Matheus Pichonelli – Um dos momentos mais lamentáveis do fim da minha adolescência foi quando, com as malas nas costas rumo a São Paulo, uma vizinha, até então admirada por falar várias línguas e ter o apartamento forrado de livros, me disse que adorava a capital paulista, o que estragava era a quantidade de nordestinos para “emporcalhar a cidade”. Argumento parecido ouvi de um delegado amigo da família, para quem a “mistura” de migrantes e imigrantes explicava o estado de abandono e violência da cidade.
Outro, entendido das leis, me confessou certa vez ao pé do ouvido: a Constituição brasileira, que em seu artigo 5º diz sermos todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, era “populista”.
Cada declaração dessas nas rodas de conversa privada da família era uma punhalada nos fundadores do Iluminismo que, ao fim da Idade Moderna, acreditavam que a razão seria fonte de autoridade e legitimidade para a instauração da liberdade, da tolerância e da fraternidade.
A experiência da Alemanha nazista bastaria para dissolver qualquer esperança, mas ainda assim doía ver estudiosos proferindo sentenças sem qualquer razão ou embasamento na realidade. A eles não faltava estudo, prestígio social ou oportunidade. Faltava, possivelmente, vivência, sujeira na sola dos sapatos, convívio com diferenças, disposição para ouvir desconhecidos, aceitar contrapontos, colocar as certezas sob risco; faltava, enfim, uma lufada fora da bolha para perceber que nem tudo o que se fala merece aplauso, menção ou título de distinção. Que o contato com o outro é um exercício contínuo de despertencimento: com ele jogamos as convicções ao chão e seguimos, mudando e (nos) transformando.
Da escola até a universidade, é possível compreender o funcionamento dos planetas, das células, mitocôndrias e até de naves espaciais, mas nem sempre há espaço para discutir cidadania, esse palavrão que de um tempo pra cá virou papo de comunista.
Anos depois, na formatura de uma turma de Odontologia, ouvi nos discursos de professores e coordenadores as congratulações para estudantes que, uma vez formados, se tornavam 0,00001% de uma casta da população a conquistar tal distinção. Chegava a gritar a ausência de qualquer menção a um país de banguelas, e dos desafios à frente dos formandos para reduzir, dali em diante, o déficit de dentes na boca dos outros 99,9999% de brasileiros.
Pensava, e talvez estivesse enganado, que a serventia da ciência, seja ela humana, biológica ou exata, estava justamente em transformar realidades. “Amar e mudar as coisas”, dizia a música que nos embalava (Belchior, você faz falta).
Mas neste país de desigualdade latente basta ousar dizer em voz alta nos grupos mais esclarecidos que é preciso ampliar os portões do acesso às cadeiras cativas da universidade para assistir doutores polidos se transformarem em besta-fera.
A verdade, dura, é que instrução e autoridade são muitas vezes usadas para referendar diferenças, hierarquias, escalas de prestígio. Para tudo permanecer como está, basicamente.
É o que se percebe quando figuras como a desembargadora Marília Castro Neves, a quem não faltaram oportunidades e acesso ao conhecimento, manifesta tão cruamente o que pensa do mundo fora (espera-se) dos autos. Ela deveria ser a primeira a desconfiar da corrente mal intencionada baseada no boato, sem qualquer fundamento, de que a vereadora assassinada Marielle Franco estava envolvida com o tráfico. A vontade de encontrar uma justificativa para os quatro tiros que a atingiram talvez falasse mais alto do que qualquer evidência, para não dizer empatia. Sua conduta agora será apurada pelo Conselho Nacional de Justiça. Lá, espera-se, ela terá chance de se defender, algo que Marielle não teve.
Pouco depois, outras declarações polêmicas da desembargadora vieram à tona: para ela, Lei Maria da Penha é “politicamente correta” e “covardemente utilizada contra o homem nas relações conjugais”. No Brasil, vale lembrar, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Ela também questionou o conceito de “minorias” para se referir à maioria numérica da população formada por mulheres e atribuiu as mobilizações contra o assédio à falta de pia para lavar ou bandeira realmente importante para lutar.
A magistrada ainda usou as redes para ironizar a notícia de que o Brasil se tornara o primeiro país a ter uma professora com Síndrome de Down. “O que será que essa professora ensina a quem??? Esperem um momento que vou ali me matar e já volto, tá?”. Stephen Hawking, portador de esclerose lateral amiotrófica, talvez não merecesse um minuto de sua atenção caso se cruzassem nos corredores do tribunal ou da escola. (em tempo: a resposta da professora é um diamante para tempos obtusos).
Como escreveu uma amiga em sua página no Facebook, adoraria que isso fosse Fake News. Mas não. A magistrada, como meus distintos vizinhos da adolescência, é só o lado perverso da nossa ignorância instruída e diplomada, a pior que existe, por não ter a desculpa de desconhecer, no ideal de justiça, seu potencial de transformação.
https://matheuspichonelli.blogosfera.uol.com.br/2018/03/21/desembargadora-que-difamou-marielle-e-a-cara-da-nossa-ignorancia-diplomada/
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