Economia

Quem sonega, sonega o quê?

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Otaviano Helene – Os gastos pú­blicos no Brasil (in­cluindo gastos fe­de­rais, es­ta­duais e mu­ni­ci­pais, co­bertos por ar­re­ca­dação de im­postos, con­tri­bui­ções so­ciais, taxas etc.) cor­res­pondem, grosso modo, e em uma média vá­lida para os úl­timos anos, a cerca de 33% (1) do pro­duto in­terno bruto do país (PIB). Essa ar­re­ca­dação, di­fe­ren­te­mente do que se re­pete in­sis­ten­te­mente nos meios de co­mu­ni­cação li­gados aos in­te­resses dos grupos do­mi­nantes, não é grande e é in­su­fi­ci­ente. São ra­rís­simos os casos de países cujas ar­re­ca­da­ções pú­blicas estão pró­ximas da bra­si­leira – em re­lação ao PIB – que apre­sentam um pa­drão mi­ni­ma­mente ra­zoável de ci­vi­li­zação (2).

Ve­jamos para onde vão aqueles 33% do PIB. Das des­pesas to­tais da União, dos es­tados e dos mu­ni­cí­pios, um valor cor­res­pon­dente a cerca de 12% do PIB é des­ti­nado à pre­vi­dência dos se­tores pú­blico e pri­vado. As­sis­tência so­cial em geral (a idosos e de­fi­ci­entes, bolsa-fa­mília, am­paro ao tra­ba­lhador e ou­tros) per­fazem perto de 2% do PIB. Esses gastos so­ciais co­locam o Brasil em uma po­sição bem dis­tante da­quela ocu­pada pelos países mais or­ga­ni­zados (3).

Em nú­meros re­dondos, cerca de 5% do PIB é des­ti­nado à edu­cação pú­blica e um pouco menos do que 4% à saúde pú­blica (4). Esses per­cen­tuais são ab­so­lu­ta­mente in­su­fi­ci­entes para res­ponder às ne­ces­si­dades do país, co­lo­cando-o também em uma po­sição de grande atraso em re­lação aos países or­ga­ni­zados.

Além dessas des­pesas de se­gu­ri­dade so­cial, edu­cação e saúde, que to­ta­lizam cerca de 23% do PIB na­ci­onal, há vá­rias ou­tras. Des­pesas com se­gu­rança, trans­porte, ur­ba­nismo, dí­vida pú­blica, jus­tiça, de­fesa, de­sen­vol­vi­mento so­cial, ci­ência e tec­no­logia, cul­tura, meio am­bi­ente, es­portes, po­deres le­gis­la­tivos, lazer, agri­cul­tura, ha­bi­tação estão, cada uma delas, entre cerca de 0,5% e cerca de 2% do PIB, so­mando perto de 10% do PIB.

Por­cen­tagem do PIB

Por­cen­tagem dos gastos pú­blicos**

Pre­vi­dência

12%

36%

Edu­cação

5%

15%

Saúde

4%

12%

As­sis­tência so­cial

2%

6%

De­mais des­pesas*

10%

30%

Se­gu­rança, trans­porte, ur­ba­nismo, dí­vida pú­blica, jus­tiça, de­fesa, de­sen­vol­vi­mento so­cial, ci­ência e tec­no­logia, cul­tura, meio am­bi­ente, es­portes, po­deres le­gis­la­tivos, lazer, agri­cul­tura, ha­bi­tação, entre ou­tras. ** O total não soma 100% por causa de ar­re­don­da­mentos

Os nú­meros acima e as com­pa­ra­ções in­ter­na­ci­o­nais mos­tram que o Brasil ca­rece de re­cursos pú­blicos para atender à sua po­pu­lação de forma ade­quada. Essa afir­mação vai na con­tramão do que se re­pete in­sis­ten­te­mente: que o setor pú­blico no Brasil ar­re­cada e gasta muito. Ora, se essa afir­mação fosse cor­reta, não pre­ci­saria ser re­pe­tida à exaustão.

Muitas são as causas da baixa ar­re­ca­dação pú­blica bra­si­leira. Uma delas é a baixa alí­quota má­xima de im­posto que in­cide sobre as altas rendas (de 27,5%, quando, nos EUA, por exemplo, in­cluindo o IR na­ci­onal, os IRs es­ta­duais e mu­ni­ci­pais, coisas que aqui ine­xistem, a alí­quota má­xima total su­pera 50% da renda (5)). Im­postos sobre o pa­trimônio (grandes for­tunas, trans­missão de bens e he­ranças) também são bai­xís­simos no Brasil quando com­pa­rados com a re­a­li­dade dos de­mais países (6).

Mas, além dos pro­blemas com as baixas alí­quotas de im­postos no Brasil e na forma in­justa como eles se dis­tri­buem entre di­retos e in­di­retos, há uma forte “cul­tura” na­ci­onal contra im­postos. Essa “cul­tura”, fruto de in­sis­tente pro­pa­ganda, é tão mar­can­te­mente forte que acaba por ser in­cor­po­rada até por aqueles que só têm a perder (e muito) com a re­dução dos im­postos e con­tri­bui­ções so­ciais, ou seja, a enorme mai­oria da po­pu­lação.

