Luiza Sansão – “Vivenciamos 108 dias de tiroteios na Maré em 2017. Como essa população que vive, que dorme e acorda aqui, consegue manter sua sanidade mental?”, questiona coordenadora do eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da ONG Redes da Maré, que atende vítimas de violência de Estado no conjunto de favelas do Rio de Janeiro.
O conjunto de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, viveu uma operação policial a cada nove dias, em média, totalizando 41 operações no ano de 2017. Também a cada nove dias, uma pessoa, em média, morreu em decorrência de confrontos armados, um total de 42 vítimas. Destas, 90% eram do sexo masculino, 78% tinham idades entre 15 e 29 anos, e 88% eram pretos e pardos. Outras 57 pessoas foram feridas por armas de fogo, sendo 41 em operações policiais e 16 em confrontos de grupos armados.
Os dados são da Organização Não Governamental Redes da Maré, que publicou, nesta terça-feira 06/02), seu Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2017 — documento que está em sua segunda edição e resulta do acompanhamento das situações de violência nas 16 favelas da Maré pelo eixo de trabalho Segurança Pública e Acesso à Justiça.
Segundo a coordenadora executiva do eixo, Lidiane Malanquini, em 2016 o boletim sistematizou somente os dados relacionados a operações policiais, porque confrontos entre grupos civis armados não eram tão frequentes. De fevereiro do ano passado em diante, a incidência desse tipo de conflito aumentou abruptamente, motivo pelo qual a ONG incluiu a análise desses dados no documento.
“O número de homicídios de 2016 para 2017 mais do que dobrou e é nítido que os dados da Maré repetem a tendência brasileira: quem está morrendo são jovens do sexo masculino negros. E, ao mesmo tempo, existe, para além dos homicídios, uma série de violações que de alguma forma não são tão visíveis”, afirma Malanquini.
“Vivenciamos 108 dias de tiroteios na Maré em 2017. Como essa população que vive na Maré, que dorme e acorda aqui, consegue manter sua sanidade mental, a sua rotina, acessar direitos?”, questiona Malanquini
Há ainda os prejuízos que não podem ser expressos em números, como os transtornos psicológicos sofridos por moradores que vivem, cotidianamente, sob o medo de que seus filhos e entes queridos sejam atingidos por disparos de armas de fogo durante operações policiais.
“Se essa violência letal atinge diretamente o homem jovem negro da favela, há um grupo imenso de mulheres negras que são mães, viúvas, tias, avós, que estão sofrendo os impactos desta violência e não entram na estatística. Nós atendemos inúmeras mulheres com diferentes transtornos, desde transtornos psíquicos até consequências físicas. Mulheres que vêm desenvolvendo algum tipo de doença física ou mental por conta dessas violências que vêm acontecendo na Maré”, diz Malanquini.
Além de amparar emocionalmente moradores do conjunto de favelas em situações difíceis, como a perda de familiares e amigos mortos por policiais, o eixo de Segurança Pública da Redes da Maré presta orientação jurídica aos moradores vítimas de violações de direitos por parte de agentes do Estado. Os atendimentos se dão na sede da ONG e em plantões realizados durante operações policiais, quando integrantes da organização circulam pelas favelas colhendo informações. A própria sede da ONG, localizada na favela Nova Holanda, foi invadida por PMs em dezembro de 2016 — como mostra matéria que produzi na época.
Página Maré Vive, que a postou com a seguinte legenda em 2015: “Hoje não saiu o sol, operação derramando sangue pelas ruas, cancelou mais uma vez as aulas das crianças. E limpar o sangue da porta tem sido algo rotineiro”
“Como se vê, os dados sobre a violência letal na Maré confirmam o fato de que o Estado considera, com a complacência de parte da sociedade, as favelas como espaços que não pertencem à cidade, onde as garantias legais e o reconhecimento de direitos básicos ficam suspensos, incluindo-se, nesse caso, o direito à segurança e a vida”, critica o documento, que pode ser acessado na íntegra aqui.
Nas operações, agentes das forças de segurança pública do Estado praticam diversos tipos de violações, como invasões de domicílio sem mandados judiciais, subtração de pertences de moradores, danos a automóveis e outros objetos, cárcere privado, assédios sexuais e ferimentos por arma de fogo, além de torturas e homicídios. Veja o gráfico com os tipos de casos a partir dos atendimentos realizados pela Redes da Maré em 2017:
De acordo com o boletim, as unidades policiais mais presentes nas incursões são o Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope) — que participa de 49% das operações realizadas na Maré —, e o Batalhão de Choque da PM (BPChq) — presente em 34% das operações. Na sequência, há a participação do Batalhão de Ações com Cães (BAC) em 29% dos casos, e da Coordenadoria de Operações Policiais da Polícia Civil (CORE), em 22%.
As favelas onde mais houve operações no ano passado são Nova Holanda e Parque Maré (ambas com 56%); Parque União (46%) e Rubens Vaz (46%), seguidas da Vila do João (24%) e Salsa e Merengue (22%).
Crianças e adolescentes têm a educação diretamente afetada pelas operações
Outros prejuízos para os moradores do conjunto de favelas foram os 45 dias com atividades suspensas nos postos de saúde locais e os 35 dias com escolas fechadas — 17% do período letivo do ano.
