Matheus Pichonelli — Para quem tem saudade dos tempos de perseguição, censura e tortura, drama dirigido por Jang Hun serve como refresco à memória e à inteligência
Segundo o diretor, a proposta do filme é retratar a história não como um grande processo modelado por grandes personagens, mas como uma culminação de muitas pequenas decisões
O que antes era um burburinho nos almoços de domingo agora tem faixas em protestos, páginas na internet e até blocos de Carnaval. Por onde circulamos o que não falta são defensores da volta do regime militar, na cabeça fantasiosa de seus defensores um mundo encantado da ordem moral e cívica.
Anos e anos de relatórios, pesquisas, publicações sobre as arbitrariedades do período são resumidos, quase sempre, em chavões e “impressões” sobre um passado até hoje preservado entre porões e cortinas.
Quem se encastelou neste mundo paralelo provavelmente vai se reconhecer no personagem interpretado por Song Kang-ho em O Motorista de Táxi, pré-indicado pela Coreia do Sul ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Dirigido por Jang Hun, o filme estreou na quinta-feira 11 em São Paulo e no Rio de Janeiro. Conta a história de um motorista de Seul contratado por um correspondente alemão para leva-lo até a cidade de Gwangju, que naquele ano, 1980, era palco de violentos protestos pela democratização do país. O longa é baseado na história real do jornalista Jüren Hinzpeter.
O motorista, viúvo que se desdobra, nem sempre (quase nunca) da maneira mais honesta, para criar sozinho uma filha de nove anos, tem na profissão uma possibilidade de testemunhar as transformações de seu tempo.
De dentro do carro, porém, observa os acontecimentos da época de maneira peculiar: de corrida em corrida, reúne fragmentos de uma realidade corriqueira e apreendida na superfície, sem tempo para ser amarrada, analisada, intuída ou compreendida.
É mais ou menos como circulamos, nós também, já no século XXI, pelas redes: vemos tudo passar por nós sem nos fixar exatamente a nada. Pelos retrovisores, tudo fica para trás rapidamente; não estamos exatamente dentro, nem fora, o que não evita a sensação (enganosa?) de visão privilegiada, se não do mundo, de seus movimentos.
De onde está, o motorista repete todo tipo de chavão sobre esta mesma realidade: vivemos em um bom país, a juventude deveria conhecer uma ditadura de verdade antes de exigir mais liberdade, os estudantes não querem saber de estudos, apenas de protestos, e por aí vai.
Sua missão, a princípio, não é histórica. É chegar ao fim do dia vivo, com dinheiro suficiente para pagar o aluguel (atrasado) e comprar um sapato novo para a filha.
Numa passagem desapercebida, logo no início do filme, ele leva uma mulher grávida e seu companheiro até o hospital e promove um bate-boca ao saber que os passageiros, na confusão daquela urgência, haviam esquecido a carteira em casa. Atento ao recurso imediato, o taxista parece não perceber que uma certa novidade estava para nascer naquele país.
Só se dá conta que o futuro, dele e da filha, está ameaçado naquela aparente normalidade abalada pelos protestos quando ajuda o correspondente estrangeiro a furar o bloqueio imposto pelo Exército em Gwangju.
O jornalista é responsável por registrar a brutalidade da ditadura contra a população. Em uma das cenas, ele se posiciona no alto de um prédio para captar os melhores ângulos de um massacre prestes a explodir. O motorista resolve se sentar na mureta do prédio, de costas para a rua, e almoçar.
Quando se levanta, testemunha o que até então não conseguia observar – uma história sequestrada pelos veículos oficiais de imprensa, também cercados pelo regime.
Os militares da então ditadura sul-coreana não estavam ali para colocar ordem sobre os insurgentes, como relatavam os jornais e TVs. Estavam ali para exterminar mobilizações legítimas e pacíficas organizadas por pessoas desarmadas.
Ali, tanto ele como o repórter precisam tomar uma decisão complexa: voltar para casa e salvar as próprias peles ou encarar até o fim a missão de levar aquelas imagens para o mundo?
O filme peca, aqui em ali, ao emprestar ares de epopeia à carnificina. A certa altura se transforma também em uma espécie de Velocidade Máxima sul-coreano, com longas (e desnecessárias) cenas de ação, tiros e perseguição.
Ainda assim, serve como potente mensagem política, sobretudo para quem quiser imaginar como seria o país hoje se seguisse fechado e organizado na censura e na arbitrariedade, a exemplo dos vizinhos norte-coreanos.
De toda forma, porém, o filme é fiel à proposta do diretor de “retratar a história não como um grande processo modelado por grandes personagens, mas como uma culminação de muitas pequenas decisões e escolhas corajosas feitas por pessoas comuns, não como um mural gigante, mas como uma miniatura vista bem de perto”.
“Espero que o público assista ao filme como se estivesse a bordo do taxi, ouvindo as histórias das pessoas daquela época, e entendendo que as histórias não são tão diferentes das nossas próprias.”
Por aqui o filme chega em boa hora. Para quem se lembra com saudade dos tempos de perseguição, censura e tortura, o filme pode servir como um bom refresco para a memória – e a inteligência.
https://www.cartacapital.com.br/cultura/pre-indicado-ao-oscar-filme-coreano-e-alerta-aos-saudosos-da-ditadura
Deixe uma resposta