Ricardo Machado – Ricardo Antunes, ao analisar a atual morfologia dos trabalhadores brasileiros, debate a maneira pela qual as reformas pretendidas mergulham o país em um retrocesso de 100 anos.
Ao analisar o atual mundo do trabalho no Brasil em perspectiva com os movimentos políticos que tentam redirecionar, por meio das reformas trabalhista e previdenciária, as conquistas sociais dos trabalhadores brasileiros, Ricardo Antunes não usa meios-termos para definir a atual conjuntura. “Veja que na proposta deste governo frankstein do PMDB, que tenho classificado como um governo terceirizado, contratado para destruir os direitos do trabalho, ele faz uma proposta de previdência para que só depois de 49 anos de trabalho com salario integral, sem nenhum dia de desemprego, os trabalhadores e trabalhadoras possam se aposentar. É um processo, em verdade, criminoso. Então este é o sentido essencial do governo Temer”, critica o professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “A ampliação da terceirização é outro sentido forte deste governo. É um retorno à escravidão”, complementa.
Na sua avaliação, um dos fatores preponderantes dessa nova organização do trabalho é sua subordinação ao capital especulativo. “Isso significa dizer que a ponta produtiva do capital financeiro, uma vez que ele não pode prescindir do trabalho, quer que ele funcione sob sua forma mais aviltada, mais vilipendiada, que é pelos modos da informalidade, da precarização, da flexibilidade e da devastação de todas as conquistas do mundo do trabalho”, avalia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos caracterizar o atual cenário sobre o mundo do trabalho no Brasil?
Ricardo Antunes – O Brasil caminha sob o comando do que Florestan Fernandes certa vez denominou como contrarrevolução preventiva, que se gestou a partir do golpe que depôs Dilma e colocou na presidência Michel Temer , um golpe parlamentar e com fortes ressonâncias judiciais, além de um enorme apoio da mídia. Esta contrarrevolução tem como objetivo precípuo destruir todas as conquistas do mundo do trabalho e da classe trabalhadora, construídas desde o início do século 20 no Brasil. A jornada de trabalho de oito horas, o descanso semanal, o salário igual para trabalho igual, o pagamento de horas extras, tudo aquilo que, de algum modo, foi consolidado na legislação do trabalho em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, está sendo demolido pelo atual governo e pelo grupo que se apoderou do aparelho de Estado comandado por Temer e um grupo de deputados a mando do capital, sob hegemonia do núcleo financeiro. O objetivo, portanto, é destroçar a legislação social protetora do trabalho.
E quanto à reforma previdenciária, qual seu objetivo? O primeiro deles é demolir a previdência pública; o segundo, incentivar os trabalhadores a migrarem para a previdência privada; e, por fim, a consequência disso é destruir a previdência pública no Brasil. Vale um parêntese sobre o Chile, que privatizou sua previdência pública durante a ditadura militar do Pinochet e naquele contexto se dizia que a privatização da previdência seria algo positivo, mas qual o resultado? O Chile tem um enorme movimento popular contra a previdência privada porque as pessoas chegam no tempo de se aposentar e não conseguem. Veja que na proposta deste governo frankstein do PMDB, que tenho classificado como um governo terceirizado, contratado para destruir os direitos do trabalho, ele faz uma proposta de previdência para que só depois de 49 anos de trabalho, sem nenhum dia de desemprego, os trabalhadores e trabalhadoras possam se aposentar com salário integral. É um processo, em verdade, criminoso. Então este é o sentido essencial do governo Temer.
A ampliação da terceirização é outro sentido forte deste governo. É um retorno à escravidão. Trabalhadores e trabalhadoras poderão ser contratados de modo intermitente. No Reino Unido, especialmente na Inglaterra, tem uma modalidade de emprego que se chama zero hour contract (Contrato de zero hora), em que médicos, advogados, profissionais liberais, trabalhadores na área de serviços, eletricistas, cuidadores, etc. são chamados e prestam serviços pontuais. Se tem trabalho são chamados, se não tem não recebem. Este é o verdadeiro quadro que se pretende instaurar no Brasil. Em síntese, em uma era digital, informacional e computacional, o governo Temer quer legitimar a nova escravidão, também digital, no Brasil, e só as lutas sociais poderão impedi-la e evitar que esse desmoronamento se consolide.
IHU On-Line – De que forma podemos definir a atual morfologia do trabalho no Brasil?
Ricardo Antunes – A construção da ideia de morfologia do trabalho tenta dar conta da heterogeneidade do trabalho em nosso país, como, aliás, ocorre em toda parte do mundo. Estou trabalhando na Itália, como professor visitante na cidade de Veneza, e posso ver isso em uma cidade onde também ocorre o desenho multifacetado do trabalho. Aqui encontra-se um proletariado de serviços enorme e um proletariado imigrante que também cresce, relacionado ao turismo, sobretudo em hotéis e restaurantes; são os pobres que trabalham em Veneza e moram nas ilhas circunvizinhas.
