João Telésforo – Programa claro e mobilização permanente: em novembro, às vésperas das eleições, a Frente Ampla participa de manifestação gigante — convocada pelo movimento No+AFP — por um novo sistema de aposentadorias, solidário, público e distributivo.
Nascido das lutas sociais, comprometido com a reinvenção da esquerda e da democracia, movimento sacode a sociedade e já tem 20% dos votos. Fomos conhecê-lo em detalhes
Pela primeira vez na história de 27 anos do Chile pós-ditadura, uma alternativa de enfrentamento ao neoliberalismo irrompeu com força nas instituições políticas do país, nas eleições presidenciais e parlamentares realizadas no dia 19 de novembro. A Frente Ampla, agrupamento político criado em janeiro, superou os 20% dos votos para a Presidência da República, com a candidata Beatriz (Bea) Sánchez, além de ter elegido seu primeiro senador e uma bancada de vinte deputados (dos 155 da Câmara). A coalizão multiplicou por sete sua presença no parlamento, pois antes contava com apenas três deputados – reeleitos, agora, com votações estrondosas.
Para que se tenha noção da magnitude histórica desse resultado eleitoral, é preciso ter em conta que desde a redemocratização do país, em 1990, a política chilena tem sido dominada pela limitada polarização entre duas coalizões partidárias – a de direita e a Concertación, que oscila entre o centro e a centro-esquerda – que não mudaram os pilares do modelo econômico-político neoliberal, herdados da ditadura. Sintomático, sobre a continuidade estrutural do Estado de Pinochet, é o fato de seguir vigente, até hoje, a Constituição outorgada pelo ditador em 1980, inspirada nas ideias de Friedrich Hayek.
Mediante o resultado alcançado nas eleições, a Frente Ampla põe o pé na porta desse longo pacto de elites, e começa a se estabelecer como alternativa potente para superar o regime pós-autoritário, jamais constituído como democracia real. Como isso foi possível? O que temos a aprender com essa experiência? Analisarei, em dois artigos, sete de seus ingredientes decisivos.
1. A força politizadora dos movimentos sociais
Em 2011-2012, o movimento estudantil realizou o mais potente ciclo de mobilizações no Chile em décadas, não apenas por seu caráter massivo (marchas de centenas de milhares de pessoas, ocupações de centenas de escolas e universidades por todo o país, ao longo de meses), mas pela capacidade de galvanizar a sociedade em defesa da gratuidade e do fim ao lucro na educação. Essas duas bandeiras impugnavam os dois elementos centrais das políticas sociais neoliberais: focalização (a ideia de que o acesso a serviços públicos deve ser gratuito apenas para “quem não pode pagar”) e mercantilização – que gerara grande endividamento das famílias chilenas, em especial para pagarem a educação superior.
Para financiar a gratuidade na educação, o movimento defendia uma reforma tributária que aumentasse os baixíssimos impostos pagos pelos mais ricos: sobre sua renda e patrimônio, e também outros, como aqueles que incidem sobre a superlucrativa exploração de cobre.
Apesar de ter mobilizado multidões e conquistado apoio majoritário do país à sua pauta, o movimento de 2011-2012 não obteve as mudanças pelas quais lutava: governo e Congresso, sob pressão, responderam com concessões pontuais, mas sem cogitarem qualquer reforma de fôlego. Diante disso, os(as) estudantes denunciaram a baixíssima porosidade do sistema político às demandas e anseios da sociedade, e conseguiram instalar mais um tema na agenda pública, com força, naquele momento: a necessidade de uma Assembleia Constituinte, para enterrar o Estado neoliberal de Pinochet e traçar democraticamente uma nova rota para o país.
O longo acúmulo de descontentamento social encontrou no discurso estudantil, em torno à construção articulada dessas três agendas, um canal potente de transbordamento. Gerou-se, assim, uma fissura na hegemonia neoliberal. Aberta a fenda, diversas lutas infiltraram-se por ela, ganhando maior força e visibilidade: ambientalistas, feministas, regionalistas (contra uma estrutura econômica e política ultracentralizada), e, mais recentemente, pelo fim da AFP, o sistema previdenciário imposto por Pinochet, baseado em capitalização individual e gerido pelo sistema financeiro privado.
A AFP resultou numa tragédia social: informe do governo reconheceu que 79% das aposentadorias pagas são menores que o salário-mínimo e 44% inferiores à linha de pobreza. O apelido sarcástico dado pelos que lutam contra esse sistema, conhecido por sua sigla, é plenamente justificado: “Aqui se Fabricam Pobres”. O movimento No+AFPproduziu mobilizações importantes, em especial em 2016 e neste ano, levando mais de 700 mil pessoas às ruas e mais de um milhão para o plebiscito popular realizado por todo o país. A alternativa defendida é de um modelo previdenciário solidário, tripartite, e administrado pelo Estado.
