Francesco Perrotta-Bosch – Adensamento populacional poderia levar a melhoras no bairro paulistano.
Os Jardins, bairro de casarões e vias arborizadas, na zona oeste de São Paulo
Achar normal que a maior parte do espaço entre as avenidas Paulista e Faria Lima seja ocupado só por casas grandes é um dos aspectos mais sui generis dos paulistanos.
Numa enorme área entre dois importantes polos de trabalho da metrópole de 12 milhões de habitantes, há um conjunto de cerca de 3.000 residências de alto padrão —isto é, um vazio no mapa paulistano da densidade demográfica, porém um ponto de concentração do PIB na cidade.
O Jardim América começou a ser concebido em 1915 pela Companhia City. Sua inspiração é a “cidade-jardim” idealizada por Ebenezer Howard no livro “Garden Cities of Tomorrow”, de 1898. Ele idealizou um entrecruzamento da cidade com o campo a fim de trazer de volta o bucolismo da paisagem natural para os ambientes urbanos caóticos e poluídos pelas indústrias que apareciam no século 19.
Seguindo esse modelo, São Paulo criou um bairro de ruas sinuosas com abundante vegetação e casas construídas no meio de lotes demarcados por baixas cercas vivas.
O verde predominante no loteamento de cerca de 670 terrenos determinou o sucesso imobiliário do Jardim América no seu lançamento há quase cem anos. Pessoas de toda a cidade iam visitar o bairro-jardim no então extremo oeste da mancha urbana.
A “cidade-jardim” é o precedente do subúrbio americano que definiu a urbanização, a ênfase nas rodovias e o “American way of life”. Em comparação a esses exemplos, a anomalia do caso paulistano se deve ao fato de a cidade ter se espraiado para muito além da rua Groenlândia.
O Jardim América, ao que se somou o Jardim Europa, foi cercado por bairros verticalizados e eixos viários cheios de torres de escritórios e grandes centros comerciais.
Passado um século, os muros foram elevados e passaram a ser de alvenaria. Por trás deles, as casas se tornaram maiores seguindo uma miríade de estilos —o neoclassicismo americano, o ecletismo parisiense, o neocolonialismo brasileiro e vários protomodernistas com volumes geométricos sobre os quais se aplicam múltiplos materiais.
Os projetos de valor arquitetônico são uma minoria. Enquanto isso, câmeras de segurança e guaritas se multiplicam. As calçadas variam de residência para residência, com muita vegetação e pouco espaço para caminhar.
Carros se enfileiram pelas ruas transformadas em contínuos estacionamentos. O tráfego de veículos se entranhou nas suas vias curvas. A ambiência campestre ambicionada na origem foi perdida.
Seguem sendo bairros da elite, mas centenas de lotes contêm placas de venda ou aluguel. Essas construções encalhadas são a raiz do debate que ocorre no Condephaat, órgão estadual de preservação do patrimônio histórico.
Desde 1986, a região dos Jardins é tombada, mantendo a divisão em grandes parcelas de uso residencial tal como o pensado cem anos atrás. Discutem agora a possibilidade de fracionamento das grandes casas em apartamentos —pequenos condomínios multifamiliares— e a divisão dos lotes em terrenos menores.
Essa proposta tem claro viés conciliatório. Mas algumas perguntas precisam ser colocadas. Que interesse deve prevalecer: dos 12 milhões de cidadãos da metrópole ou poucos milhares de proprietários de grandes terrenos no miolo da cidade? E o que está se preservando para além da idílica visada da miríade de copas das árvores avistadas pelo alto? Órgãos de patrimônio histórico deveriam questionar o valor da conservação de um conjunto urbano muito distinto do que era em sua origem. O que realmente está se protegendo com o tombamento dos Jardins?
Entre os dois epicentros econômicos de Nova York, o sul de Manhattan e Midtown, não há bairros de casas. Nem em Paris, Londres ou qualquer exemplo de metrópole de país desenvolvido. O Jardim América e o Jardim Europa se apresentam como retratos da manutenção de privilégios e da desigualdade social do Brasil —é isso que está sendo de fato preservado.
A área entre Paulista e Faria Lima deveria ser uma das mais densas da cidade. Isso não equivale a uma apologia da liberação de edificações altas nem o desmatamento da vasta vegetação no local —os Jardins podem ser vistos como uma reserva para bom urbanismo em São Paulo.
Em vez de plagiar extemporaneamente o ecletismo parisiense nas fachadas beges e no telhado inclinado de chapas metálicas esverdeadas, podia-se copiar a capital francesa na altura máxima dos prédios (não mais do que seis andares) com comércio no térreo e vida na calçada.
Falso é dizer que adensar com edifícios equivaleria ao fim da predominância verde. A combinação é possível, mas demanda bons projetos arquitetônicos e uma legislação urbana que incentive isso.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/09/reduto-de-estetica-duvidosa-jardins-sao-anomalia-urbana.shtml
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