Não é raro ouvir apo­sen­tados, pen­si­o­nistas, tra­ba­lha­dores do setor pú­blico, usuá­rios do SUS e das es­colas pú­blicas, entre tantos ou­tros, re­pe­tirem e apoi­arem dis­cursos contra im­postos, sem per­ceber que qual­quer di­mi­nuição da ar­re­ca­dação, seja por re­dução de im­postos e con­tri­bui­ções so­ciais, seja pelo au­mento de so­ne­gação, por “in­cen­tivos fis­cais” ou por re­dução das alí­quotas, o efeito ime­diato é uma re­dução de sua renda e uma piora dos ser­viços dos quais de­pende em uma pro­porção muito maior do que a even­tual re­dução dos custos dos pro­dutos e dos ser­viços (edu­cação e saúde, por exemplo) que pas­sará a ter que com­prar.

Esse tipo de cul­tura contra im­postos, con­tri­bui­ções so­ciais e Es­tado or­ga­ni­zado re­força uma ca­rac­te­rís­tica na­ci­onal muito ne­ga­tiva: a to­le­rância para com a so­ne­gação. Com­binar a exe­cução de um ser­viço sem re­cibo, com­prar ou vender um pro­duto sem nota fiscal, passar es­cri­tura por valor di­fe­rente do que foi re­al­mente pago na compra de imó­veis, aceitar re­ceber “por fora”, in­ventar gastos na de­cla­ração de im­posto de renda … São al­gumas das prá­ticas muito co­muns usadas no Brasil (7). Muitas vezes, o ar­gu­mento usado para jus­ti­ficar essa prá­tica é que parte dos im­postos ou con­tri­bui­ções so­ciais seria des­viada ou rou­bada. Ora, con­si­derar que se apro­priar do todo é uma jus­ti­fi­ca­tiva mo­ral­mente acei­tável para evitar que al­guém roube uma parte não pa­rece nada ho­nesto.

O ar­gu­mento do so­ne­gador ou dos que dis­cursam contra im­postos di­zendo que só os pa­gará quando os go­vernos ofe­re­cerem ser­viços de qua­li­dade é ab­surdo: com os re­cursos dis­po­ní­veis, ainda que não hou­vesse caixa-dois, cor­rupção, su­per­fa­tu­ra­mento etc. É im­pos­sível ofe­recer ser­viços me­lhores do que são ofe­re­cidos (8). A ló­gica dessa ar­gu­men­tação é per­versa: ao se dis­cursar e atuar contra im­postos e con­tri­bui­ções so­ciais en­quanto não houver ser­viço de qua­li­dade di­fi­culta a ar­re­ca­dação e im­pede que haja ser­viços de qua­li­dade, jus­ti­fi­cando o dis­curso contra im­posto.

Como con­sequência da falta de fis­ca­li­zação, da im­pu­ni­dade e dos dis­cursos que re­la­ti­vizam ou mesmo jus­ti­ficam a so­ne­gação, esta atinge, no Brasil, um valor ab­sur­da­mente alto, cor­res­pon­dente a 10% do PIB na­ci­onal (9). Ou seja, se ela não exis­tisse, ainda te­ríamos um setor pú­blico que ab­sor­veria um per­cen­tual do PIB bem in­fe­rior àquele ab­sor­vido nos países mais or­ga­ni­zados; en­tre­tanto, os pro­blemas que te­ríamos se­riam muito me­nores do que são.

Mas, fi­nal­mente, quem so­nega, so­nega o quê?

Quem so­nega, o faz na pre­vi­dência, pen­sões, edu­cação, saúde, se­gu­rança, sa­ne­a­mento bá­sico e tudo o mais que é feito com (pelo menos a maior parte) os re­cursos pú­blicos. Por exemplo, o es­quema de so­ne­gação que deu origem à ope­ração Ze­lotes, des­viou, se­gundo dados que têm sido di­vul­gados, cerca de 20 bi­lhões de reais. Se esses re­cursos des­vi­ados ti­vessem os des­tinos mé­dios dos re­cursos pú­blicos da ta­bela acima, tal valor cor­res­pon­deria a cerca de 7 bi­lhões de reais rou­bados do sis­tema pre­vi­den­ciário, cor­res­pon­dente à renda anual de meio mi­lhão de apo­sen­tados que, sem ela, muitos podem sim­ples­mente ter mor­rido.

Da­queles cerca de 20 bi­lhões, seis bi­lhões iriam para a edu­cação. Con­si­de­rando que a evasão es­colar ao longo do en­sino fun­da­mental ocorre ba­si­ca­mente por falta de re­cursos fi­nan­ceiros para atender ade­qua­da­mente os es­tu­dantes, aquela so­ne­gação fez com que perto de meio mi­lhão de cri­anças possam ter dei­xado a es­cola, tor­nando-se adultos anal­fa­betos. A parte do SUS da­queles 20 bi­lhões é su­fi­ci­ente para cem mi­lhões de con­sultas mé­dicas, ou al­guns mi­lhões de dias de in­ter­nação hos­pi­talar. Evi­den­te­mente, muitos mi­lhares de pes­soas mor­reram por causa da­quele desvio.

