ANTONIO ENGELKE – Os paradoxos da política identitária. Se os argumentos forem avaliados a partir da “pureza” de quem fala, em detrimento da sua validade ou consistência interna, então os próprios discursos subalternos podem perder força
Quem acompanha as redes sociais no Brasil de hoje provavelmente já se deparou com a gíria “lacrar”. Dizer que fulano “lacrou” é expressar admiração por uma ação ou fala que é percebida como o ponto final, a última palavra sobre um determinado assunto ou situação. Depois que alguém “lacrou”, supostamente nada resta a ser dito.
É uma imagem que diz muito, em particular sobre o momento político em que vivemos. Como toda metáfora, além de iluminar um determinado aspecto da experiência, a ideia de “lacre” também ajuda a reforçar certas compreensões e comportamentos. Ao acioná-la, reforçamos a ideia de que debates, em princípio, admitem um fechamento irrevogável, e não são desprezíveis as consequências disso para as discussões concretas de que venhamos a tomar parte.
Mas nada justifica essa crença. Debate algum pode ser encerrado por força de um argumento supostamente último. As constantes mudanças políticas e comportamentais são prova disso. Tome-se o caso de grupos subalternos – negros, gays, mulheres –, que historicamente tiveram a voz anulada, deslegitimada, e hoje conseguem se fazer representar na esfera pública, ainda que as assimetrias persistam. Por isso mesmo não deixa de ser curioso que a metáfora do lacre prospere precisamente entre movimentos políticos que têm nas identidades de gênero, raça e orientação sexual sua razão de ser.
Não se trata aqui de generalizar, de dizer que todo ativista identitário seja um “lacrador” de debates – aliás, não são poucas as vozes dentro dos próprios movimentos identitários a criticar a postura que acompanha a metáfora. Ademais, é fato que o termo conquistou um sentido que ultrapassa o campo da política (pode-se “lacrar” ao usar uma roupa bonita numa festa). Contudo, a frequência com que a metáfora é empregada pode ter algo a nos dizer não apenas acerca do repertório de crenças e ações da política identitária, mas também sobre como esse repertório se coaduna com a paisagem mais ampla da política contemporânea, a despeito da declarada intenção, por parte desses movimentos, de subverter essa mesma paisagem.
É difícil exagerar a dimensão e a importância das transformações que os movimentos sociais baseados em identidades vêm colocando no mundo. Talvez por isso mesmo seja igualmente difícil criticar alguns dos alicerces sobre os quais esses movimentos têm, cada vez mais, se apoiado – como, por exemplo, as noções de “lugar de fala” e “apropriação cultural”. Tampouco é simples examinar a tensão existente entre, de um lado, a adoção de posturas combativas, de enfrentamento, por parte da militância identitária, e, de outro, a necessidade de convencer possíveis interlocutores da razão de seus argumentos – dialogando, valendo-se de esforços “educativos”.
É essa a tarefa a que me proponho neste texto: observar os paradoxos de uma prática política que tem exigido, com razão, a radicalização da ideia de democracia, mas que talvez esteja somando forças à crescente onda de contestação a alguns dos pressupostos dos regimes democráticos – ataques que vêm tanto da direita quanto da esquerda, de líderes populistas e de críticos das insuficiências da política representativa, de representantes da elite e do “mercado”.
Vejamos a noção de “lugar de fala”. Grosso modo, seu intuito é chamar a atenção para quem fala, de onde fala, e não somente para o que está sendo dito. Isto é, a noção de lugar de fala surgiu para afirmar que o conteúdo de um discurso não pode ser avaliado apenas em si mesmo, sem que observemos as condições materiais e simbólicas de sua enunciação. Trata-se de tornar visíveis os mecanismos através dos quais certos discursos parecem naturalmente dotados de autoridade, enquanto outros permanecem tacitamente relegados ao descrédito. Não é pouca coisa: a noção de lugar de fala abre um espaço ao pensamento e à ação no sentido de questionar privilégios e identificar as formas de reprodução de assimetrias de poder e hierarquização de vozes.
