de mulheres na sociedade, sexualidade, bullying”, diz a professora de uma universidade pública do Rio, que pediu anonimato.
Os estudos de gênero existem desde a década de 70, são reconhecidos como uma área importante da sociologia e têm crescido. Segundo outra pesquisadora, falar de gênero na escola significa ensinar as crianças a identificar uma violência sexual e respeitar umas as outras a despeito da diversidade. “Não se combate a pedofilia jogando a discussão sobre sexualidade para debaixo do tapete”, diz.
Há ainda temores de menos verbas para Humanas em geral e para a ciência básica. “O governo eleito parece querer favorecer a pesquisa aplicada, que dê mais resultado”, diz um aluno de doutorado em astronomia.
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