Quem so­nega, so­nega edu­cação, saúde, se­gu­ri­dade so­cial, jus­tiça, se­gu­rança, vida, mo­radia, trans­porte, de­mo­cracia e muito mais e con­tribui para nosso atraso edu­ca­ci­onal, para os baixos ren­di­mentos pagos pelos sis­temas pre­vi­den­ciá­rios, para a ma­nu­tenção dos nossos altos ín­dices de mor­ta­li­dade in­fantil. Quem de­fende uma po­lí­tica de Es­tado mí­nimo, de­fende a pre­ca­ri­e­dade da­queles ser­viços, a au­sência de de­mo­cracia e a ga­rantia do atraso. Caso os dis­cursos dos so­ne­ga­dores e de­fen­sores de um Es­tado mí­nimo ti­vessem su­cesso nos países com me­lhores in­di­ca­dores so­ciais (edu­ca­ci­o­nais, de saúde, IDH), em pouco tempo eles se tor­na­riam novos Brasis.

Notas:

1) Todos os va­lores ci­tados podem apre­sentar uma pe­quena va­ri­ação, tanto por causa de va­ri­ação de um ano para outro como de cri­té­rios ado­tados. En­tre­tanto, essas pos­sí­veis va­ri­a­ções não com­pro­metem as aná­lises feitas ou as con­clu­sões ob­tidas,

2) Países cujos go­vernos gastam entre 31% e 32% do PIB, se­gundo o ver­bete “Go­vern­ment Spen­ding” da Wi­ki­pédia, con­sul­tado em 5/12/2017, são África do Sul, Bah­rein, Bot­suana, Cabo Verde, Catar, Egito, Geórgia, Guiana, Ja­maica, Li­béria, Ma­cedônia, Su­a­zi­lândia, Uz­be­quistão e Vi­etnã. Países cujos gastos são ainda in­fe­ri­ores àqueles per­cen­tuais, apre­sentam, em média e com ra­rís­simas ex­ce­ções, in­di­ca­dores so­ciais, cul­tu­rais e de de­sen­vol­vi­mento hu­mano in­fe­ri­ores aos lis­tados. O sítio https://​data.​oecd.​org/ sis­te­ma­tiza di­versos dados re­fe­rentes à ar­re­ca­dação e des­pesa de go­vernos.

3) É ne­ces­sário lem­brar que nos EUA as con­tri­bui­ções pre­vi­den­ciá­rias e de saúde, mesmo quando com­pul­só­rias, não estão com­pu­tadas, em grande parte, dentro das contas pú­blicas.

4) Se­gundo dados sis­te­ma­ti­zados pelos or­ga­nismos in­ter­na­ci­o­nais (https://​data.​wor​ldba​nk.​org/​ind​icat​or/​SH.​XPD.​PUBL.​ZS?​name_​des​c=fal​se), em 2014, ano mais re­cente dis­po­nível, o Brasil in­vestiu 3,8% do seu PIB em saúde pú­blica. A média mun­dial na­quele ano era de 6%

5) Em di­versos es­tados dos EUA, mais do que me­tade do or­ça­mento es­ta­dual provém de im­posto sobre a renda.

6) Apenas um exemplo: nos EUA, país cujos en­di­nhei­rados bra­si­leiros fingem tomar como pa­ra­digma, a alí­quota má­xima do im­posto fe­deral sobre he­rança é de 40%. Além dele, há im­postos sobre he­rança em nível es­ta­dual. No Brasil, não há im­posto fe­deral sobre he­rança e as alí­quotas es­ta­duais não ul­tra­passam os 8% – no Ceará -, sendo, em São Paulo, de 4%.

7) A BBC Brasil tem ma­téria, dis­po­nível em http://​www.​bbc.​com/​por​tugu​ese/​brasil-​41019093, com al­guns tru­ques usados pelos mais ricos para dri­blar o pa­ga­mento de im­postos no Brasil.

8) Apenas para se ter uma ideia, todo o sis­tema pú­blico de saúde dispõe, a va­lores de final de 2017, de R$ 100 por mês e por pessoa. Com tal quan­ti­dade de re­cursos, ne­nhum sis­tema con­se­guiria prestar me­lhor aten­di­mento do que o sis­tema pú­blico ofe­rece.

9) Es­ti­ma­tiva do Sin­di­cato Na­ci­onal dos Pro­cu­ra­dores da Fa­zenda Na­ci­onal, http://​www.​qua​ntoc​usta​obra​sil.​com.​br/. Há es­ti­ma­tivas in­ter­na­ci­o­nais que co­locam o valor total so­ne­gado no Brasil li­gei­ra­mente abaixo da so­ne­gação nos EUA, apesar do PIB da­quele país ser cerca de dez vezes maior, http://​blogs.​reuters.​com/​david-​cay-​joh​nsto​n/​2011/​12/​13/​wheres-​the-​fraud-​mr-​pre​side​nt/

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12996-quem-sonega-sonega-o-que

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