No debate contemporâneo, entretanto, a noção de lugar de fala ganhou um sentido diverso. Ela agora tem por base a crença de que a vivência, a experiência pessoal do sujeito, fundamenta exclusivamente a compreensão. “Não te cabe julgar uma realidade que você não vive”, decreta um meme que viralizou nas redes sociais. O argumento tem um fundo de verdade; pressupõe, entretanto, uma relação inequívoca entre experiência e compreensão. Mas vivência não implica automaticamente entendimento, como Freud sabia já no século XIX, quando examinava a incapacidade de neuróticos e histéricos perceberem de maneira esclarecida o próprio sofrimento. A experiência é uma condição necessária, mas não suficiente, para o conhecimento. Há sempre um hiato entre aquilo que experimentamos e o modo como lhe conferimos inteligibilidade: nenhuma experiência constitui por si só uma história acabada, apenas oferece elementos a partir dos quais podemos tecer sua significação. Paradoxalmente, a experiência pode ser ao mesmo tempo uma condição para o conhecimento e um obstáculo à sua obtenção, pois é também o excesso de proximidade ou familiaridade que introduz problemas à nossa capacidade de compreensão.
Submetida a essa torção, que transforma vivência pessoal em sinônimo de conhecimento absoluto, a noção de lugar de fala vem sendo empregada como lastro da pretensão ao monopólio da legitimidade do discurso. Evidente deslizamento: o que era antes um instrumento de questionamento do discurso, e que poderia eventualmente dar ensejo a uma reivindicação de autoridade sobre uma determinada questão, mas sem com isso excluir o reconhecimento da validade de outras perspectivas, transforma-se numa espécie de selo de garantia de um único discurso legítimo possível, cujo mero questionamento constituiria uma impropriedade. Longe de superar os termos do poder estabelecido, tal expediente apenas os reproduz com sinal invertido: se antes os grupos hegemônicos se valiam de uma pretensão universalista para afirmar a incapacidade do subalterno de representar a si próprio, pois que lhe faltaria a objetividade ou a neutralidade científica necessárias, agora subalternos recorrem ao essencialismo particularista para negar a outrem a legitimidade do que quer que tenham a dizer sobre eles. Não estou sugerindo que sejam hábitos de pensamento equivalentes; mas são ambos verticais, herdeiros de uma moldura cognitiva hierárquica, predisposta à adesão a respostas imediatas.
O operador dessa transformação parece ter sido a articulação entre o conceito de lugar de fala e uma concepção bastante particular do modo como o poder lhe estaria imbricado. Trata-se de um argumento formalista que procura estabelecer uma relação direta e inescapável entre as hierarquias sociais e os efeitos de verdade que delas decorrem. “A constatação desses diferentes efeitos de verdade que variam segundo o lugar de fala”, escreve o professor da USP Pablo Ortellado num texto esclarecedor sobre o significado do conceito, “faz com que um discurso crítico sobre a condição subalterna da mulher, quando enunciado por um homem, entre numa espécie de contradição performativa – como se ele negasse, na prática, o seu conteúdo. Isso acontece porque o discurso feminista enunciado pelo homem pressupõe, e implicitamente referenda, a hierarquia dos efeitos de verdade que dá mais autoridade ao homem do que à mulher.”[1]
A lógica do argumento é inatacável. Talvez por isso mesmo, por ser tão persuasiva, ela contribua inadvertidamente para o apagamento da distinção entre os diversos tipos de interação com o outro. Falar pelo subalterno é ato carregado de violência simbólica e, a despeito das intenções do enunciador, exemplifica em toda sua força essa contradição performativa mencionada por Ortellado. Falar do subalterno supõe um distanciamento analítico que pode variar desde uma perspectiva crítica esclarecida sobre o outro – a esquerda materialista argumentando que a política de identidades dificulta o reestabelecimento da solidariedade de classe, por exemplo –, até uma postura abertamente hostil, como o comentarista de internet que descarta com impaciência o debate sobre apropriação cultural, caracterizando-o como mera frescura. Por fim, falar com o subalterno pressupõe aquilo que o filósofo Hans-Georg Gadamer chamava de fusão de horizontes, uma compreensão advinda da ampliação de nosso horizonte cognitivo em função de uma abertura para o outro, uma disposição de se deixar afetar pelo outro, embora ciente de que a qualidade dessa compreensão jamais fará jus à realidade por ele vivida.