Costuma-se dizer que um movimento dá um “salto à política” quando disputa as eleições. Esse raciocínio é equivocado, por limitar a ação política àquela que se desenvolve em determinadas instituições do Estado. A rigor, o “salto à política” dos movimentos sociais chilenos foi produzido em 2011, pela sua capacidade de politizar demandas concretas, partindo do enfrentamento aos efeitos perversos específicos do neoliberalismo (endividamento, desigualdade, exclusão política) para questionar suas raízes, impugnando o modelo a partir de uma visão de totalidade concreta.
Além de conquistar amplo apoio social para essa agenda, organizações importantes do movimento também enunciaram expressamente, já em 2011, que não se podia esperar que os atores do “duopólio” partidário realizassem essas transformações; era necessário articular um novo campo político, com autonomia frente a esses setores. “Llegamos para quedarnos” (“chegamos para ficar”), conforme a frase célebre dita em 2011 por Francisco (Pancho) Figueroa, da Izquierda Autónoma, um dos líderes estudantis mais importantes daquele período, enfrentando um importante Ministro da Concertación, em um programa de TV. Ao fim de um ácido debate entre ambos – no qual o Ministro perdera a compostura, enquanto Pancho mantinha a calma –, Figueroa concluiu: “O que é mais positivo em tudo isto é que essa indecência que vem sendo cometida contra os estudantes e suas famílias não vai poder continuar, porque nossa geração chegou à política para ficar, e é isso o que mais irrita o ex-ministro Bitar. Eles tiveram o monopólio da política, e isso vai deixar de acontecer”.
O neoliberalismo não institui apenas um modelo de política econômica ou de Estado, mas também de sociedade civil – composta pela tecnocracia de ONGs especializadas, ou mesmo por ativistas sociais que atuam em pautas fragmentadas e guiados pelo “melhorismo”. A primeira grande vitória do movimento estudantil de 2011, de onde partiram todas as demais, foi a de se constituir como campo social que entendia e apresentava sua luta como parte de uma disputa por transformação sistêmica. A segunda, assumir que, para estar à altura desse desafio, era necessário construir e disputar poder (não apenas institucional). Já não se tratava apenas de expressar descontentamento e apresentar demandas para que o sistema político se encarregasse delas, gerenciando os conflitos nos marcos da ordem existente.
Não se pode compreender a Frente Ampla (FA), portanto, sem levar em conta sua origem na capacidade dos movimentos sociais de (i) produzirem uma crise hegemônica do neoliberalismo, (ii) expressarem a necessidade de conformação de um campo político autônomo àqueles que dão sustentação ao modelo, e (iii) iniciarem essa articulação a quente, coordenando-se nas lutas. A FA e seu resultado eleitoral tampouco devem ser vistos apenas como resultados suficientes de todo esse processo. Como me disse Constanza (“Cony”) Schonhäut, 28 anos, Secretária-Geral do Movimiento Autonomista(MA, uma das organizações mais importantes da FA), as eleições e os mandatos não são os objetivos finais, mas novos pontos de partida, para que se prossiga na tarefa de mobilização e organização popular nos territórios (escolas, universidades, lugares de trabalho, bairros).
Pude observar um pouco dessa estratégia em ação quando estive em Santiago, cerca de duas semanas antes das eleições. Fui recebido por Cony na Casa Morada, sede do MA no centro da cidade, vinculada à concepção do movimento de construir inserção territorial e disputa comunicacional: contam com um pequeno estúdio, para produção diária de vídeos para seu canal nas redes sociais. Em um dos dois dias em que estive na casa (ampla, mas envelhecida – tem sido reformada, aos poucos, pela própria militância), acompanhei a gravação do programa “Curás de Espanto”, da Frente Feminista da organização, apresentado por duas de suas candidatas à Câmara dos Deputados, Andrea Salazar e Manuela Veloso. Em outra oportunidade, participei de almoço em apoio à candidatura de Andrea, 31 anos, em uma associação de moradores do bairro de La Florida: um dos objetivos da campanha era construir vínculos com as organizações da comunidade e consolidar um núcleo local da Frente Ampla, como ferramenta de organização e luta popular.
2. Para um “poder de muitos”, um “programa de muitos”: a imbricação de forma e conteúdo democráticos
Várias das organizações políticas da Frente Ampla (como Revolución Democratica, Movimiento Autonomista, Nueva Democracia, Izquierda Libertaria, Izquierda Autóma) forjaram-se a partir dos movimentos sociais, em especial do estudantil. Para encontrar um sintoma desse fato, basta olhar uma foto da bancada de 13 deputados e 7 deputadas eleitas pela coalizão: prevalece uma idade de cerca de 30 anos – a maior parte, jovens ex-dirigentes da geração 2011.
