GeografiaInternacional

Os primeiros disparos da segunda Guerra Fria

Tempo de leitura: 12 min

Luiz Eça – “Amé­rica pri­meiro não pode sig­ni­ficar que os in­te­resses da Eu­ropa ve­nham em úl­timo”.
Assim disse Jean-Claude Juncker, pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia, sobre lei que, apro­vada pela Câ­mara dos Re­pre­sen­tantes, de­pendia ainda da apro­vação do Se­nado e do pre­si­dente Trump.

Ele es­tava en­ga­nado. A lei, que pune a Rússia (além do Irã e da Co­reia do Norte) passou ba­tida no Se­nado (98 x 2). E a Casa Branca anun­ciou que Trump a san­ci­o­nará. Por via dessa lei também as em­presas eu­ro­peias que ne­go­ciam com os russos na área de energia serão pu­nidas.

Vá­rias em­presas da Eu­ropa mantêm in­ves­ti­mentos em 11 ole­o­dutos, ga­so­dutos e ou­tros pro­jetos de tal porte que, apenas nos ga­so­dutos Nord Stream 1 e 2, chegam a 25 bi­lhões de li­bras (92 bi­lhões de reais).

Além disso, devem ser também con­ta­bi­li­zadas as perdas das em­presas im­por­ta­doras de carvão da Rússia, a maior for­ne­ce­dora do pro­duto para a Eu­ropa.

A Ale­manha, maior in­ves­ti­dora nos pro­jetos russos, per­deria também se­gu­rança em gás, pois o novo ga­so­duto North Stream deve ga­rantir o su­pri­mento ne­ces­sário ao país, pelo menos 40% de todo o gás que con­some.

Hoje esta se­gu­rança é pre­cária, pois o ga­so­duto russo exis­tente passa pela Ucrânia, sendo su­jeito a in­ter­rup­ções de­vido ao con­flito entre Kiev e Moscou.

Vendo seus in­te­resses ame­a­çados, Berlin foi o pri­meiro a pro­testar e ame­açar de re­ta­li­a­ções, quando a lei das san­ções ainda es­tava pas­sando pela Casa dos Re­pre­sen­tantes dos EUA.

Ainda com al­gumas es­pe­ranças, Jean-Claude Juncker, pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia ad­ver­tira: “caso as novas san­ções im­postas à Rússia pre­ju­di­quem os tra­tado de as­so­ci­ação com Moscou, a Eu­ropa agirá em questão de dias”. E con­cluiu: “a Amé­rica pri­meiro não pode sig­ni­ficar que os in­te­resses da Eu­ropa ve­nham em úl­timo”.

A Ale­manha se fez ouvir, através do porta-voz do Mi­nistro do Ex­te­rior, Martin Scha­efer: “não tem a ver so­mente com a in­dús­tria alemã. As san­ções contra a Rússia não devem se tornar uma fer­ra­menta da po­lí­tica in­dus­trial (dos EUA) em favor dos in­te­resses norte-ame­ri­canos”.

Faz sen­tido. Um ino­cente não pode ser pe­na­li­zado pelas culpas de um cri­mi­noso.

Mesmo porque tais culpas não podem ser con­si­de­radas lí­quidas e certas.
Washington está im­pondo san­ções a Moscou sob a acu­sação de ter in­ter­fe­rido nas elei­ções pre­si­den­ciais, re­ve­lando e-mails da­nosos à re­pu­tação de Hil­lary Clinton.

Jus­ti­ficam sua po­sição nas con­clu­sões de in­ves­ti­gação de três das suas 17 agên­cias de in­te­li­gência – a CIA, o FBI e a NSA – que não apre­sentam prova al­guma, ale­gando ne­bu­losa ne­ces­si­dade de si­gilo.

Fosse pro­vada, acima de qual­quer sus­peita, a culpa de Moscou, ainda assim não pa­rece justo punir países eu­ro­peus, por sinal ali­ados dos EUA, como se tra­tassem de cúm­plices no de­lito.

As san­ções anti-Rússia não podem ser também anti-Eu­ropa. Tanto a Itália quanto a França já se pro­nun­ci­aram contra as novas san­ções, en­fa­ti­zando a ne­ces­si­dade de uma re­ação rá­pida.

Acre­dito que a União Eu­ro­peia não fi­cará pas­siva di­ante das enormes perdas fi­nan­ceiras das suas em­presas im­postas pelas novas san­ções contra os russos.