Essas distinções muitas vezes deixam de ser percebidas no uso corrente da noção de “lugar de fala”. A recusa em manter-se permeável às trocas desse último tipo de interação, seja por incapacidade de distingui-lo dos demais, ou pela convicção de que o interlocutor está tão somente referendando o próprio lugar de fala durante o diálogo, sinaliza o fechamento autorreferido do indivíduo ou grupo subalterno em torno de si mesmo.
Há uma diferença entre dizer que o poder importa (para o discurso), e dizer que o poder é tudo o que importa (no discurso). Interrogar as condições de possibilidade e efeitos de verdade do discurso é uma coisa; outra, totalmente distinta, é o descarte automático de argumentos apenas em função do lugar de fala de quem o enuncia. Tal descarte supõe a redução do discurso ao elemento de poder que o atravessa e constitui. Quando certas feministas afirmam que homem algum poderia ter qualquer coisa a acrescentar ao feminismo, o substrato dessa afirmação não é apenas que a falta de vivência condenaria o discurso masculino ao erro; é que o efeito desse discurso só poderia ser o de conservar o poder do lugar de fala dos homens. Mas esvaziar completamente o conteúdo substantivo do discurso, de modo a reduzi-lo a uma questão formal de poder de quem o enuncia, é um tiro no pé.
Se o poder é o princípio e o fim do discurso, se os argumentos devem ser avaliados não em função de sua validade ou consistência interna, mas levando-se em consideração somente as relações de poder que envolvem seus autores, então os próprios discursos subalternos perdem força, na medida em que podem ser vistos como mera ferramenta política na luta por poder, e não como um conjunto de reivindicações cuja validade intrínseca obrigaria ao reconhecimento por qualquer humanista que se queira digno do nome. Dito de outro modo: as lutas contra o racismo, o machismo e a homofobia correm o risco de perder boa parte de sua força se forem enquadradas e compreendidas não como pressupostos civilizacionais, mas como movimentos estratégicos da batalha pela redistribuição do poder.
Ao fazer da vivência pessoal um sinônimo automático de conhecimento de causa e usar esse conhecimento como esteio da reivindicação do monopólio da legitimidade do discurso, a política identitária assume o ideal de pureza como um dos fundamentos de sua ação. Postura tautológica: somente os puros podem falar, e sua fala é válida justamente porque falada por puros. Não é trivial, para dizer o mínimo, estipular o local onde começa e termina essa pureza. A linha que separa a “verdadeira” pertença a uma identidade sempre poderá ser convenientemente movida ao sabor da satisfação de critérios atribuídos a uma suposta essência, que, como toda essência, nunca pode ser localizada, somente inventada. Assim, a noção de lugar de fala converte-se num cavalo de batalha, um “supertrunfo” acionado de acordo com a necessidade de uma demarcação imaginária de fronteiras que separariam um “nós” legítimo de um “eles” desautorizado a falar.
A realpolitik, entretanto, se encarrega de borrar essas fronteiras, de conspurcar o ideal de pureza que lhes subjazem. Considere o caso do vereador paulistano Fernando Holiday, do Democratas. Negro, homossexual, filho de um garçom e uma auxiliar de enfermagem, Holiday é um dos coordenadores nacionais do Movimento Brasil Livre, o MBL. Crítico do que afirma ser “vitimismo” de grupos subalternos, Holiday é contra políticas de cotas raciais, por entender que estimulam o racismo. É igualmente contrário ao Dia Nacional da Consciência Negra, bem como à Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de São Paulo, que, na sua visão, não contribui para combater o racismo ou a homofobia, servindo apenas como cabide de empregos que sustentam discursos preconceituosos e segregacionistas.