“Se a gente continuar repetindo essa tendência nos próximos 14 anos, que é quando se encerra um ciclo escolar, um aluno da Maré terá dois anos e meio a menos de aula do que qualquer aluno de outra parte da cidade. Isso é muito grave. Compromete o desenvolvimento, não só físico e psíquico, mas educacional, ou seja, as possibilidades que essas crianças e adolescentes poderão ter ao longo da vida. Como um aluno com dois anos e meio a menos de aula consegue acessar uma universidade pública?”, questiona Malanquini.
Contribuição se para pensar uma política de segurança calcada no respeito dos direitos humanos
O boletim da Redes da Maré tem o intuito não apenas de divulgar e analisar dados relacionados ao impacto da atual política de segurança sobre a população favelada, mas de contribuir para a elaboração de um outro modelo de segurança pública, que leve em conta o absoluto respeito aos direitos humanos e não criminalize moradores de periferias.
“A divulgação desses dados pode contribuir para a reflexão sobre os efeitos dessas ações sobre a vida das moradoras e moradores de favelas e periferias e, também, do conjunto da população do estado do Rio de Janeiro. É preciso criar uma política de segurança pública que tenha como pressuposto a garantia desses direitos para todas as cidadãs e cidadãos do estado, independentemente do local onde residam. É fundamental, ainda, que, de forma direta, seja banido o uso da força e da violência como principal recurso no enfrentamento da problemática que envolve grupos armados dentro das favelas”, diz o documento.
Caveirão circula pela Rua Brasília, na favela Parque União, Maré
Ações da polícia na Maré são alvo de plano contra violações de direitos
Em junho do ano passado, uma decisão inédita da Justiça emitida cobrou mudanças na forma como as polícias atuam na Maré, justamente porque são registrados no conjunto de favelas, há anos, diversos casos de agressões, homicídios, invasões de casas sem mandado e outras violações de direitos de moradores praticadas por policiais durante operações nas comunidades. Foi a primeira vez que o Poder Judiciário exigiu do Governo Estadual a criação de um plano de segurança específico para um território da cidade.
Movida pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro em junho de 2016, a Ação Civil Pública da Maré resultou de uma mobilização de integrantes das organizações não governamentais Redes da Maré e Luta pela Paz e de associações de moradores locais, que se uniram na luta pelo direito dos moradores da Maré à segurança pública — conforme contei em matéria publicada em julho de 2017.
A 6ª Vara da Fazenda Pública determinou que a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Seseg) apresentasse, no prazo de 180 dias, partir do dia 1º de julho de 2017: um plano de redução de riscos e danos para o enfrentamento a violações de direitos humanos decorrentes de intervenções policiais na Maré; garanta a presença obrigatória de ambulâncias durante as operações policiais nas 16 favelas do complexo e a implementação de equipamentos de vídeo, áudio e GPS em todas as viaturas das Polícias Civil e Militar do estado. Além disso, o plano deve exigir que mandados judiciais de prisão e de busca e apreensão sejam cumpridos durante o dia, salvo em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro.
O que está em questão, segundo Malanquini, é se os 180 dias são dias corridos, e aí o prazo teria terminado no dia 1º de janeiro deste ano, ou se são 180 dias úteis. Neste caso, a Seseg ainda não terá descumprido o prazo.
A reportagem perguntou à Seseg, por meio de sua assessoria de imprensa, se o prazo era em dias corridos ou úteis. Também perguntou se a elaboração do plano de redução de riscos e danos para o enfrentamento a violações de direitos humanos decorrentes de intervenções policiais na Maré estava em andamento e qual a perspectiva de que ele seja concluído.
O órgão enviou a seguinte nota:
“A Secretaria de Estado de Segurança (Seseg) tem como principais diretrizes a preservação da vida e dignidade humana, o controle dos índices de criminalidade e a atuação qualificada e integrada das polícias. Para tanto, mantém interlocução permanente com os comandos das polícias Militar e Civil orientando-os na busca incessante de medidas que impactem na redução dos indicadores de violência, principalmente o de letalidade violenta.
No dia 15 de agosto de 2017 foi publicada no Diário Oficial a Instrução Normativa da Seseg que estabelece diretrizes para o aprimoramento de ações das Polícias Civil e Militar no que se refere aos protocolos operacionais e procedimentos para operações em áreas sensíveis – localidades com elevado risco de confronto armado com infratores da lei..
As diretrizes foram elaboradas por um grupo de trabalho tendo como primeiro princípio a preservação da vida dos moradores dessas áreas e dos policiais. Convidado pelo secretário Roberto Sá, o secretário municipal de Educação, Cesar Benjamim, interagiu com o grupo de trabalho, trazendo informações e sugestões para ajudar a diminuir os confrontos, a vitimização e os dias sem aulas nas escolas. O secretário estadual de Educação, Wagner Victer, também foi convidado. Além de subsecretários da Seseg e de representantes das polícias Civil e Militar, participaram do grupo representantes da sociedade civil e entidades como a Cruz Vermelha.
Além das medidas protetivas, a Instrução Normativa também estabelece que as operações integradas entre as policiais sejam coordenadas a partir do Centro Integrado de Comando e Controle (CICC)”.
Deixe uma resposta