Guilherme Azevedo – A figura de Paulo Sérgio Pinheiro tem algo de Quixote. Magro, alto, cabelos inteiramente grisalhos, lisos, que ora caem de lado, à frente, se desgrenham na fronte junto com o movimento do pensamento, barba branca por fazer. Tem o jeito quixotesco também: algo dramático, teatral, picaresco, meio desajeitado. E sobretudo as ideias, os ideais, sempre elevados. Um homem sonhador e afável.
Eis ele à nossa frente, aos 74 anos de uma vida dedicada à defesa dos chamados direitos humanos, direitos básicos de homens, mulheres, de todo gênero, credo, origem ou cor. Os direitos que todo cidadão deve ter assegurados, mas que sofrem violações tantas vezes graves, aqui no Brasil e no mundo.
Nos últimos 30 anos, pelo menos, não houve grave violação ou ameaça a direito com que não tenha se batido sobre seu cavalo. Uma de suas grandes contribuições foi o Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), que ajudou a fundar em 1987, para produzir dados sobre violência e subsidiar políticas públicas.
Sua intervenção foi também governamental: secretário de Estado dos Direitos Humanos no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (secretaria com status de ministério) e relator dos primeiros programas nacionais de direitos humanos, marcos da consolidação da democracia no Brasil após o período de exceção da ditadura militar (1964-85).
Depois vieram posições nas principais entidades internacionais de arbitragem e paz. Hoje, especificamente, preside a comissão de inquérito da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a guerra na Síria, desde 2011.
Natural do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1944 e morou até 1967, Paulo Sérgio Pinheiro não esconde oposição à intervenção federal com emprego das Forças Armadas no Rio, decretada no dia 16 de fevereiro último. Para ele, é medida eleitoreira e oportunista fadada ao fracasso, com características de apartheid contra a população negra e parda.
“Quando falam em crime organizado na favela, é uma piada, porque os organizadores não estão [ali]. Aqueles são pés de chinelo intermediários, os traficantes moram na Barra ou em Miami”, aponta.
Paulo Sérgio Pinheiro falou com o UOL em seu apartamento nas Perdizes, bairro de classe média alta na zona oeste de São Paulo, na tarde da última sexta-feira (23).
Leia os principais momentos do encontro.
“É uma intervenção oportunista, marqueteira e eleitoreira”
Essa intervenção federal-militar não podia ser mais desastrada, ineficiente e autoritária. Por que desastrada? Porque este é um ano tampão desse governo. E o Rio de Janeiro está longe de ser o estado com maior número de homicídios ou, por exemplo, de mortes pela PM [Polícia Militar], comparativamente em relação à população. É que o Rio é a antiga capital [federal], tem certo mito, então o governo escolheu para fazer essa intervenção federal ali.
É inócua porque não vai ter nenhuma condição de lidar com o crime organizado. Eu vi outras intervenções no Rio com tanque na rua. Não adianta pôr tanque na rua. É para a galera, para fazer de conta que estão fazendo alguma coisa. As Forças Armadas não têm nenhuma competência para lidar com a criminalidade ou a criminalidade organizada.
Por que autoritária? Porque se dá nas comunidades de favela, onde moram os brasileiros de menor renda e quase a maioria afrodescendentes. Então, é um lugar onde estão, segundo as categorias do censo, os pretos e os pardos. E ali 95% dos moradores são gente respeitadora da lei, são cidadãos. Por isso, essa intervenção se articula com o apartheid [segregação social institucionalizada], que é centenário em relação aos morros do Rio, as comunidades, desde que elas foram instaladas.
E você evidentemente não vai fazer [nos bairros ricos] como o Exército começou a fazer [nas comunidades]: fotografia dos consumidores da [avenida] Vieira Souto, do Leblon e da avenida Atlântica [localidades ricas da zona sul carioca]. Ninguém pensa.
Então, a intervenção tem essas características e está fadada ao insucesso. Não vai absolutamente trazer nenhuma melhoria para a segurança pública no Rio e é medida marqueteira até as eleições por um governo que mal tem 6% de aprovação [segundo pesquisa do Datafolha]. E é esperança para a população das comunidades, que vive entre o terror da polícia e do crime mais ou menos organizado.
