Teoria

O inquietante desprezo pelos encantos da ciência

Tempo de leitura: 6 min

José Sabino – A evolução nos tornou os primatas mais bem preparados para matutar, abstrair e criar. Num piscar de olhos evolutivo, nossos antepassados desceram das árvores, ficaram em pé, dominaram o fogo e construíram ferramentas. A transição da caça e coleta para a agricultura é considerada a ponte decisiva para o incremento da complexidade das sociedades, incluída a consequente sofisticação de ideias e invenções. Com suprimentos – e energia – fartos, passamos a ter mais tempo para o ócio e a inventividade.

Movidos por uma capacidade criadora inexaurível, nossa jornada civilizatória suplantou engenhocas simples e permitiu a criação de armas progressivamente mais poderosas, navios, sextantes, microscópios, vacinas, música sinfônica, leis, eletricidade, alimento desidratado, computadores, antibióticos, post-it, espaçonaves e smartphones. Imagine nossas vidas sem papel higiênico, air-bag ou anestésico.

Seria de se esperar que a era da Internet fulminasse a ignorância humana. Não é bem assim.

Mesmo com a gigantesca quantidade de informação francamente acessível, são cada vez mais ruidosos os focos de negação do conhecimento secular acumulado. Informação de qualidade ao toque dos dedos parece não surtir efeito naqueles que relutam em aceitar avanços do conhecimento, mesmo que “suas ideias não correspondam aos fatos”.

Terra plana, movimento antivacinal, negação da evolução biológica, astrologia, purificação com uso de cristais e toda uma gama de pseudociência marcam o mundo atual, gerando polêmicas nas redes sociais, muitas vezes abastecidas por teorias conspiratórias ou “fake news”. Quantas vezes nos deparamos com pessoas que duvidam que o homem pisou na Lua, que as mudanças climáticas são uma farsa ou que o ataque às Torres Gêmeas em 2001 foi uma ação manipulada pela CIA!

Muito bem… você pode até achar que a ciência é imperfeita e não responde a tudo. E, de fato, não reponde mesmo. Claro que há contradições e paradoxos no desenvolvimento científico. A base teórica que permite escanear detalhadamente o corpo humano com ressonância magnética ou trata um tumor por radioterapia é a mesma que fundamenta a construção de armas termonucleares.

A despeito dessas incoerências, o método científico é a ferramenta mais poderosa que a humanidade já inventou. Pelos critérios da Ciência, proposições – chamadas pelos cientistas de hipóteses – são testadas no processo de questionamento franco e aberto. As boas ideias subsistem e são validadas. Hipóteses que não se sustentam são suplantadas. No mundo da Ciência, nada é dogma ou indiscutível. Usando princípios de lógica, parcimônia, estudos controlados e teste de hipótese, entre outros, chegamos onde chegamos.

Mesmo aqueles que negam os avanços da ciência, usam-na para validar suas ideologias, muitas vezes calcadas em obscurantismo, dogmas ou, pior, preconceitos. As centenas de grupos terraplanistas que proliferam na Internet reforçam tal paradoxo.

Não há problemas se alguém de maneira recreativa consulta o horóscopo, vai a um tarólogo ou toma uma “garrafada” sem os criteriosos testes que validam medicações. Trata-se de uma questão de foro íntimo e representa o direito inalienável à liberdade individual. Tal decisão está, ainda, no âmbito da autodeterminação humana. O problema é quando isso se torna exploração econômica ou se a negação do conhecimento científico coloca em risco a saúde ou bem-estar de terceiros.

Nesse ponto, beira a insanidade um adulto – imunizado – não levar, por exemplo, seu filho para vacinar por “acreditar que a vacina não é eficaz ou pode causar autismo”. Nossos cérebros muitas vezes leem o mundo de modo distorcido, sem fazer relação correta de causa e efeito. No caso das vacinas, em um universo de dois ou três milhões de crianças imunizadas, haverá sempre um percentual populacional que desenvolverá autismo. Contudo, esse transtorno do desenvolvimento não tem relação alguma com a vacinação, sendo sua causa atribuída equivocadamente.

É evidente que há muito a melhorar no processo de alfabetização científica no Brasil. A ideia de como a Ciência funciona por aqui apenas engatinha. A última pesquisa de percepção da ciência pela população brasileira, feita pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, mostrou alguns dados curiosos, outros preocupantes.

Diferentemente do esperado, o interesse pela ciência é alto na população brasileira (61% se dizem interessados ou muito interessados), mas a despeito de reconhecer a importância do tema, grande parte (87%) sequer sabe onde se faz Ciência no Brasil, nem conhece algum cientista brasileiro (94%). O pior indicador, contudo, é que menos de 1% entende como o método científico funciona.

É preciso preencher essa lacuna com informação qualificada e muita divulgação científica. Um esforço combinado de cientistas e jornalistas é uma das ações que ajudaria o país nesse processo de difusão. Parcelas expressivas dos tomadores de decisão ainda não reconhecem os benefícios da Ciência e do quanto a mesma se desenvolveu em nosso País. Quando percorro universidades ou falo com colegas, percebo uma preocupação generalizada em ampliar a compreensão pública sobre a importância da ciência e da tecnologia no Brasil.

Parece desgastada a afirmação que nenhuma nação do mundo moderno se desenvolveu sem investir pesadamente na área, mas não há outro norte. Aqueles países que não o fazem, se tornam apenas fregueses e reprodutores do conhecimento, pagando alto custo pela tecnologia alheia. Os cortes de orçamento das instituições de fomento à pesquisa no Brasil, recorrentes nos últimos cinco ou seis anos, exacerbam esse dilema.

De um lado, cada vez mais as nações desenvolvidas investem em ciência e tecnologia em áreas estratégicas como estudos sobre medicações, envelhecimento, genômica, biomimética, segurança alimentar, energias renováveis, uso racional da água e sustentabilidade. Nos países do G-8, lideranças do sistema financeiro aportam cada vez mais recursos e criam mecanismos aprimorados de investimento em ciência e tecnologia.

No Brasil, não é diferente. Apesar de os recursos terem sido menores que a necessidade, nosso sistema de Ciência e Tecnologia se desenvolveu muito nos últimos 40 anos. Em áreas como exploração de petróleo em águas profundas (COPPE – Petrobrás) e aviação (ITA – Embraer) colhemos frutos consistentes onde houve investimentos e qualificação humana.

Nos estudos da biodiversidade e seu uso sustentável também somos líderes mundiais, com cientistas que figuram entre os mais importantes do planeta.

Finalmente, se quisermos avançar como nação, parece inevitável reconhecermos a ciência e tecnologia como pilares centrais do desenvolvimento. Não temos muitas escolhas. A alternativa seria flertar perigosamente com as trevas e o obscurantismo. Em última instância, isso significaria desprezar a elegância do raciocínio lógico e os inegáveis avanços que o conhecimento científico trouxe para a humanidade. Ou talvez subirmos novamente nas árvores.

Comments (1)

  1. É grave, este analfabetismo científico é muito grave. E me dói mais quando vejo a espécie de picareta que se aproveita desta lacuna para lucrar em cima com produtos e idéias que emprestam termos do jargão científico, que se auto-entitulam em universidades estrangeiras que não existem, e publicam fake papers em fake journals para dar legitimidade à charlatanice. É surpreendente que tais indivíduos possam andar por aí sem serem denunciados e presos.

Comment here