David Kaufman – Ao longo dos últimos cinco anos, o autor e historiador israelense Yuval Noah Harari despontou discretamente como um genuíno intelectual pop. Seu livro de 2014, “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, é uma narrativa abrangente da história humana da Idade da Pedra até o século 21. Ridley Scott, que dirigiu “Alien, o Oitavo Passageiro”, está coproduzindo sua adaptação para as telas.
O mais recente livro de Harari, “21 Lições para o Século 21”, é um olhar igualmente ambicioso para questões cruciais que estão moldando as conversas globais contemporâneas, da imigração ao nacionalismo, da mudança climática à inteligência artificial.
Harari falou recentemente sobre os benefícios e riscos da inteligência artificial (IA) e seu potencial de mudar a forma como vivemos, aprendemos e trabalhamos. A conversa foi editada e condensada.
David Kaufman: A IA ainda é tão nova que permanece relativamente não regulada. Isso preocupa você?
Yuval Noah Harari: Não há falta de cenários distópicos nos quais a IA desponta como heroína, mas pode de fato dar errado de muitas formas. E esse é o motivo para a única forma realmente eficaz de regulação da IA ser uma regulação global. Se o mundo entrar em uma corrida armamentista de IA, isso quase certamente assegurará o pior resultado possível.
Kaufman: Apesar da IA ser tão nova, há algum país já à frente na corrida da IA?
Harari: A China foi realmente o primeiro país a tratar a IA em um nível nacional, em termos de um pensamento governamental, focado. Ela foi a primeira a dizer, “precisamos vencer nesta coisa” e com certeza está alguns anos à frente dos Estados Unidos e dos europeus.
Kaufman: Os chineses já conseguiram transformar a IA em arma?
Harari: Todos transformam a IA em arma. Alguns países estão produzindo sistemas autônomos de armas baseados em IA, enquanto outros estão focados em desinformação, propaganda ou bots. Ela assume formas diferentes em diferentes países. Em Israel, por exemplo, temos um dos maiores laboratórios para vigilância por IA do mundo, que se chama Territórios Ocupados. Na verdade, um dos motivos para Israel ser tamanho líder em vigilância por IA se deve ao conflito entre israelenses e palestinos.
Kaufman: Explique isso melhor.
Harari: Parte do motivo da ocupação ser tão bem-sucedida se deve à tecnologia de vigilância por IA e algoritmos de big data (grande volume de dados). Você tem grande investimento em IA (em Israel) porque há grande interesse em tempo real nos resultados, não se trata apenas de um cenário futuro.
Kaufman: A IA supostamente visa tornar a tomada de decisão muito mais fácil. Isso aconteceu?
Harari: A IA permite que você analise mais dados de modo mais eficiente e bem mais rápido, de modo que “deveria” ser capaz de ajudar na tomada de decisões melhores. Mas isso depende da decisão. Se você deseja chegar a uma grande rodoviária, a IA pode ajudar você a encontrar a rota mais fácil. Mas há casos em que alguém, talvez um rival, esteja tentando minar essa tomada de decisão. Por exemplo, quando a decisão envolve a escolha de um governo, há partes que possam estar interessadas em impedir esse processo e torná-lo mais complicado do que era antes.
Kaufman: Há um limite para essa mudança?
Harari: Ora, a IA é apenas tão poderosa quanto os parâmetros por trás dela.
Kaufman: E quem controla os parâmetros?
Harari: A meta da IA não é ser perfeita, porque você pode sempre ajustar os parâmetros. A IA precisa apenas fazer melhor que os seres humanos, o que costuma não ser muito difícil.
Kaufman: Qual continua sendo o maior conceito equivocado a respeito da IA?
Harari: As pessoas confundem inteligência com consciência. Elas esperam que a IA tenha consciência, o que é um erro total. Inteligência é a capacidade de solucionar problemas; consciência é a capacidade de sentir as coisas, dor, ódio, amor, prazer.
Kaufman: As máquinas podem desenvolver consciência?
Harari: Bem, há “especialistas” em filmes de ficção científica que acham que sim, mas não, não há indício de que algum computador em algum lugar esteja a caminho de desenvolver consciência.
Kaufman: Será que iríamos querer computadores com sentimentos?
Harari: De modo geral, não queremos que um computador sinta, queremos que o computador entenda o que sentimos. Veja a medicina. As pessoas gostam de pensar que sempre vamos preferir um médico humano em vez de um médico de IA. Mas um médico de IA poderia ser perfeitamente sob medida para sua personalidade e entender suas emoções, talvez até melhor que sua própria mãe. Tudo isso sem consciência. Não é preciso ter emoções para reconhecer as emoções nos outros.
Kaufman: Então, o que resta que a IA não tenha tocado?
Harari: A curto prazo, ainda há muito. Por ora, a maioria das habilidades que exigem uma combinação entre o cognitivo e o manual está além do alcance da IA. Veja de novo o exemplo da medicina. Se você comparar um médico e uma enfermeira, é bem mais fácil para a IA substituir um médico, que basicamente apenas analisa os dados para diagnósticos e sugere tratamentos. Mas substituir a enfermeira, que injeta os medicamentos e troca os curativos, é bem mais difícil. Mas isso mudará. Estamos realmente no início do potencial pleno da IA.
Kaufman: Então, a revolução da IA é iminente?
Harari: Não exatamente. Não veremos essa disrupção em massa em, digamos, cinco ou dez anos, será mais como uma cascata de disrupções cada vez maiores.
Kaufman: E como isso afetará a força de trabalho?
Harari: A economia terá de enfrentar disrupções cada vez maiores na força de trabalho por causa da IA. E a longo prazo, nenhum elemento do mercado de trabalho estará 100% seguro da IA e da automação. As pessoas precisarão continuamente se reinventar. Isso poderá levar 50 anos, mas no final nada estará seguro.
Kaufman: A IA está forçando as pessoas a se reinventarem. Ela também pode tornar o processo de reinvenção menos assustador?
Harari: A IA pode tornar o processo tanto melhor quanto pior. Pior, porque a própria IA nos força a nos adaptarmos; à medida que a IA se desenvolver, empregos desaparecerão e as pessoas precisarão se adaptar profissionalmente. Por outro lado, a IA pode ajudar a revolucionar e personalizar a educação.
Kaufman: Como isso funcionaria?
Harari: Em vez dos alunos fazerem parte de uma grande tropa educacional processada de modo industrial, você poderia trabalhar com um menor de IA, que não apenas ensina você, mas também estuda você. O mentor então passa a conhecer seus pontos fortes e fracos particulares, pode descobrir se você aprende melhor com palavras ou com imagens, por meio de metáforas espaciais ou temporais. E então prepara um ensino sob medida para você. Aprender novas habilidades pode ser muito difícil depois dos 40 anos. Mas apesar da IA poder forçar as pessoas a se reinventarem, ela poderá ajudá-las a passar por esse processo bem melhor do que qualquer professor humano.
Kaufman: A IA forçou você a se reinventar?
Harari: Bem, escrever sobre IA certamente o fez. Há uma década, eu era um professor anônimo escrevendo sobre história medieval. Hoje, me encontro com jornalistas, políticos e chefes de Estado para falar sobre ciborgues e IA. Com certeza eu precisei me reinventar ao longo do caminho.
https://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2018/10/21/nenhuma-profissao-esta-100-segura-da-inteligencia-artificial-diz-yuval-noah-harari.htm?news=true&skin=conteudo/uol
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