Não surpreende, então, que o programa de governo, de 351 páginas, apresente como grandes diretrizes as principais bandeiras dos movimentos sociais, organizadas em cinco seções: (i) democratização do Estado, com destaque para a Assembleia Constituinte; (ii) um novo modelo de desenvolvimento, com novas matrizes produtiva e energética (rumo à superação da grande dependência do extrativismo, ecologicamente catastrófico, economicamente medíocre e com grande vulnerabilidade externa), nova política ambiental, forte investimento em ciência e tecnologia, nacionalização da água e do lítio, entre outros pontos; (iii) garantia de direitos sociais – educação, seguridade social, saúde, transporte, moradia – mediante serviços públicos de caráter universal e sob administração democrática do Estado, rompendo-se com o modelo neoliberal de negociar direitos no mercado, e garantindo-se o perdão da dívida educacional dos estudantes; (iv) uma reforma tributária, com medidas como o imposto patrimonial sobre os “super ricos” (renda superior a 5 milhões de dólares anuais), como meio para financiar o novo modelo de política social; (v) uma forte agenda de direitos civis: sexuais e reprodutivos, inclusive o de interrupção voluntária da gravidez, nos três primeiros meses de gestação; diversidade sexual e de gênero, com garantia do matrimônio igualitário, lei de identidade de gênero, educação sexual e afetiva, entre outros pontos; novas políticas de drogas e de segurança pública; um Estado Plurinacional e intercultural, que garanta os direitos de povos originários e tribal afrodescendente, além da revogação da ilegítima Lei Antiterrorismo, que tem sido aplicada contra lutas indígenas.
Conversei com um dos coordenadores programáticos da Frente Ampla: Nicolás Grau, 34 anos, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Chile – mesma universidade cuja Federação de Estudantes ele presidira, em 2006, como uma das caras públicas da “revolução dos pinguins”, o levante estudantil liderado pelos secundaristas. Nicolás considera que o programa tem caráter “97% social-democrata”, porque esse é, de modo geral, o conteúdo das demandas dos movimentos sociais no Chile. “Mas isso não significa que seria fácil de aplicá-lo, porque politicamente estamos propondo muitas mudanças, e fazê-lo é de uma enorme complexidade”, opina.
Nico Grau, um dos coordenadores do programa da Frente Ampla: construído em múltiplas assembleias, mas costurado num projeto coerente
O governo de Michelle Bachelet elegeu-se, em 2013, com um discurso de reformas, empunhando as bandeiras dos movimentos sociais: educação gratuita, fim ao financiamento estatal do mercado privado de educação; reforma tributária para cobrar mais dos ricos; Assembleia Constituinte; e uma agenda de direitos civis. Foi a primeira vez que a coalizão de centro-esquerda apresentou essa roupagem reformista, e não apenas um horizonte restrito a ajustes pontuais. A repaginação desse campo, que incluiu também uma mudança de nome (de Concertación para Nueva Mayoría) e a ampliação para agregar o Partido Comunista, respondia à nova conjuntura criada pelo movimento estudantil de 2011, que tinha girado o eixo do debate político do país para a esquerda, aprofundando a crise de legitimidade do modelo econômico-político neoliberal.
O problema, analisa Constanza Schonhäut, é que os setores hegemônicos no bloco de centro-esquerda continuaram os mesmos que controlavam a antiga Concertación. O resultado foi um governo que tentou realizar reformas “em aliança com os setores mais poderosos da sociedade, e não com a maioria, que seguiu excluída ao longo de todos esses anos. Isso resultou em uma reforma trabalhista aprovada contra os trabalhadores, e que não avança em seu fortalecimento como atores de uma relação de poder; uma reforma tributária que não cumpriu o objetivo anunciado; uma reforma da educação que garante gratuidade a um setor maior de estudantes, mas sem mudar o modelo, mantendo a lógica das bolsas, e não por meio do fortalecimento da educação pública. E resulta, finalmente, em um governo que não é capaz de defender suas reformas, porque, pelo modo como tentou fazê-las, não tem força nem respaldo social para isso”.
Nicolás Grau faz leitura semelhante. Para ele, o governo Bachelet assentou-se, desde o início, em uma contradição fundamental: “propôs-se a impulsionar reformas, mas com uma maneira de fazer política e entender a democracia que é a do Chile dos anos 1990. O governo tem conteúdo de Nueva Mayoría, mas, em sua forma de entender a política, é da Concertación. Isso é muito grave, porque o caráter do governo faz com que ao final a reforma se modere, e que não exista um poder social para defendê-la. Qualquer reforma no Chile vai enfrentar uma oposição muito forte das elites – como o teve o governo Bachelet. E a pergunta é: qual poder vai se contrapor a isso? O único poder que existe é o das organizações sociais. Mas o governo Bachelet, em sua maioria, seguia vendo os movimentos como grupos de interesses, de captura do Estado, e não como um contrapoder às elites, uma força para uma democracia mais diversa”.
A estratégia da Frente Ampla consiste em disputar o sentido das reformas, e impulsioná-las com os movimentos sociais e uma convocatória ampla à cidadania: com “o poder de muitos”, síntese política que consiste no lema central do programa e da campanha de Beatriz Sánchez – o que nos faz lembrar do “Muitas”, potente coletivo de Belo Horizonte, e também do lema da campanha de Jeremy Corbyn, na Inglaterra, na qual talvez o FA tenha se inspirado: “a country for the many, not the few” (um país para muitos, não para poucos).
