Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi – Série especial de fragmentos do estudo ‘Austeridade e Retrocesso – Impactos da política fiscal no Brasil’.
“Austeridade” não é um termo de origem econômica, a palavra tem origens na filosofia moral e aparece no vocabulário econômico como um neologismo que se apropria da carga moral do termo, especialmente para exaltar o comportamento associado ao rigor, à disciplina, aos sacrifícios, à parcimônia, à prudência, à sobriedade e reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários. O discurso moderno da austeridade ainda carrega essa carga moral e transpõe, sem adequadas mediações, essas supostas virtudes do indivíduo para o plano público, personificando,atribuindo características humanas ao governo.
Segundo Blyth (2017), “o argumento moderno” da austeridade sustenta que, em tempos de crise, as políticas fiscais restritivas (aumento de impostos ou, preferencialmente, redução de gastos) podem ter um efeito expansionista, de aumento do crescimento econômico. Nesse sentido, a austeridade é a política que busca, por meio de um ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos, ajustar a economia e promover o crescimento.
A defesa da austeridade fiscal sustenta que, diante de uma desaceleração econômica e de um aumento da dívida pública, o governo deve realizar um ajuste fiscal, preferencialmente com corte de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria efeitos positivos sobre o crescimento econômico ao melhorar a confiança dos agentes na economia. Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às contas públicas, o governo ganha credibilidade junto aos agentes econômicos e, diante da melhora nas expectativas, a economia passa por uma recuperação decorrente do aumento do investimento dos empresários, do consumo das famílias e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento econômico.
No plano da teoria econômica, esse efeito decorre do pressuposto de que o setor público e o setor privado disputam recursos, ou poupança, e que uma redução do gasto público abre espaço para o investimento privado (Fenômeno conhecido na economia como crowding out). Como argumenta o economista de Chicago John Cochrane (2009), a cada dólar adicional gasto pelo governo é um dólar a menos gasto pelo setor privado, o impulso fiscal pode criar rodovias em vez de fábricas, mas não pode criar os dois. A austeridade expansionista dá um passo adicional nesse argumento ao propor que, dada a maior eficiência do gasto privado, a contração do gasto público gera um aumento ainda maior do gasto privado (o que ficou conhecido como a tese da contração fiscal expansionista).
Esses pressupostos são contrários ao que propõe John M. Keynes, para quem essa disputa por recurso entre o setor privado e o setor público depende do ciclo econômico. Para Keynes é no boom e não na crise que o governo pode cortar gastos (Keynes, 1937), nos casos de excesso de demanda na economia. E o raciocínio do autor é bastante intuitivo: na crise, como os recursos da sociedade estão subempregados, um aumento do gasto público gera crescimento e emprego, enquanto que nos momentos de boom, os gastos públicos teriam efeito menor sobre a atividade econômica, dado que o setor privado estaria atuando de forma expansionista.
Ou seja, quando a economia está aquecida, o corte do investimento em uma obra pública, por exemplo, pode não ter um efeito tão negativo na economia, uma vez que a empresa que seria contratada pelo governo poderá ser contratada por outra pessoa ou empresa privada. Da mesma forma, a redução das transferências sociais pode ter impactos distributivos negativos, mas não necessariamente contracionistas. Já o mesmo não ocorre quando há escassez de demanda, desemprego e excesso de capacidade ociosa na economia: nesse caso, a demanda pública aumenta renda e emprego.
Assim, os efeitos da austeridade podem ser entendidos de forma intuitiva. Gasto e renda são dois lados da mesma moeda, o gasto de alguém é a renda de outra pessoa: quando alguém gasta, alguém recebe. Quando o governo contrai o seu gasto, milhões de pessoas passam a receber menos, o que tem impactos negativos na renda privada.
Quando o governo corta gastos com investimentos destinados a uma obra pública, por exemplo, o efeito é direto sobre a renda e o emprego, uma vez que a empresa que seria contratada deixa de contratar empregados e comprar materiais. Da mesma forma, o corte de gastos em transferências sociais reduz a demanda dos que recebem os benefícios e desacelera o circuito da renda. Dessa forma, é uma falácia pensar o governo independente do resto da economia. Contabilmente, o gasto público é receita do setor privado, assim como a dívida pública é ativo privado e o déficit público é superávit do setor privado. Se no momento de crise o governo buscar superávits, esses se darão às custas dos déficits do setor privado, o que pode não ser saudável para a estabilidade econômica e resultar no chamado “ajuste fiscal autodestrutivo”.
Sendo assim, além de gerar retração econômica, a austeridade ainda pode piorar a situação fiscal. Em uma economia em crise, a austeridade pode gerar um círculo vicioso em que o corte de gastos reduz o crescimento, o que deteriora a arrecadação e piora o resultado fiscal, o que leva a novos cortes de gastos (Figura 1). Ou seja, em um contexto de crise econômica, a austeridade é ainda mais contraproducente e tende a provocar queda no crescimento e aumento da dívida pública, resultado contrário ao que se propõe.
Leia a íntegra do documento aqui.
http://brasildebate.com.br/austeridade-melhora-a-economia/
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