Porque, quando falam em crime organizado na favela, é uma piada, porque os organizadores não estão [ali]. Aqueles são pés de chinelo intermediários, os traficantes moram na Barra [da Tijuca, bairro rico da zona oeste do Rio] ou em Miami [EUA]. Sim, são quadrilhas armadíssimas agora, mas chamar aquilo de crime organizado é um exagero. Na verdade, têm um nível de organização muito limitado e impondo pelas armas o terror às populações.
Tudo isso é, como se dizia antigamente, para inglês ver
Paulo Sérgio Pinheiro
O que ocorre, e eu li pesquisas, é que 75% da população do Rio aprova. Bom, aprova porque há desespero grande em relação à criminalidade, ao estado dos homicídios, e é natural que a população espere que uma intervenção com esse teor possa ter efeito positivo. Mas não vai ter. É uma intervenção oportunista, marqueteira e eleitoreira.
“Infiltração é o que funciona”
Nenhum choque ou guerra funciona. O que funciona: infiltração dentro da lei. Você tem que se infiltrar nessas organizações. E não é muito difícil de se infiltrar nessas organizaçõezinhas de pés de chinelo. É preciso tempo, dedicação. Em segundo lugar, para onde vai esse dinheiro [do tráfico de drogas e de armas]? Onde é lavado? É lavado nas praças do Rio e de São Paulo. Com Miami [EUA], são os maiores centros lavadores de dinheiro nas Américas. Há utilização de empresas de ônibus, lavanderias. Tudo isso dá para lavar. Mas o combate a isso não se faz.
É preciso uma investigação nos bancos que estão lavando dinheiro. Lavando sem nenhum incômodo
Paulo Sérgio Pinheiro
“População precisa participar”
Por outro lado, a política não pode ser só uma política imposta. Tem de ser de participação da população. Esses governos tomam decisões e não consultam. Os Consegs [grupos de cidadãos do mesmo bairro ou município que discutem e apoiam políticas de segurança pública], por exemplo, aqui em São Paulo, foram muito iniciais no governo Franco Montoro [governador paulista entre 1983 e 1987 e um dos fundadores do PSDB] e são uma ótima iniciativa, mas muito limitados da sua participação e papel.
Além da polícia, para você desbaratar essas quadrilhas, precisa também andar de mãos dadas com o Ministério Público, com o sistema judicial. E também política penitenciária. Dos 726 mil presos no Brasil, 292 mil não têm processos [presos sem condenação, conforme dados do Ministério da Justiça relativos a junho de 2016, os mais recentes]. Hoje o sistema penitenciário no Brasil é o alimentador do PCC [Primeiro Comando da Capital] e das quadrilhas ligadas ao tráfico.
“Marielle era extraordinária”
Esse fenômeno da Marielle [Franco, vereadora do PSOL assassinada no dia 14 de março, no Rio] é extraordinário. Em Genebra [na Suíça, onde fica a sede do órgão da ONU que investiga a guerra na Síria], eu lia muito os discursos dela e estava impressionadíssimo. Numa política de brancos, é uma coisa extraordinária ter uma mulher negra e o apoio que com sua ação ela teve.
Eu adoro o Brasil, mas execro efetivamente tudo em torno da segregação, execro esse Brasil discriminatório, elitista, racista, concentrador de renda, que transforma os adolescentes e jovens em monstros a ser abatidos. Mas há um Brasil bom.
“Campo democrático falhou ao não defender Dilma”
Acho que foi ilusão nossa achar que estivéssemos numa viagem em velocidade de cruzeiro. Que a gente só avançava. O impeachment da Dilma foi para mim um choque muito grave. A gente caiu do quarto andar. Mas as coisas já estavam em preparo, e a gente descuidou. As forças democráticas descuidaram da defesa do governo Dilma. Várias políticas dela foram submetidas a críticas de um campo democrático que a enfraqueceram. Se o campo democrático tivesse sido mais tolerante, de compreensão mais sofisticada dos desafios que ela estava enfrentando, acho que o impeachment não teria sido possível. Mas agora não dá para ficar chorando o leite derramado, houve o impeachment e vamos em frente.