Entendendo-se como ferramenta de construção do “poder de muitos”, a Frente Ampla realizou prévias abertas a qualquer eleitor(a), para escolher sua candidata presidencial. Simultaneamente, elaborou o “programa de muitos”, por meio da abertura para a participação da cidadania, de baixo para cima. Especialmente importante é que esse processo de construção programática seria vinculante: as propostas aprovadas ali formariam o programa de governo do Frente Ampla para as eleições deste ano. O chamado à participação social não se resumiu, assim, a uma palavra de ordem vazia, desencarnada de uma prática concreta – e, portanto, incapaz de constituir força.
De abril a junho deste ano, foram realizados mais de 500 encontros programáticos, entre os territoriais (em 102 comunidades, das cerca de 350 do país), os setoriais (sobre 28 temas) e os autoconvocados, com participação de mais de 12 mil pessoas. Não se trataram de meros espaços de divulgação, para que uma mesa de convidados palestrasse; em cada encontro, formavam-se grupos de discussão com 5 a 15 pessoas, que deliberavam e produziam uma ata sobre as propostas que lhes parecessem convenientes, e que depois era disponibilizada na internet.
De julho a agosto, o programa entrou em etapa de sistematização, realizada pelos 28 grupos de apoio programático (GAP), dos quais participaram mais de 500 pessoas. Além de dissecar as 3 mil atasproduzidas pelos encontros, organizando as propostas em áreas temáticas, os GAP fizeram um trabalho de formular medidas concretas (legislativas ou executivas) mediante as quais as propostas poderiam ser viabilizadas, bem como os meios para financiá-las. Além disso, distinguiram quais propostas eram consensuais (mais de 90%), com base nos encontros, e em quais as atas tinham revelado dissensos. O fato de as atas dos encontros estarem publicadas na internet conferia ao processo maior transparência e legitimidade, reduzindo os riscos de arbitrariedade no trabalho de sistematização pelos GAP.
A terceira e última etapa de construção do programa foi a de votação, pela internet, em torno aos dissensos observados entre os distintos encontros de base, bem como para decidir a ordem de prioridade das propostas. Participaram 16 mil pessoas desse plebiscito online – “números pequenos”, avalia Nicolás Grau, “se compararmos, por exemplo, com o movimento NO+AFP, que fez um plebiscito com um milhão de pessoas. Porém, a votação do programa era extensa, em série a um conjunto de temas; durava de 15 a 20 minutos, não consistia em um voto ‘sim’ ou ‘não’”.
Para Constanza Schonhäut, esse processo teve a virtude política de confrontar a ideia de que um programa deve ser elaborado por “um par de técnicos”. À razão tecnocrática, a Frente Ampla contrapôs a inteligência coletiva, a racionalidade democrática – que não dispensa conhecimentos técnicos (os grupos de apoio programático tinham esse perfil), mas os toma como instrumentos de auxílio às escolhas políticas tomadas em comum, entre todos e todas. Um dos legados da experiência, na visão de “Cony”, foi o de fortalecer a capacidade de elaboração política da militância da Frente Ampla, e de todos aqueles e aquelas que tomaram parte dos debates.
Nicolás é autocrítico com relação a alguns aspectos do método adotado para construir o programa: considera, em especial, que não tiveram grande êxito em envolver os movimentos sociais nos encontros, apesar das relações que têm com vários deles, e do fato de encamparem suas propostas (alguns setores do FA, como a Izquierda Autónoma, foram mais contundentes na crítica a esse aspecto e à forma como o plebiscito foi realizado, embora tenham valorado positivamente a riqueza do processo de deliberação nos encontros territoriais e temáticos). Mas seu balanço da experiência também é bastante positivo, tanto pela consistência política e robustez do documento elaborado – que não é mera afirmação de princípios ideológicos nem palavras de ordem, mas um plano de governo para valer –, como porque foi um momento de construção de organicidade da Frente Ampla, o que nos conduz ao próximo tópico.
3. Frente Ampla como plataforma social e cidadã
Por trás do método de construção do programa, havia uma tese política com duas dimensões, de acordo com Nicolás Grau: ao convocar a cidadania para debater um plano de governo, esperava-se ativá-la como estratégia não apenas de mudança do país, mas também, simultaneamente, de constituição da Frente Ampla (FA), ferramenta para essa transformação.
A FA foi articulada por uma dúzia de organizações (entre partidos formalizados e coletivos dos movimentos sociais), mas a concepção que guiou a construção do programa, portanto, é de que o instrumento político deveria ser construído não pela mera somatória desses grupos, mas como uma “plataforma social e cidadã” que as suplantasse, nas palavras de Constanza Schonhäut. “O que nós pensávamos”, contou-me Nicolás, “era que havia que construir a Frente Ampla ao calor da construção programática. E que os encontros locais, a discussão programática nos territórios, isso era a Frente Ampla”.
Essa concepção está explicitada no texto de introdução ao “programa de muitos”, em que se enfatiza que o documento “não é um artefato comunicacional nem de propaganda. É resultado de um processo político real, e é parte e continuação desse processo coletivo, cooperativo, entre as muitas e muitos. É mais um convite que uma promessa: é um compromisso coletivo de portas abertas, dirigido ao Chile e a quem ainda está esperando para se somar”.
