André Singer – Cidadã que escolheu o caminho institucional democrático terminou sumariamente eliminada.
O assassinato de Marielle Franco (PSOL-RJ) representa o fracasso da minha geração. Quando a vereadora estava nascendo, nós apostávamos as fichas em que a democratização do país aboliria a violência política do solo brasileiro. Mais do que isso: saindo do regime militar, em que a tortura se convertera em orientação de Estado, nos organizamos para que os direitos humanos fossem o centro da nova democracia.
O homicídio que vitimou a parlamentar mostra que nem uma coisa nem outra vingou. Embora não se saiba ao certo quem e por que a matou, os indícios apontam na direção de calar uma ativista a favor dos pobres, das mulheres e dos negros em uma das regiões mais modernas do Brasil.
Uma cidadã que escolheu o caminho institucional democrático, e nele foi bem-sucedida, terminou sumariamente eliminada pela ação violenta dos que são, na prática, contra a democracia.
Marielle atuava na defesa da juventude que vive nas comunidades do Rio. Uma semana atrás, publicara um texto numa rede social denunciando que “dois jovens foram mortos e jogados em um valão”.
O morticínio de meninos e meninas no Brasil é tão grave que, desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei (2438) para instituir o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens.
Marielle no complexo da Maré e a peça legislativa em Brasília evidenciam dois aspectos contraditórios da realidade nacional.
Do lado positivo, a persistência da mobilização em favor dos direitos humanos que, iniciada ainda nos interstícios da ditadura, prossegue décadas depois da redemocratização. Novas gerações, que Marielle representava bem, tomaram para si as bandeiras levantadas pelos pais e avós.
Do lado negativo, estatísticas recentes atestam a permanência do fosso que nos separa das nações adiantadas. Segundo a Unicef, o Brasil teve uma taxa de 59 mortes violentas de crianças e adolescentes (10 a 19 anos) para cada 100 mil em 2015 —a sétima maior do mundo. Na Europa ocidental, no mesmo ano, o índice foi de 0,4 para cada 100 mil.
Em suma, a luta continua, porém com resultados tímidos. Pior, o clima geral regressivo, de que o atentado fatal contra Marielle faz parte, ameaça a democracia desde diversas frentes. Será necessário reorganizar a sociedade por baixo, como se fez após 1964, para reabrir as amplas avenidas democráticas.
Ninguém desistirá, mas é realista constatar que a tarefa era mais exigente do que parecia nos idos de 1980. Sabia-se que a formação brasileira envolvia extrema crueldade. Minha geração não foi capaz de superá-la.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2018/03/assassinato-de-marielle-representa-o-fracasso-da-democracia.shtml
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