Mas o que é a morfologia do trabalho no Brasil? Trata-se de um núcleo compósito e heterogêneo, para recordar novamente Florestan Fernandes, que configura a classe trabalhadora operária e industrial, com núcleos como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, algumas capitais do Nordeste. Além disso, há a presença de um proletariado rural que acentua muito sua heterogeneidade com o agronegócio, uma mescla de agricultura e indústria, que trabalha na indústria da soja, do etanol e até a indústria de alimentos como carnes, suínos e aves para exportação, que é muito intensa. Há ainda um novo proletariado de serviços que tem um papel cada vez mais crescente no processo de criação e participação no valor. Quem é esse novo proletariado de serviços? Os trabalhadores e trabalhadoras de call center, telermarketing, hipermercados, indústrias de hotéis, motoboys, ou seja, uma miríade de trabalhadores e trabalhadoras que compreendem esse grupo de trabalhadores que se expandem exponencialmente no mundo urbano.
Menos que uma sociedade pós-industrial, conceito que nunca usei pois considero equivocado, temos que compreender a classe-que-vive-do-trabalho na indústria, agricultura, nos serviços, na agroindústria e na indústria de serviços como o contingente que compõe a classe trabalhadora no Brasil. Isto é, aquela que vende sua força de trabalho em troca de salário para sobreviver. Essa é a nova morfologia do trabalho no Brasil.
IHU On-Line – Em um contexto macroeconômico que privilegia o capital especulativo em relação ao capital produtivo, de que ordem são os desafios ao mundo do trabalho no cenário brasileiro?
Ricardo Antunes – É o capital financeiro, esta simbiose entre capital industrial e bancário, e que se desdobrou da ponta produtiva ao fictício e que desenha o atual mundo do trabalho à sua imagem e semelhança. Como o capital financeiro é o mais destrutivo de todos os capitais, ele sabe que não pode prescindir do trabalho porque a ponta primeira do capital financeiro é o mundo produtivo. Nesse sentido, o capital financeiro não é a negação do mundo produtivo, mas uma forma superior em relação ao capital produtivo, ainda que o primeiro não exista sem o segundo.
Isso significa dizer que a ponta produtiva do capital financeiro (uma vez que ele não pode prescindir do trabalho), quer que ele funcione sob sua forma mais aviltada, mais vilipendiada, que é pelos modos da informalidade, da precarização, da flexibilidade e da devastação de todas as conquistas do mundo do trabalho, que foram construídas ao longo de décadas e mesmo séculos de lutas. O capital financeiro desafia o mundo o trabalho à medida que ele exige um mundo do trabalho aviltado, de modo que a luta do trabalho deve ser uma luta contra a sociedade do capital, incluindo aí todas as frações da burguesia. Há um segundo elemento: apesar da burguesia ser composta por várias frações, é o capital financeiro tem o comando geral de maneira que a parte do capital produtivo que é propriedade do capital financeiro, faz com que o primeiro vá a reboque do segundo.
Com isso qualquer ilusão de uma burguesia democrática e progressista, com o mito lulista da conciliação de classes e do apoio à burguesia industrial brasileira, mostrou-se, mais uma vez, como se não bastasse 1964 , fadada ao desastre. O mundo do trabalho sob a hegemonia financeira sempre se apresenta como um desastre.
IHU On-Line – A política de terceirizações nos governos Lula e Dilma fez os postos de trabalho terceirizados passarem de 4 milhões para 12,7 milhões de empregados. Há algo de novo no projeto atual, levado a cabo por Michel Temer, de intensificação das terceirizações?
Ricardo Antunes – Há, sim, diferenças e é importante entendê-las. Eu fui um crítico duro dos governos Lula e Dilma, pelos inúmeros limites que eles significaram em relação ao que poderia ter sido feito para o mundo do trabalho no Brasil. Ambos os governos ficaram aquém do que se poderia ter realizado em termos de reformas estruturais importantes. Não houve reforma agrária, não houve reforma financeira, não houve reforma urbana, ao contrário, foi um governo de expansão econômica, grandes benefícios para os capitais, transnacionalização da burguesia brasileira, abertura do Brasil ao capital externo, incremento no capital interno e uma pequena valorização do salário mínimo. Além disso, um Bolsa Família de perfil assistencialista, importante, mas profundamente limitada, que no máximo diminuiu um pouco os bolsões de miséria nos lugares mais empobrecidos.