Não seria ilegítimo que os doze ou treze grupos escolhessem a candidatura e definissem o programa mediante um acordo entre si, restrito à participação de seus próprios membros. O problema não é de legitimidade, mas de método de acúmulo de força e concepção estratégica: os grupos reconheceram que a sua mera somatória mecânica está muito aquém da tarefa de organizar uma maioria social para transformar o Chile, ou mesmo para agregar todas aquelas pessoas que já se identificam com o discurso político da Frente Ampla.
A expectativa era de que, a partir dos encontros programáticos territoriais, pudessem surgir núcleos locais permanentes do FA. Por isso, também, o método de funcionamento das reuniões buscava gerar envolvimento real, com a possibilidade de que aqueles(as) que chegassem tivessem voz e participassem de um diálogo efetivo (daí a ideia de debates entre pequenos grupos em cada encontro, e de um processo deliberativo vinculante).
Para Nicolás, embora o resultado tenha sido positivo, ficou aquém das ambições que alimentavam: dos 102 territórios onde houve encontros programáticos, em menos de 30 ocorreram, depois, reuniões para dar sequência a núcleos locais da Frente Ampla. Esse esforço já teve novo prosseguimento, porém, nas semanas recentes: para deliberar sobre seu posicionamento no segundo turno, a coalizão realizou um processo de consulta às estruturas territoriais de base: mais uma vez, mais de 100 núcleos se reuniram para debater o assunto. A posição formulada foi a de demarcar que a candidatura da direita é um retrocesso, mas cobrar da “Nova Maioria” postura mais clara de compromisso com agenda de reformas: Assembleia Constituinte, agenda de direitos sociais universais e fora do mercado com fins lucrativos, justiça tributária e fim do sistema AFP. Os pontos elencados não são parte de uma negociação para manifestar ou não apoio da coalizão: a FA afirma que não é dono dos votos de ninguém, essa concepção caudilhista da política deve ser superada. A convocação é para que cada eleitor(a) reflita e vote de acordo com suas análises e convicções. Ao fazer cobrança por compromissos programáticos, a FA segue incidindo no debate político do segundo turno com sua agenda e transmite a mensagem de que o Chile quer mudanças, de modo que amplos setores da cidadania já não se motivam mais para votar apenas pelo “mal menor”, ou “todos contra a direita”.
A Frente Ampla ainda é um instrumento político em vias de amadurecimento (algo normal, para uma coalizão com menos de um ano de idade). Um dos seus grandes desafios, nos próximos meses e anos, será o de seguir atuando em unidade aberta nos movimentos sociais, e avançar como alternativa de organização popular nas comunidades – ainda há muito para avançar, sobretudo nos setores mais periféricos. Também resta pendente, além disso, a consolidação de uma estrutura de coordenação. É auspiciosa a notícia de que se armará em breve, ademais, um Centro de Estudos da Frente.
4. Pragmatismo radical e perspectivismo político
A Frente Ampla é formada por organizações políticas heterogêneas, no que diz respeito às suas origens e visão ideológica, que se articulam com base em um programa comum, em torno aos eixos já descritos, levantados pelos movimentos sociais.
Nessa diversidade, cabem desde organizações de ideário socialista e leitura teórica marxista –como Movimento Autonomista, Esquerda Autônoma, Nova Democracia, Movimento Democrático Popular– até, na outra ponta do espectro ideológico, o Partido Liberal do Chile, abarcando ainda o Partido Humanista, o Partido Ecologista Verde, o partido Revolução Democrática, entre outros. “Na Frente Ampla, há acordos gerais para criar um programa de governo, não uma plataforma ideológica. Nós, do MA, por exemplo, não poderíamos entrar em acordo com o Partido Liberal sobre nossa visão geral da sociedade, mas, para um programa de governo para o Chile, para os próximos quatro anos, temos bastante acordo”, explica Nicolás Grau.
Vejo, na Frente Ampla chilena, a aplicação exitosa de dois princípios de cognição e articulação discursiva que Moyses Pinto Neto sugere para construir uma saída de aprofundamento democrático para a crise brasileira: o perspectivismo político e o pragmatismo radical. Simplificadamente, esses dois conceitos procuram nomear e fundamentar uma atitude que busca, antes que o choque entre concepções abstratas de mundo – por vezes inconciliáveis, ou de compreensão recíproca mais difícil –, a tentativa de construir o discurso político a partir de problemas concretos da vida social, e do esforço para entender como são percebidos pelo senso comum (ou os sensos comuns, suas distintas camadas, suas variadas perspectivas).
