Sociedade

“Mindhunter” e o assassino em cada um de nós

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Clarissa Wolff — John Douglas examina casos de assassinos seriais e mostra a importância de perfis psicológicos.

Era uma vez um menino. Sua mãe tinha 16 anos quando ele nasceu. Seu pai, ninguém sabia quem era. Ele não tinha sido desejado pela família – pelo contrário. Tão grande era a rejeição que ele passou semanas no hospital sem nome. Quando ele tinha 5 anos, sua mãe, que costumava beber bastante, foi presa. Ele foi morar com tios. Três anos depois, ela voltou pra casa, o que fez o menino descrever os dias seguintes como os melhores da sua vida. A felicidade não durou: logo ela estava abusando de álcool novamente.

Existe uma anedota que diz que, em uma das bebedeiras, ela trocou o filho por um rádio. Quando ele tinha 13 anos, foi enviado para um reformatório onde foi estuprado. Essa criança sofreu nas mãos da família, dos colegas e do Estado, e poderia ser considerada um exemplo de vítima do sistema, não fosse o fato de que cresceu para se tornar Charles Manson.

Existe um momento em que um serial killer é criado? Seria possível impedir que determinadas pessoas se transformassem em assassinos?

Para John Douglas, agente do FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, que escreveu Mindhunter, livro que inspirou a série homônima da Netflix, depende. Durante décadas ele trabalhou no departamento do FBI que ajudou a criar, destinado a desenvolver e analisar perfis psicológicos de diferentes tipos de assassinos em série.

Faz sentido que a iniciativa tenha surgido nos EUA: o fenômeno parece ser algo típico de lá. O país é o local com maior número de serial killers do mundo, somando 2,6 mil desde 1900. Mas os dados são mais surpreendentes quando pensamos que, em segundo lugar em quantidade de casos, está a Inglaterra, com apenas 142, ou seja, 5%.

No começo da série, os personagens principais são vistos debatendo a mudança de tendência no que diz respeito a homicídios: enquanto nas décadas passadas os crimes eram na maioria esmagadora de vezes feminicídios realizados por amantes ou parentes, assassinatos aparentemente sem motivo e de forma serial estavam se tornando mais frequentes.

Hoje, parece que um outro padrão é reconhecível: os tiroteios em massa, onde uma pessoa atira publicamente em várias e costuma se suicidar ao fim do ato (estatísticas indicam que em 511 dias entre 2016 e 2017 houve 555 atentados como esse no território estadunidense).

Entre o fim da década de 60 e 90, o país viu o surgimento de serial killers que se tornaram especialmente famosos, como Ted Bundy, Jeffrey Dahmer e BTK. O surgimento e o acesso da pornografia pode ser apontado com um dos motivos para isso: Douglas explica como a pornografia é um ingrediente essencial na receita que transforma as fantasias sexuais e violentas em realidade. Mas é difícil apontar cada uma das variáveis que tornaram essas décadas aterrorizadas por esse fenômeno, e Douglas não tenta.

Sua abordagem é outra. Por um lado, ele reconta conversas com alguns dos assassinos que entrevistou, traçando um panorama geral de sua vida e analisando os “estressores” que o levaram, pouco a pouco, a cometer os crimes. Por outro lado, ele relembra crimes em que serviu de consultor, explicando como a vitimologia e a análise da cena do crime (“pra você entender o pintor precisa analisar a obra”) espelham características específicas o suficiente para se traçar um perfil claro do culpado. São quase 400 páginas de material rico e analítico sobre crimes reais.

Mas o mais curioso do livro é quando Douglas suscita questões um pouco mais complexas. As mais simples dizem respeito às consequências: ele reflete sobre o sistema punitivista e como, do seu ponto de vista, não existe alternativa à pena de morte ou prisão perpétua nesses casos: para ele, serial killers não conseguem, jamais, parar de matar. É parte da necessidade emocional e quase fisiológica de suas personalidades, como comer e fazer sexo é para o resto de nós.

Por isso, ele também não acredita que eles sofram de insanidade temporária ao realizar os crimes: na definição jurídica, insanidade seria quando o criminoso, no momento do crime, é mentalmente incapaz de se impedir. Ele brinca que nunca encontrou um criminoso insano o suficiente para cometer um crime na frente de um policial, e explica seu ceticismo mostrando planejamento, deliberação e esforço dos autores para seguirem impunes. Existe uma racionalidade em grande parte dos serial killers, os chamados organizados, o que, para Douglas, coloca em xeque a teoria de insanidade temporária.

Ele levanta questões relacionadas a machismo (a quantidade de crimes com motivação sexual e o fato de que a maioria esmagadora das vítimas é mulher) e racismo (como crimes feitos contra pessoas negras são muito menos investigados, o que deixa muitos casos de assassinos seriais com esse tipo de alvo sem conclusão). Mas é quando Douglas mergulha em reflexões existenciais de causa que o livro parece brincar com sociologia e filosofia. 

Para ele, serial killers não “nascem assim”: essa seria uma explicação simplista demais e ele tende a se unir a pensadores como Sartre, Rousseau e Marx, que enfatizam o fato de o ser humano ser produto do meio. Ele reflete em diversos setores do livro se aqueles assassinatos poderiam ter sido evitados caso algumas variáveis na história do assassino fossem diferentes: se a infância fosse em outro lugar, se os parentes fossem outros, se ele não tivesse sofrido determinados traumas. As perguntas são muitas, mas para ele é claro que muitas dessas pessoas foram transformadas em monstros por traumas monstruosos.

Ele usa o famoso Edmund Kemper, conhecido também como “Co-Ed Killer”, como o principal exemplo dessa teoria. Kemper foi criado por uma mãe abusiva que trabalhava na universidade, por isso era lá que ele buscava suas vítimas – dez ao todo.

Após assassinar sua progenitora e violar seu cadáver, ele se entregou à polícia e hoje é um preso exemplar, organizando atividades para outros detentos e até mesmo gravando audiolivros para cegos. Douglas questiona: “Será que ele teria alimentado as mesmas fantasias assassinas se houvesse tido uma vida mais estável e acolhedora em casa? Quem sabe? Mas será que as teria levado a cabo da mesma maneira se não sentisse tamanho ódio da personalidade feminina dominante em sua vida?”

Ele mesmo responde: “Acredito que não, porque todo o progresso da carreira de Kemper enquanto assassino pode ser visto como um revide contra sua querida mamãe. Assim que ele juntou forças para realizar o ato final, o drama se encerrou”.

O que essas perguntas indicam, sutilmente, é que a moeda poderia ter outro lado. Se a nossa vida tivesse algumas variáveis diferentes, será que nós também seríamos assassinos?

“Mindhunter” e o assassino em cada um de nós

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