Isso não significa que não haja diferenças entre os governos Lula e Dilma e o atual governo Temer. Houve expansão dos terceirizados nos governos do Partido dos Trabalhadores – PT por que ocorreu um significativo crescimento econômico. Nós sabemos que um dos traços que Lula cita como sendo mérito de seu governo é o crescimento econômico, que ocorreu no final do primeiro mandato e no segundo mandato de seu governo e, também, no primeiro período do primeiro governo Dilma, governos que elevaram a taxa de emprego em 22 milhões de postos. E os capitais ampliaram muito esses empregos no setor terceirizado. Isso foi feito por meio de uma brecha na legislação que permitia a terceirização nas atividades meio.
O projeto Temer é profundamente destrutivo, é uma concessão cabal e completa ao mais destrutivo dos capitais, porque permite uma terceirização em todas atividades, em todos os ramos, inclusive no setor público. Significa uma devastação das condições do trabalho no Brasil e uma regressão muito maior, porque volta-se atrás em uma legislação – que já era ruim pois permitia a vigência e que permitia a terceirização somente da atividade meio. Agora é ainda muito pior.
Sempre fui contra a terceirização e defendi que a classe trabalhadora deve ser contra, porque a terceirização avilta ainda mais o trabalho. Já esse novo projeto é um flagelo total. Caso esse projeto não sofra derrota em algum momento, inclusive com a greve geral do dia 28 de abril, que será muito importante para mostrar a capacidade de luta que a classe trabalhadora está sinalizando, será um retorno à escravidão no Brasil. Esse projeto pretende instaurar no Brasil o modelo indiano, com condições brutais de miséria exponencialmente mais amplas que as atuais e uma classe burguesa riquíssima enfeixada em seus condomínios fechados, tendo sua segurança garantida por polícias privadas. Este é o projeto Temer e, por isso, ele precisa ser derrotado.
IHU On-Line – Tendo em conta os projetos em tramitação de reformas Trabalhista e Previdenciária, qual o rumo do trabalho no Brasil? Há formas de retomar uma condição mais favorável aos trabalhadores?
Ricardo Antunes – Só a luta dos trabalhadores e trabalhadoras, dos sem teto, dos sem-terra, das periferias, das comunidades indígenas, dos brancos, dos negros, da juventude, só por meio desta luta ampliada que poderemos retomar uma condição melhor à classe trabalhadora. Este avanço, ampliação e radicalização das lutas sociais têm como segundo objetivo precípuo eliminar, extinguir, mudar completamente este parlamento brasileiro. O atual congresso é o pior de toda a história republicana brasileira.
Nunca houve em nossa história um parlamento tão servil, tão pantanoso, e a coisa é tão violenta, que mesmo estando na Itália, li, na Folha de São Paulo, que uma grande parte dos deputados envolvidos na Operação Lava Jato aumentaram muito suas riquezas no último período. Estamos diante do parlamento do roubo ampliado e generalizado, com as exceções que sabemos que existem formadas por aqueles que não aparecem no Caixa 2, nos esquemas de corrupção, nas relações incestuosas com as empresas.
Será preciso, então, uma ação política radical que reconfigure a formatação política brasileira. Com esse parlamento, este Senado, este executivo e este judiciário não é possível avançar. O judiciário também é um exemplo disso, e vivemos um processo dúplice em que há a judicialização da política (em que o judiciário se arvora em atuar sobre tudo) e a politização da justiça, de modo que alguns membros proeminentes do judiciário estão na batalha política da conservação e da contrarrevolução. A relação incestuosa de ministros do Supremo com o governo Temer, com os atuais ministros, com núcleos empresariais mostra que há um processo de contaminação do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em que a população está muito perto de dizer que não suporta mais.
Isto significa que a forma de retomar uma condição mais favorável às classes trabalhadoras é pensar, é refletir em profundidade, pontos e questões que são centrais na vida cotidiana. Não é possível que a reforma da previdência leve à morte o trabalhador brasileiro antes de ele poder descansar um pouco. Não é possível que se retorne à escravidão do trabalho no Brasil. Em outro plano, é preciso repensar uma ação política de substância e de radicalidade que redesenhe toda a institucionalidade brasileira. Os desafios que temos pela frente não são pequenos, mas são vitais.
O quadro atual de uma política destrutiva e de um governo cuja decomposição avança a cada dia apresenta um imprevisível cenário. Em 2017 e 2018, vamos ter muitos embates, de tal modo que é significativa a mobilização para o próximo dia 28 de abril. Essa greve geral tem que ser um momento muito importante para dizer ao Executivo, ao Senado e à Câmara e ao Judiciário que tudo o que foi conquistado pela classe trabalhadora brasileira nos últimos 70 anos não pode ser destruído no pior momento político brasileiro, que é o atual.
http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6827-o-desejo-de-retorno-do-mundo-do-trabalho-a-escravidao
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