Moyses cita o estadunidense Richard Roty como uma das referências da abordagem teórico-política pragmática, mas não faz referência a um intelectual que há décadas assume o “pragmatismo radical” como categoria central de sua proposta epistêmica e política: o brasileiro Roberto Mangabeira Unger. Curiosamente, aliás, Mangabeira é um dos teóricos de referência para alguns dos dirigentes mais destacados do partido mais forte da Frente Ampla, a Revolução Democrática (para que se tenha uma ideia, oito dos 20 deputados eleitos pela coalizão agora, além do único senador, são da RD; era do partido, também, o coordenador-geral da campanha de Beatriz Sánchez, além do deputado Giorgio Jackson, importante liderança estudantil de 2011, que exerceu papel fundamental em todo o processo de montagem da coalizão). O jovem partido bebe na fonte do experimentalismo democrático do nosso baiano-carioca com sotaque de gringo – o que não necessariamente se confunde com suas posições programáticas específicas, pelas quais costuma ser avaliado no Brasil, ignorando-se aspectos instigantes de seu pensamento.
Não cabe aprofundar e discutir, aqui, os componentes mangabeirianos da concepção e estratégia da Revolução Democrática. Ressalta-se, apenas, que a pouco conhecida aproximação desse setor chave da FA às ideias de Mangabeira reforça a leitura de que o pragmatismo radicalé um dos pilares da estratégia frenteamplista, com resultados exitosos até aqui – ainda que com críticas internas, na coalizão, à tônica progressista e “cidadã” do discurso impresso pela RD à campanha de Beatriz Sánchez, e não tanto “popular” (assunto para outro texto).
Chama a atenção, em distintas organizações da Frente Ampla, o intenso processo de reelaboração criativa de matrizes ideológicas, que amadurece como parte da emergência multifacetada e multitudinária de um novo campo sociopolítico no Chile: “a Frente Ampla não é somente um fenômeno eleitoral, mas uma aposta por mudança cultural”, afirma Gabriel Boric, ex-líder estudantil e deputado do Movimento Autonomista. Mais que isso: é expressão de uma mudança cultural já em curso, que libera grandes energias de imaginação política, de horizontes e estratégias de emancipação. Já não se trata de repetir as doutrinas do passado, dogmática e nostalgicamente, mas de gerar novas sínteses e diferenças, para ousar lançar as bases de um pensamento e prática à altura dos desafios do presente. “No seremos sangre nueva para viejas derrotas”, afirma um dos lemas da Esquerda Autonôma e Movimento Autonomista.
5. Agir contra o sistema
A abertura para a diversidade ideológica e a abordagem pragmática não implicam, no caso da Frente Ampla, uma aglomeração política gelatinosa nem de “centro”, submetida aos limites do sistema vigente: a contraposição ao neoliberalismo é frontal e a alternativa defendida é de ruptura democrática, com uma Assembleia Constituinte que lance novas bases para organização do Estado, a produção econômica e a garantia de direitos. A radicalidade está na substância do discurso, portanto, e não em embalá-lo com um rótulo de “esquerda radical”, de alcance restrito aos já convencidos.
O caráter de contestação ao sistema traduz-se também em ações concretas. Veja-se, por exemplo, que o deputado Gabriel Boric enfrentou um pedido de impeachment por parte de entidades do grande empresariado, no ano passado, junto com a deputada comunista Camila Vallejo (destacada ex-líder estudantil do levante 2011-2012, como ele), por terem apoiado ativamente a greve de oito mil trabalhadores da rede de comércio Homecenter. O art. 60 da autoritária Constituição do Chile de 1980 proíbe, efetivamente, que parlamentares tomem parte em conflitos laborais ou estudantis. Em resposta, Boric escreveu em suas redes sociais: “Que os representantes do grande empresariado continuem a nos ameaçar, por apoiar as e os trabalhadores, é sinal de que estamos fazendo o certo. É verdade que a Constituição diz que, como parlamentares, não podemos intervir em conflitos nem laborais nem estudantis. É certo também que não vamos respeitá-la” -uma defesa aberta, portanto, da desobediência civil, em apoio à luta dos trabalhadores e contra um dos entulhos autoritários da Constituição de Pinochet. Boric, lastreado nos movimentos sociais, não chegou nem perto de ser cassado. Reelegeu-se deputado, neste ano, com esmagadores 32,8% dos votos, em Magallanes – o segundo maior percentual no país, abaixo apenas dos 34% obtidos por seu companheiro frenteamplista Vlado Mirosevic, em Arica, o outro extremo (norte) do país.
Constituir-se como força contestadora do apodrecido sistema vigente, recusar-se a agir dentro das margens do que estabelece como possível, legítimo e habitual, é uma das chaves do êxito frenteamplista, e de sua potência transformadora. Isso foi feito de diversas maneiras: por exemplo, o programa eleitoral dedicado aos direitos dos povos indígenas foi exibido na língua mapuche (mapudungún, legendado em espanhol), com direito a jingle da campanha cantado nesse idioma. A FA não se contentou em anunciar a necessidade de um Estado Plurinacional; procurou mostrar minimamente, assim, na campanha, seu compromisso com essa mudança sistêmica. “Hay que crear para creer”, sintetiza um lema da Revolución Democratica, tomado do artista Roberto Matta (o que evoca Mangabeira Unger: “a esperança não é causa da ação, mas sim consequência dela”).