Machismo contra Dilma
Estava muito presente no governo Dilma o machismo brasileiro. Ela foi sacrificada não só por um golpe, mas também por uma visão machista dos políticos brasileiros de todos os partidos. Ela pagou esse preço. A forma como os deputados a tratavam, os ministros, mandando beijinho, e ela dizia: “Sou avó, me respeita”.
Dilma foi execrada porque era mulher
Paulo Sérgio Pinheiro
Claro, esses mitos, de que não era simpática, isso era uma personalidade própria, e uma mulher enfrentando todos esses cleptocratas fisiológicos [que fazem parte de um governo de ladrões e corruptos] realmente não foi fácil. Foi um grande momento ter uma mulher presidente.
“Não sou politicamente confiável: gosto do Lula e do FHC”
Nesses governos [dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, e Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010], eu só me meti em direitos humanos. Nunca fiz política partidária. Até já fiz a piada: “Eu não sou confiável politicamente”. Porque todo mundo é definido, não é? Ou odeia o Lula ou odeia o Fernando Henrique. Isso não funciona para mim, eu gosto dos dois. E justamente quando o Lula foi derrotado [na eleição de 1994 por FHC], de certa maneira aquilo que eu tinha preparado no governo paralelo [ele colaborou com a formulação de propostas de governo de Lula] ajudou o que fiz no governo Fernando Henrique [como secretário de Estado de Direitos Humanos, entre 2001 e 2003, e relator dos dois primeiros programas nacionais de direitos humanos do Brasil, grandes marcos da democracia]. Na verdade, os dois [FHC e Lula] se dão magnificamente. Os dois, se encontrando, parecem velhos colegas.
Para mim, a qualidade básica é FHC e Lula não precisarem ser convencidos sobre as políticas de direitos humanos
Paulo Sérgio Pinheiro
O Fernando Henrique, por exemplo, reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica. Isso é o sistema OEA. A decisão foi dele, pessoal, não dos ministros. Graças a isso, nós temos a sentença contra o Brasil da Guerrilha do Araguaia [movimento contra a ditadura militar que aconteceu entre 1967 e 1974 e acabou massacrado com violência e mortes pelas Forças Armadas]. O que a corte diz é que essa anistia do Brasil é nula. O Lula, por exemplo, assumiu o projeto contra o castigo físico de crianças e assinou o projeto sem mudar nada.
Então, meu bom relacionamento com o Fernando Henrique, o Lula e a Dilma são baseados fundamentalmente na política dos direitos humanos.
“Não vejo risco de uma guerra mundial”
As guerras localizadas continuam sendo o problema dos séculos 20 e 21. Essas fricções entre a Rússia e os Estados Unidos e entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte não são risco [de um conflito mundial], eu não vejo esse risco. É errôneo achar que dessas guerras regionais vai se passar para uma outra etapa. Nada disso.
[Entretanto] Há uma situação problemática, difícil: tanto a Federação Russa [com o presidente Vladimir Putin] quanto o [Donald] Trump querendo modernizar os armamentos nucleares. Isso é perigoso. Mas daí a ter a guerra acho que não. Tem muito controle à volta do Trump. Eu nem penso nisso. Desde 1995 estou metido nisso, não vejo [chance].
As faíscas que detonaram a primeira e a segunda grandes guerras [1914-18; e 1939-45] não estão mais presentes. Os colonialismos terminaram. O único colonialismo hoje é de Israel em Gaza e na Cisjordânia.
Síria: “Minha posição é estritamente imparcial”
A minha tarefa [como presidente da comissão da ONU que investiga a guerra na Síria] é basicamente documentação. Eu tenho uma equipe de 30 pessoas em Genebra. Já falei no Conselho de Direitos Humanos [da ONU] 23 vezes e tenho dezenas de relatórios. Eu não posso entrar na Síria, porque não me deixam. Só entrei uma vez. [Os documentos] São feitos com base em entrevistas com refugiados na região, na Europa ou com pessoal que fica dentro da Síria e sai para falar conosco.
