Política

Brasil pode entrar para clube de países que votou para ter menos liberdade

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Fernando Neisser – Enquanto corremos rumo ao precipício, entoando que nossa bandeira jamais será vermelha, não é possível deixar de lembrar de Francis Fukuyama, pensador conservador norte-americano que recentemente tornou-se personagem do debate político nacional. Após ter dito que estava preocupado com os riscos da ascensão de Jair Bolsonaro, foi atacado por seguidores do deputado que acusaram-no de ser, ora veja, comunista.

No longínquo 1992, expandindo um artigo de 1989, Fukuyama publicou sua famosa obra “O fim da história e o último homem”. No estertor da Guerra Fria, o autor vislumbrava que a humanidade talvez houvesse chegado ao ápice do desenvolvimento das formas de governo: a democracia liberal ocidental. Como disse textualmente: “O que podemos estar testemunhando não é apenas o fim da Guerra Fria ou a passagem de um período particular da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final do governo humano”.

Transcorridos mais de 25 anos de seu vaticínio, a propalada democracia liberal ocidental não poderia estar passando perrengue pior. E, em muitos dos casos, isso se deve a decisões dos cidadãos através do voto.

A ascensão da China como superpotência, jamais deixando de lado o autoritarismo de sua organização governamental, pode ter contribuído para que começasse a se desfazer a percepção de que apenas a democracia levaria ao desenvolvimento. Em paralelo, a Rússia deixou de lado qualquer pretensão de copiar o modelo ocidental, embarcando faceira no modelo também autoritário do neoczarismo de Putin. Lá se vão 18 anos do início de seu primeiro mandato, período no qual a perseguição a opositores, o centralismo das decisões econômicas, o combate às minorias e as ações bélicas nas franjas do antigo Império foram se cristalizando.

No mundo islâmico, a primavera passou sem que uma única flor permanecesse viva. Ainda que a quase irrelevante Tunísia lute para se estabelecer, a Líbia segue em guerra civil, o Egito passou às mãos da Irmandade Muçulmana, enquanto a Síria tornou-se o palco da mais ampla guerra tradicional dos últimos anos. Nada se produziu de avanço democrático na Península Arábica, que segue nas mãos das dinastias do Petróleo, agora convivendo com o odioso Estado Islâmico.

A Turquia, que por décadas foi o exemplo de democracia laica em um país de maioria muçulmana, viu a herança de Ataturk erodir-se com o governo de Erdogan. Os expurgos de milhares de servidores públicos e jornalistas e o retorno das prisões políticas, desde 2016, sepultaram as expectativas de uma volta próxima ao mundo democrático.

Deixando de lado as que foram trocadas por novas, na Primavera Árabe, o que restava de ditaduras tradicionais, assim permaneceu. Coreia do Norte, Vietnã, Cuba e uma série de países africanos, para quem “democracia liberal ocidental” é um conceito tão alienígena quanto “Palmeiras campeão mundial”.

Na África, diga-se, o recente influxo de vultosos investimentos chineses, aos quais não se atrela – obviamente – qualquer exigência de democratização, faz crer que as coisas por lá não devem mudar num futuro próximo.

Aqui na vizinhança, a catastrófica experiência venezuelana não merece – ao menos de mim – qualquer afago. Sem meias palavras, uma ditadura que oprime seu povo como tantas outras que a história nos expõe em seu macabro museu.

Nos Estados Unidos, ainda que não se possa – obviamente – falar em ditadura, é certo que houve uma involução. Trump maneja os freios e contrapesos do sistema democrático com a habilidade com que meu filho de três anos pilotaria um helicóptero. E com os mesmos efeitos.

Hungria, Polônia e Armênia caminharam para a extrema direita populista e nacionalista. Religião integrada ao Estado, restrição na liberdade do sistema de Justiça e perseguição aos imigrantes são constantes. Outros países do entorno, como República Checa, Eslováquia e Bulgária, flertam com soluções assemelhadas.

Mesmo na Europa Ocidental, suposto bastião da tal democracia liberal, fissuras largas deixam vazar o chorume do autoritarismo.

Por vias democráticas, a extrema direita xenófoba ingressou em governos do coração da Europa. Itália, Áustria, Bélgica, Suíça, Dinamarca, Finlândia, Letônia, Lituânia e Noruega são exemplos de países nos quais, em pleno 2018, tais discursos são governo ou formam as atuais maiorias parlamentares.

O Brasil não capitaneia o movimento, mas segue o fluxo, caminhando na trilha aberta por outro personagem deste novo mundo de autoritarismos, Rafael Duterte, presidente das Filipinas. Eleito com o discurso de acabar com a criminalidade, especialmente o tráfico de drogas, implantou rapidamente um regime de terror em que grupos de extermínio vagam pelas ruas matando usuários e expondo seus corpos como troféus de uma guerra travada em nome dos ”homens de bem”.

Como não podia deixar de ser, quando o Estado de Direito é largado no canto, opositores políticos de Duterte sofrem o mesmo destino, tendo suas casas invadidas por milícias paramilitares, que sempre dizem ter encontrado entorpecentes, antes de dar a eles o mesmo destino dos milhares de filipinos assassinados.

Naturalmente que a onda que varreu o mundo democrático com soluções autoritárias não foi apenas uma amarga peça pregada pelo destino em Fukuyama, para ensinar-lhe que raramente os oráculos das sociedades têm êxito.

A democracia liberal ocidental não entregou o que foi prometido em seu nome.

O sonho da eterna pujança econômica, aliada à preservação dos direitos das minorias e expansão crescente de serviços públicos de qualidade… não se materializou para parte substancial da população mundial.

Mais do que isso: as tais democracias liberais jogam o jogo da institucionalidade. Atacadas, defendem-se dentro das regras do jogo. Valem-se de tribunais, contraditório, pesquisas científicas.

Do outro lado, as promessas do autoritarismo não têm limites. Não seguem regras, tampouco ligam para as perdas que deixarão no caminho.

A propalada integração da revolução das comunicações serviu também para que a desinformação, levada ao patamar de arma de guerra, chegasse a todos e incitasse ódios sabidos ou ocultos.

Lutar contra esse maremoto autoritário, quando se percebe sua dimensão, parece tão mais difícil quanto necessário.

Deixar o Brasil embarcar neste movimento é abrir as portas da América Latina a esta nova barbárie. Se o péssimo exemplo venezuelano ficou restrito àquele país, um Brasil na extrema direita populista tem o potencial de arrastar seus vizinhos.

É renovar o ciclo autoritário que de tempos em tempos espalha suas sementes de ódio e perseguição em nossas veias abertas.

É saber que as parcas vitórias civilizatórias dos 30 anos de Constituição de 1988 chegaram ao fim.

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