6. Não adaptar programa e discurso às pesquisas de opinião
Os resultados do primeiro turno das eleições, realizado no dia 19 de novembro, desmentiram todas as pesquisas: Beatriz Sánchez teve 20,27% dos votos, enquanto nenhuma sondagem ou analista da imprensa lhe atribuía potencial maior do que 16% (um tradicional think-tank de direita chegara a lhe mostrar com 8%, a cerca de duas semanas do pleito). Significativo, também, foi que, somando-se os votos de Bea com os de distintas forças de centro-esquerda, chegava-se a 55,43% de eleitores. Não se confirmava automaticamente, portanto, a decantada previsão da imprensa nacional e internacional de que o Chile “prepara um giro à direita tranquilo”, como dizia a manchete do espanhol El País, no dia da eleição. O candidato da direita, Sebastián Piñera, teve 36% dos votos – muito abaixo do estimado; cogitara-se até mesmo sua vitória no primeiro turno.
Na Frente Ampla e em outros setores da esquerda muitos denunciaram, diante de tamanha discrepância, como as pesquisas de opinião – junto ao peso dado pela imprensa a elas – foram utilizadas como mecanismo de disputa, e não simplesmente de informação. Isso se aplica não somente às estimativas eleitorais, mas também às pesquisas que vinham mostrando a suposta rejeição da maioria dos chilenos a algumas demandas dos movimentos sociais, a exemplo da educação gratuita. Ora, se uma pesquisa indaga se “os mais ricos” devem pagar por sua educação, induz-se a uma resposta. Mas quem é considerado como “rico”? E mais: será que as pessoas que respondem “sim” a essa pergunta se oporiam a que a educação de todos fosse financiada não por cobrança de mensalidades, mas pelo aumento de impostos pagos pelos “super ricos”? Enfim, as pesquisas projetam e disputam opiniões, porque estas não existem mecanicamente, transformam-se no debate público.
Uma organização que pauta seu programa e discurso por pesquisas de opinião não tem autonomia intelectual nem política; é dirigida pela agenda e método de conhecimento social dos poderes dominantes, que tomam o cidadão como consumidor, em um mercado de opiniões formatadas de acordo com um cardápio preestabelecido por alguns interesses (sobre o tema, recomenda-se texto de Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon, no blog do Urucum). A Frente Ampla não cometeu esse erro: a campanha focou-se em defender seu programa de mudanças, com a convicção de que a perda de respaldo social às reformas do governo Bachelet (por seu conteúdo e implementação) não significava satisfação com o modelo neoliberal, nem indisposição para qualquer agenda transformadora. O foco não esteve tampouco em combater a “ofensiva conservadora” – ajudando-a a pautar o debate político –, mas em promover uma agenda alternativa para o país. Enquanto isso, o candidato do bloco governista de centro-esquerda, Alejandro Guillier, optou por uma campanha “com muita tibieza”, nas palavras de Constanza Schonhäut. Para Nicolás Grau, Guillier apresentou um programa com muitas indefinições, e “muito mais moderado que o de Bachelet, de 2013”.
É verdade que Guillier terminou dois pontos à frente, mas é preciso considerar que a Frente Ampla tinha estrutura incomparavelmente menor e é uma força recém-criada, ainda em vias de consolidação. Os mais de 20% dos votos de Beatriz Sánchez, junto à bancada de 20 deputados(as) e um senador (resultado que ninguém imaginava, nem as melhores projeções da própria Frente, que eram de doze deputados), mostraram que a política de defesa contundente de um programa transformador gerou mais resultados do que a ambiguidade calculada para não assustar eleitores. Beatriz foi uma candidata que defendeu abertamente, por exemplo, além da agenda de desmercantilização, justiça tributária e Assembleia Constituinte, a necessidade de legalizar o aborto; não consultou as pesquisas de opinião para assumir essa posição, em um país de fortes instituições conservadoras, e que só neste ano descriminalizou a interrupção da gravidez em situações específicas, as mesmas há muito previstas na legislação brasileira.
Além de seu grande resultado geral, chamaram a atenção também as altas votações de Beatriz Sánchez em lugares como Puente Alto, o bairro mais populoso de Santiago, com mais de 600 mil pessoas, de distintas frações da classe trabalhadora. Para Nicolás Valenzuela Paterakis, um dos militantes que se dedica à construção do núcleo territorial da Frente Ampla nesse distrito, o resultado expressa a descrença em amplos segmentos populares nas desgastadas promessas da Nova Maioria e a aposta por uma força política antissistema, sem compromisso com as elites.
O resultado das eleições apresentou outros dois dados, aliás, em reforço de uma tese que vem se estabelecendo pelo mundo: a de que, em época de crise global do capitalismo e de sua institucionalidade política, reduz-se o espaço para uma política morna, e ganham força os antagonismos fortes. O partido centrista, Democracia Cristã, de longa tradição no país (membro histórico da coalizão com a centro-esquerda, à qual já se reintegrou, no segundo turno), teve votação muito abaixo da esperada, menos de um terço da Frente Ampla (houve quem especulasse disputa parelha entre ambos). Já o candidato da extrema-direita, pinochetista, alcançou o significativo e preocupante resultado de quase 8% dos votos.