Já se vê o curto-circuito: grupos subalternos têm a expectativa de que determinadas vivências engendrem visões do mundo, em geral progressistas, cujos valores lhes sejam aderentes. Ocorre que, na verdade, mais da metade da população brasileira concorda com a afirmação “bandido bom é bandido morto”, segundo uma pesquisa Datafolha divulgada no final do ano passado, e 79% eram contra a legalização do aborto, de acordo com o Ibope, em levantamento de 2014 (a estatística não contemplava o corte por gênero, mas 79% é um número alto demais para imaginar que apenas homens desaprovam o aborto). Não são poucos os excluídos que desprezam os direitos humanos, bem como mulheres contrárias ao imperativo “meu corpo, minhas regras”. Se a legitimidade do discurso depende principalmente do lugar de enunciação, e não do conteúdo substantivo dos enunciados, então a política identitária fica sem ter como justificar a superioridade da própria perspectiva sobre os adversários conservadores que coabitam o lugar de fala desta ou daquela minoria.
Eis-nos diante de um impasse, bem definido pelo filósofo Ernesto Laclau: se o particularismo for o único princípio válido, então terá necessariamente que aceitar particularismos violentos, excludentes ou opressores. As demandas entre os grupos conflitantes entrarão em choque, e o único jeito de resolver a disputa é apelando para princípios de validade geral. Reconhecer a existência de princípios universais não é algo com o qual boa parte da política identitária parece se sentir confortável, seja porque isso impõe limites à afirmação de particularismos, ou porque aproxima sua política do campo liberal.
Qual a alternativa? Declarar que subalternos não progressistas, como o vereador Holiday, estão imersos em “falsa consciência”? Evocar a noção de falsa consciência, espécie de véu ideológico que impediria o sujeito de enxergar a realidade, tornaria o curto-circuito em que a política identitária se enreda ainda mais evidente. Se subalternos não progressistas são autômatos da norma conservadora em que foram socializados, sendo portanto incapazes de pensar com autonomia, é porque precisam ser trazidos à verdade por um outro esclarecido – como as feministas radicais (radfems) argumentando que sexo pago é estupro, lançando-se em campanhas para criminalizar a prática, a fim de salvarem prostitutas de si próprias. Então ficamos assim: quem não tem lugar de fala subalterno não tem o que dizer; e quem tem, mas o contradiz, não aprendeu a pensar. Seja como for, reduz-se a possibilidade de a política identitária tomar consciência de suas próprias contradições.
Uma dessas contradições aparece na discussão sobre “apropriação cultural”.
Vale esclarecer desde já que apropriação cultural não diz respeito ao fluxo de trocas, inerente ao mundo globalizado, de pessoas e artefatos, mas sim a um tipo específico de mecanismo de capturas, simbólicas e concretas, que contribui para perpetuar relações de poder que subjugam grupos minoritários. “A cultura negra é popular”, afirma o poeta B. Easy, “mas as pessoas negras, não.” Para ficar no exemplo racial, há uma espécie de descolamento entre os produtores da cultura negra e os seus produtos: estes recebem uma aura fetichista que seduzirá públicos os mais diversos, enquanto aqueles permanecem relegados a um segundo plano de visibilidade e reconhecimento.
Grupos subalternos seguem lutando para conquistar autoridade discursiva sobre sua própria realidade, história passada ou presente, e aspirações futuras. Nada mais coerente que se mantenham vigilantes ao modo como são representados, ou às maneiras através das quais a representação sobre si lhes é usurpada, a apropriação cultural sendo uma delas. Mas como pensar essa usurpação? A filósofa Djamila Ribeiro afirma, acertadamente a meu ver, que o problema é sistêmico, e que portanto o debate sobre a apropriação cultural não pode girar em torno do indivíduo. Dizer que um dado problema é sistêmico ou estrutural é dizer que ele não pode ser compreendido e explicado a partir da ação do indivíduo. Racismo, por exemplo. Estando encrustado no funcionamento das instituições políticas, na escrita das legislações, nos sistemas de produção e circulação de informação e entretenimento, na estética publicitária, o racismo não pode ser reduzido a eventuais manifestações individuais, isto é, visto apenas como má escolha de pessoas preconceituosas, embora isso também seja parte do problema.
