Rafael da Silva Barbosa – Diante do enorme conjunto de gráficos, tabelas, quadros e figuras contidos no Relatório do Banco Mundial (“Um Ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”) fica a pergunta: será que o trabalho possui rigor metodológico compatível ao crivo de uma banca de graduação ou avaliação de revistas científicas nacionais ou internacionais?
Isto porque, ao ler o documento, a constatação não deixa margem para outra interpretação que não seja o baixo rigor científico do relatório. Além da ausência do Anexo Estatístico Metodológico, existe uma quantidade não desprezível de variáveis, definições, classificações e agrupamentos que estão totalmente distorcidas ou mal explicadas. Mesmo sendo um relatório preliminar, pelo valor do gasto em sua produção e as afirmações categóricas contidas no documento, era de se esperar uma exatidão técnico-científico mais elevada. No geral, as conclusões sugerem um trabalho feito de forma atropelada que pouco se atinou a realidade do país.
Para a saúde isto é muito claro. Como é de amplo conhecimento na área, o setor saúde possui particularidades diversas aos demais setores da economia que não foram levadas em consideração pelo banco. A mais importante delas, a força de trabalho, foi totalmente ignorada na avaliação da instituição; ou seja, o principal fator de produção dos serviços da saúde não esteve contemplado nas análises.
De acordo com os dados Conta-Satélite de Saúde do IBGE (2015), a importância do fator trabalho é tão elevada que o seu peso no gasto total é de 70%, estando muito próximo daqueles verificados nos sistemas internacionais desenvolvidos de saúde.
Assim sendo, as especificidades do setor implicam em um padrão de produção muito diverso dos demais setores da economia. Dentre as particularidades mais relevantes, conforme dito anteriormente, a intensidade da mão de obra no setor saúde é o aspecto de maior peso. A partir das estimativas, verifica-se um coeficiente de elasticidade gasto-emprego da saúde de elevado nível: para cada ponto porcentual de aumento do gasto, a estimativa é de 1,9 ponto porcentual de incremento da ocupação (DEDDECA, 2008).
Muito diferente dos outros setores, a tecnologia da saúde é cumulativa e não poupa trabalho vivo. A incorporação tecnológica absorve mão de obra (enquanto outros setores expulsam) e a especialização não eleva a produtividade (enquanto outros setores elevam). Significa dizer que os métodos convencionais de análise da eficiência, principalmente aquele utilizado pelo Banco Mundial, não se enquadram linearmente para a saúde, sendo necessário ajuste para sua adequada utilização.
Dessa forma, em termos internos, a primeira consideração a ser feita sobre os resultados preliminares do Banco Mundial é sobre o modelo de cálculo da eficiência adotado. Segundo Texto para Discussão do IPEA, a metodologia da Análise Envoltória de Dados (Data Envelopment Analysis – DEA) – e as fronteiras estocásticas (stochastic frontiers – SFs) não permitem afirmações categóricas sobre os sistemas de saúde:
“A posição relativa do nosso país (e de outros países) varia bastante em função do modelo de análise, das variáveis consideradas em cada modelo, e da amostra de países utilizada” (MARINHO & et al, p. 1, 2012).
Ou seja, em termos metodológicos, a posição do Banco Mundial em afirmar categoricamente a ineficiência de R$ 22 bilhões de reais no SUS, num cenário conhecido de recursos escassos frente às necessidades da população, é, no mínimo, passível de questionamentos.
Se o Brasil equiparasse a eficiência de todos os municípios aos mais eficientes, o país poderia economizar aproximadamente R$ 22 bilhões, ou 0,3% do PIB, no seu Sistema Único de Saúde (SUS) sem nenhum prejuízo ao nível dos serviços prestados, nem aos resultados de saúde. (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 112).