7. Disputar a indignação e o cansaço com a política
A Frente Ampla apresenta-se como uma força de confrontação ao sistema – do programa elaborado à rebeldia da ação e à irreverência dos códigos estéticos: Gabriel Boric, eleito deputado independente em 2013, começou a gerar polêmica no Congresso já no dia da posse, quando se apresentou sem paletó nem gravata. Repetiu-o ao longo de toda a legislatura, alegando que era preciso combater a cisão entre política e sociedade também na dimensão simbólica. Pela mesma razão, Giorgio Jackson e Gabriel apresentaram na Câmara dos Deputados, em 2014, um projeto de redução do salário parlamentar em cerca de 50%, fixando-o em 20 salários mínimos: argumentaram que é necessário aproximar minimamente a renda dos deputados da realidade vivida pela maioria dos chilenos (mesmo com o corte, o salário ainda permaneceria entre os mais altos do país). Todos os candidatos da Frente Ampla comprometeram-se a reduzir pela metade o salário dos membros do Congresso, caso eleitos, e a limitar a apenas uma a possibilidade de reeleição para o mesmo cargo, também com o objetivo de gerar menos distanciamento entre política e sociedade.
O discurso frenteamplista não enfatiza tanto o tema da corrupção como, por exemplo, o Podemos da Espanha. A tônica da campanha era no “poder de muchos” e no programa mencionado aqui. Mas o assunto também estava presente: Beatriz Sánchez falava em mudar o país de “mãos limpas”, e uma propaganda de TV foi dedicada ao assunto. Seu teor explicita uma abordagem que politiza o tema da corrupção, inserindo o antagonismo entre as mãos de muitos, de trabalhadores, de quem luta por direitos, com as mãos armadas que instalaram o golpe de 1973 e as mãos do poder econômico na política: “Existem muitas mãos que marcaram nossa história. Mãos que deram tudo por nossa independência. As mãos que nos devolveram a riqueza do nosso cobre. Muitas mãos valentes que nos devolveram nossa democracia. Mas também há mãos que se voltaram contra o Chile [imagens de militares, ao fundo]. Mãos que financiam suas campanhas pedindo dinheiro aos seus inimigos [na tela, aperto de mãos de engravatados, enquanto se mostra o símbolo da SQM, megaempresa da mineração envolvida com denúncias de corrupção eleitoral]. Enquanto isso as mãos de muitos seguem esperando as aposentadorias dignas que lhes prometeram, mãos que têm que esperar uma eternidade para um atendimento de saúde. É hora das mãos limpas. Das mãos trabalhadoras, mãos sem medo de viver seu amor. Muitas mãos podem mudar as coisas. E aqui estão as nossas, limpas e dispostas para construir o país que sonhamos”.
A mensagem, então, é a de que “muitas mãos podem mudar as coisas” (coerente com a consigna principal da campanha, “o poder de muitos”), a da radicalização democrática como caminho para mudanças – e não o de que a saída consista na mera renovação de representantes corruptos por honestos. Trata-se, ademais, de um discurso que identifica a corrupção a uma lógica sistêmica, e atribui às maiorias sociais às “mãos limpas”, sem repetir a cantilena vira-lata, quase racista, de que os políticos seriam corruptos porque a sociedade também o seria. Disputa-se, assim, o imaginário instalado no senso comum sobre “mãos limpas”, ao invés de simplesmente aderir a ele, ou, por outro lado, desprezar a importância, eleitoral, estratégica e de princípio, do combate à corrupção – não como mera degeneração de indivíduos, mas sistema para que os grandes atores econômicos governem.
Por fim, para enfrentar o cansaço com a política, a comunicação política da Frente Ampla procurou envolver, emocionar, empolgar, divertir. Um exemplo primoroso de utilização de humor foram as duas propagandas (esta e esta) de incentivo a que os eleitores fossem às urnas, num país de voto facultativo. Em outras das peças publicitárias, contaram-se histórias que despertavam empatia e sentimentos de indignação e solidariedade, projetavam outro futuro possível, ou mesmo evocavam o vínculo coletivo dos chilenos com sua seleção de futebol (a partir de 2 mim, aqui, fazendo eco a um vídeo do movimento estudantil de chamado às mobilizações, de 2013). A própria Beatriz Sánchez também encarnou um estilo de comunicação direto, contundente, capaz de interpelar, mas ao mesmo tempo de transmitir calor humano e sensação de proximidade. Chegou a ser criticada por setores da imprensa, durante a campanha, por não ter um perfil tecnocrata; além de seu bom preparo para o debate, entretanto, seu grande trunfo estava na capacidade de transmitir a indignação e a esperança transformadora de amplas camadas da população.
A Frente Ampla tem limites e fragilidades, não é o caso de idealizá-lo – nem tampouco de supor que sua dimensão eleitoral será suficiente para conduzir o país a mudanças de fôlego. O mais importante, no entanto, é reconhecer e aprender com a potência dessa experiência, que se insere em um circuito global de novas forças de esquerda, a partir do percurso próprio de uma combativa e criativa geração chilena.
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