No en­tanto, por mai­ores somas per­didas pelas em­presas eu­ro­peias, por mais pro­blemas que surjam no abas­te­ci­mento de gás a seus países, os danos à Rússia serão cer­ta­mente bem mais pe­sados.

Em en­tre­vista à Reu­ters, Alexei Ku­drin, o mais im­por­tante eco­no­mista da Rússia, traçou um quadro som­brio.

Ku­drin fora en­car­re­gado por Putin de pla­nejar uma es­tra­tégia para ace­lerar o cres­ci­mento econô­mico de­pois de 2018.

Ele ex­plicou que no go­verno Putin houve dois mo­mentos opostos: nos pri­meiros anos da sua gestão a Rússia cresceu mais de 5%, porém, entre 2015 e 2016, houve sen­sível queda.

Este ano a eco­nomia deve crescer pouco mais de 1%. A partir de 2018, com a en­trada da maior parte dos in­ves­ti­mentos eu­ro­peus nos pro­jetos de ole­o­dutos e ga­so­dutos da Gaz­prom, pro­je­tava-se um au­mento de 3,1% do PIB, ín­dice que seria man­tido pelos anos se­guintes.

Para dar uma ideia da im­por­tância do setor de energia para a eco­nomia russa, ele re­pre­senta 47% do total das ex­por­ta­ções, sendo que 55% do seu vo­lume des­tinam-se à Eu­ropa. E 47% do or­ça­mento russo vêm de im­postos e tri­butos sobre vendas de pe­tróleo.

Com as novas san­ções es­ta­du­ni­denses, o de­sen­vol­vi­mento do país será se­ri­a­mente com­pro­me­tido.

E não se es­pere que essas san­ções possam cair a curto ou mesmo médio prazo. Na nova lei do Con­gresso, apro­vada por Trump, o pre­si­dente dos EUA não terá po­deres para re­vogar ou mesmo su­a­vizar as san­ções.

Trata-se der uma dis­po­sição que viola a cons­ti­tuição norte-ame­ri­cana, pois a po­lí­tica ex­te­rior é de com­pe­tência dos pre­si­dentes. A única ex­ceção é uma de­cla­ração de guerra, que ne­ces­sita ser apro­vada pelo Con­gresso.

Os de­fen­sores dessa usur­pação de po­deres alegam que as san­ções são ques­tões econô­micas, não po­lí­ticas, por­tanto, se­gundo as leis, os le­gis­la­dores te­riam di­reito de aplicar e blindar san­ções a ou­tros países.

Estão de brin­ca­deira, é claro que no pre­sente caso uma me­dida econô­mica está sendo usada com pro­pó­sitos po­lí­ticos: pre­ju­dicar a Rússia, como pu­nição por sua pos­sível in­ter­fe­rência nas elei­ções es­ta­du­ni­denses.

Alexei Ku­drin acha que as novas san­ções pe­sarão sobre seu país du­rante dé­cadas, res­trin­gindo o cres­ci­mento econô­mico e evi­tando que a Rússia re­cu­pere seu status de poder econô­mico líder.

Ele só vê uma so­lução: a adoção de pro­fundas re­formas econô­micas. Algo se­me­lhante ao ajuste fiscal, que o Brasil está so­frendo.

Entre as prin­ci­pais me­didas ne­ces­sá­rias estão: maior con­trole pú­blico sobre os agentes en­car­re­gados da exe­cução das leis; au­mento da idade mí­nima de apo­sen­ta­doria; re­dução das par­ti­ci­pa­ções do go­verno em em­presas pri­vadas; aper­fei­ço­a­mento da co­brança de im­postos da eco­nomia in­formal; venda das par­ti­ci­pa­ções es­ta­tais nas pe­tro­lí­feras, num prazo entre seis e 10 anos; em pe­ríodo igual, venda de parte da mai­oria das ações do Es­tado no Sber­bank, maior banco russo.

Para Ku­drin, com as re­formas, a Rússia po­deria al­cançar um cres­ci­mento econô­mico de 3% ou 4%, num prazo de cinco a seis anos, mesmo com as san­ções con­ti­nu­ando em vigor.

Su­cede que a mai­oria destas me­didas são im­po­pu­lares e Putin de­verá tentar se re­e­leger no pleito pre­si­den­cial do ano que vem…

Efe­ti­vando as re­formas pro­postas por Ku­drin, será mais di­fícil a con­quista de votos numa po­pu­lação des­con­tente. Até a data das elei­ções, pas­sarão muitos meses nos quais o povo russo so­frerá os efeitos das san­ções e também das me­didas duras das re­formas, que ainda não po­derão apre­sentar re­sul­tados po­si­tivos.