Este resultado é o efeito da não incorporação de variáveis que expressam adequadamente a realidade do país e do setor. O estudo do Banco Mundial ignora, dentre outras, uma variável central para países de grandes dimensões territoriais como o Brasil. O modelo aplicado não considerou a variável extensão territorial, onde os custos atrelados à distância espacial, como os logísticos, foram negligenciados, sendo que estes afetam a eficiência à luz do modelo utilizado, portanto, necessitando de ponderação. Assim, países como Brasil, Estados Unidos, China, Rússia, Austrália e outros “podem ter a sua avaliação prejudicada em arcabouços metodológicos que não contemplem compensações para esta característica específica” (MARINHO & et al, p. 33, 2012).
A segunda consideração é confirmada por estudos análogos que utilizaram o mesmo modelo do Banco Mundial. No caso de países continentais, a negligência da incorporação da variável não-discricionária “extensão territorial” implica em forte impacto na estimativa da eficiência. Para termos uma ideia, no artigo Avaliação de Eficiência em Sistemas de Saúde a conclusão foi que ao calcular a eficiência sem a variável “extensão territorial”, os sistemas de saúde brasileiro e estadunidense são classificados como baixos em eficiência entre os últimos colocados do ranking; entretanto, ao inserir a variável citada a eficiência dos mesmos sobe para o grupo dos 11 primeiros países mais eficientes.
Em sequência, a terceira impropriedade distorce diretamente os resultados monetários do relatório do Banco Mundial, ao realizar uma análise entre regiões sem considerar as especificidades regionais, comparando estruturas desiguais de oferta de serviços em saúde. Isto causa enorme estranheza, pois é de amplo conhecimento na área que ao longo do território nacional as capacidades instaladas, por exemplo, de Média e Alta Complexidade são diversas, necessitando de ajuste para análise de iguais. Ao comparar realidades totalmente distintas, pode-se sobrevalorizar medidas de eficiência e ineficiência, dando maior peso a estruturas não comparáveis. Assim, incorre-se em considerar o caso do Rio de Janeiro similar ao de Curitiba, ou, da cidade de Teresina em relação a Porto Alegre. Não foi feito uma simples análise de cluster para adequar as estimativas para comparar iguais.
Por último, tem-se o ponto interno ao modelo empregado pelo banco, a atribuição do “ótimo produtivo” de uma rede de saúde extremamente estrangulada amplificou ainda mais as distorções comparativas. A adoção linear do conceito de eficiência pautado no lema: “de fazer mais com menos”, não qualificou os casos virtuosos e viciosos. Ao elencar o caso de “sucesso” por meio da melhor Unidade Tomadora de Decisão (Decision Making Units – DMUs), sem levar em consideração as situações de superutilização da capacidade instalada, o estudo subvalorizou toda a rede do SUS. O Rio de Janeiro é um exemplo: a cidade sofre com superlotação e consequentemente com deseconomias de escala, no entanto, o estudo do Banco Mundial o classificou como um dos mais eficientes (DESID, 2017). A implicação maior é que se o RJ foi classificado como eficiente nessas condições, todo o resto do sistema será classificado com margens consideráveis de ineficiência. Daí as distorções das análises em eficiência e ineficiência do SUS, subvalorizando os gastos em saúde pública.
Para fins do debate foram elencados quatros aspectos centrais as críticas internas do Banco Mundial, todavia, seria importante, também, avaliar outros pontos, tais como:
- Dados apresentados no relatório divergem daqueles publicados pela Conta-Satélite de Saúde, sendo diferente dos dados oficiais do governo;
- Incorporar a variável do gasto líquido per capita em Saúde (renúncia fiscal e ressarcimento), visto que os recursos do SUS extrapolam a sua rede própria de atenção à saúde, vazando, também, para o setor privado;
- A eficiência calculada no modelo deve considerar os critérios de cobertura universal para países continentais.
Em suma, diante do diagnóstico errôneo, é impossível considerar qualquer prognóstico de forma minimamente séria advindo do Banco Mundial.
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