A minha posição é estritamente imparcial. Não tomo partido nem do lado do Assad [Bashar al-Assad, o ditador] nem dos grupos rebeldes. Jamais. Trato de violações de direitos humanos, crimes de guerra e contra a humanidade dos dois lados.
“Interesses tão divergentes dificultam negociação”
Uma das explicações [para a demora na resolução do conflito e assinatura de acordo de paz] é que os países que financiam a guerra não estão envolvidos nela. Não têm “boots on the ground” [em inglês, tropas atuando no local, no campo de batalha]. Não é nem a população nem são os soldados [dos países interessados]. E tem recurso. Então você despeja armas, recursos e… [Paulo Sérgio Pinheiro esfrega as mãos como se as lavasse].
É uma guerra contra a população síria
Paulo Sérgio Pinheiro
Mas não é contra a população desses países todos que estão envolvidos. Depois, por causa da velha competição entre as monarquias do golfo [Pérsico] e o pan-arabismo do tempo do [[Gamal Abdel] Nasser [(1918-70), presidente do Egito que defendeu a união de todos os países de maioria muçulmana, contra o avanço da influência ocidental]. A Síria e o Egito, em certo momento, estiveram unidos sob o presidente Nasser [entre 1958 e 1970, sob o nome de República Árabe Unida]. É um velho conflito.
O terceiro, hoje o mais atual, é o conflito entre os sunitas e os xiitas. Basicamente, a oposição é sunita e a situação, xiita. Quem vai dominar? Arábia Saudita ou Irã? Isso complica muito. E complica mais a divisão dentro dos cinco membros permanentes da ONU [do Conselho de Segurança]. O P3, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos; e depois, do outro lado, a China e a Federação Russa.
Quer dizer, é difícil colocar esses interesses tão divergentes numa mesa de negociação. E por isso a guerra dura. Estamos no oitavo ano [o regime de Bashar al-Assad conta com apoio oficial da Federação Russa, do Hezbollah (organização fundamentalista xiita sediada no Líbano) e de combatentes iranianos].
“Arco democrático precisa se unir contra extrema-direita”
Em relação ao Brasil, primeiro, a perspectiva melhor é que as eleições de 2018 ocorram na sua normalidade, quer dizer, dentro das regras atuais. Que não se inventem um presidencialismo limitado, ou semiparlamentarismo. Se todos esses casuísmos já não acontecerem, é progresso.
O segundo é que seria adequado que o candidato mais bem colocado nas pesquisas não fosse alijado da contestação [Lula, condenado pela Justiça Federal em segunda instância e, em tese, suspenso da eleição por causa da Lei da Ficha Limpa]. E terceiro, [o fim da] intolerância política. Isso não pertence ao Brasil. Sem cair nos mitos da cordialidade, acho que esse período democrático foi de maior tolerância [Paulo Sérgio Pinheiro se refere ao período entre 1985, com o fim da ditadura, e o impeachment de Dilma em 2016. Para ele, foi o mais profundo período democrático da história da República brasileira].
Especialmente este ano, o campo democrático precisa se unir, quer dizer, todas aquelas forças que apoiavam os direitos humanos que estão no PT e no PSDB precisam estar unidas diante das ameaças da extrema-direita. Com base num denominador comum. Por exemplo, da luta contra a desigualdade, o racismo, [a favor do] aumento dos programas sociais para os mais pobres, melhores soluções para lutar contra a violência criminal etc.
Eu vi horrorizado algumas “t-shirts” [camisetas] com a cabeça do Lula decapitado. É realmente um sinal inquietante desse progresso da extrema-direita. Todo o arco democrático da centro-esquerda até a centro-direita precisa estar em diálogo permanente, especialmente nesse período eleitoral. Deve haver espécie de pacto de não agressão pessoal entre os candidatos justamente para sermos mais eficazes na resistência.
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/03/30/entrevista-paulo-sergio-pinheiro.htm
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