Ainda mais: caso Putin não reaja à al­tura contra esse au­tên­tico ataque mo­vido pelos EUA contra a Rússia, sua imagem fi­cará se­ri­a­mente en­fra­que­cida junto a um povo na­ci­o­na­lista e or­gu­lhoso como o russo.

Re­duzir o nú­mero de di­plo­matas e fun­ci­o­ná­rios da em­bai­xada norte-ame­ri­cana em Moscou, de 1,100 para 455, e fe­char a praia ex­clu­siva deles, não pode ser con­si­de­rada uma re­ta­li­ação à al­tura das de­vas­ta­doras san­ções.

Op­ções vi­go­rosas estão dis­po­ní­veis nos con­flitos do Ori­ente Médio, na ONU e nas fron­teiras com a OTAN e a Ucrânia.

Putin pode tomar pos­turas agres­sivas contra os aviões e bases dos EUA na Síria, e/ou apoiar com ar­ma­mentos os re­beldes houthis no Iêmen, além do Hiz­bollah e do Hamas.

Pode ainda:

con­cen­trar forças ainda mais po­de­rosas nas fron­teiras do leste, es­pe­ci­al­mente com a Ucrânia e a Li­tuânia;

apoiar de­ci­si­va­mente os se­pa­ra­tistas do leste ucra­niano;

con­testar du­ra­mente os EUA na ONU, in­clu­sive nas ques­tões re­la­tivas à Co­reia do Norte.

De­ci­sões pe­ri­gosas, pois na mai­oria delas os russos se ar­ris­ca­riam a en­trar em con­fronto di­reto com forças mi­li­tares norte-ame­ri­canas. Os re­flexos se­riam im­pre­vi­sí­veis, até mesmo de­tonar uma guerra mun­dial.

Mais in­te­li­gente pa­rece ser am­pliar as re­la­ções com a China, através de ali­anças po­lí­ticas e mesmo mi­li­tares, apoi­ando Bei­jing nos seus con­ten­ci­osos com es­ta­du­ni­denses e sa­té­lites na re­gião do Mar da China. Ao mesmo tempo, apro­ximar-se da União Eu­ro­peia, também al­ve­jada pelas san­ções, para con­certar uma ação comum contra os EUA.

A se­gunda abor­dagem po­deria ter até certo êxito, obter uma su­a­vi­zação das pu­ni­ções à Rússia e em­presas as­so­ci­adas eu­ro­peias.

O iso­la­mento in­ter­na­ci­onal face a um grande pacto de união Eu­ropa-Rússia, talvez com in­clusão da China, cau­saria forte im­pacto nos EUA. Não dá para dizer se ne­ga­tivo ou po­si­tivo.

É du­vi­doso que a União Eu­ro­peia aceite a trans­for­mação da Rússia de ad­ver­sária a par­ceira. Ainda mais para en­frentar a su­per­po­tência. Moscou pode viver sem Washington, con­tando com os mer­cados eu­ro­peus e chi­neses. Mas a Eu­ropa não pode viver sem os EUA, pois de­pende muito do seu mer­cado, fora uma série de pro­fundas li­ga­ções nos mais di­versos se­tores.

E a China, teria con­di­ções para re­ta­liar eco­no­mi­ca­mente os EUA? É uma per­gunta ainda sem res­posta.

Os chi­neses são pro­fun­da­mente prag­má­ticos e tudo in­dica que, por en­quanto, não pensam em se in­dispor se­ri­a­mente com Tio Sam.

Seja como for, agora EUA e Rússia são ver­da­deiros ini­migos. As san­ções são de­vas­ta­dores ata­ques contra a eco­nomia e os planos po­lí­ticos do go­verno russo. E Putin, ainda que ini­ci­al­mente aja com cau­tela, não vai de­sistir de contra-atacar com força igual­mente des­trui­dora. É mais do que uma guerra sim­ples­mente econô­mica,

De fato, uma se­gunda Guerra Fria entre o im­pério e uma po­de­rosa po­tência re­cal­ci­trante.

Por en­quanto, sem bom­bar­deios aé­reos, sem tan­ques, sem mís­seis, sem ca­nhões.

Até quando?

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12735-os-primeiros-disparos-da-segunda-guerra-fria

Deixe uma resposta