Apelar à consciência do indivíduo, no sentido de instá-lo a compreender as implicações do uso de artefatos culturais, é deslocar o debate sobre apropriação para o terreno da moralidade. Os marcos analíticos mais amplos da questão – a relação entre fetiche e consumismo, a lógica de mercado que os atravessa – ficam escanteados, apagados diante do imperativo solitário de fazer a coisa certa. Em termos políticos, é contraproducente fechar o problema exclusivamente no sujeito que se apropria, quanto mais não seja porque muitas vezes há a tendência a se exercer a vigilância sobre a apropriação como um fim em si mesmo, não como parte de uma luta mais ampla contra forças sistêmicas, instituições e aparelhos do Estado. Do ponto de vista do status quo, nada é mais conveniente do que uma esquerda empenhada em persuadir o indivíduo a acreditar que sua correção moral terá impacto significativo na forma como a diferença cultural é representada.
A ideia de apropriação cultural parte do princípio de que qualquer utilização exógena de artefatos culturais implica algum tipo de deturpação ou descaracterização de seu sentido original. Essa alegação está baseada na premissa de que esses artefatos possuem um significado essencial estável, uma pureza originária imutável. Sabemos, entretanto, que culturas são imensas colchas de retalhos continuamente feitas e refeitas: mosaicos que se expandem enquanto agregam, não museus que conservam a si próprios ao longo do tempo. E assim como o sentido de uma frase não está embutido nas palavras que a compõem, só podendo ser avaliado observando-se o contexto de sua enunciação, também o sentido do uso de um artefato cultural depende da circunstância em que ocorre.
No caso do Carnaval, é frequente o apelo para que foliões não usem turbantes, cocares, quimonos e hijabs, o que contribuiria para o processo de estereotipagem das culturas das quais tais artefatos são expressões. O equívoco está em supor que o artefato cultural, ao ser utilizado como fantasia carnavalesca, tenha esvaziado o seu significado. Justo o oposto, é exatamente porque seu significado já é outro que o artefato pode se fazer fantasia. A primeira afirmação supõe a ideia de perda: havia algo de originalmente verdadeiro no artefato, que se perdeu em função de seu uso. A segunda afirmação supõe a ideia de transformação, que dissolve de antemão a suposta obrigação de adequação a uma verdade tida como original. Sem transformação – temporária, mais como um travestimento – não há Carnaval. É a possibilidade de transformar-se naquilo de que se está fantasiado que liberta a pessoa da obrigação de ser quem ela é. Mas esse travestimento nunca é completo; ao contrário de um personagem de cinema ou de novela, casos em que há mais propriedade para a crítica ao estereótipo, o folião não deve convencer ninguém de que ele é, de fato, árabe ou pai de santo.
O estereótipo é metonímico, toma uma parte imaginária pelo todo. Nesse caso, a crítica acerta o alvo: fantasias como “nega maluca”, por exemplo, são representações de uma cultura opressora, não algo oriundo da cultura negra, cuja apropriação viria então distorcer. Mas, no geral, fantasias de Carnaval são alegóricas. Tudo o que elas têm a dizer de verdadeiro é sobre o sujeito que a encarna, não sobre a cultura ou grupo a que faz referência.
Ninguém que conheça um pouco da história dos movimentos sociais deixará de observar a importância da insubordinação, do confronto aguerrido, no estabelecimento progressivo do sucesso de suas reivindicações; os exemplos são muitos e por demais conhecidos para que percamos tempo relembrando-os aqui. A atuação de movimentos sociais contra-hegemônicos oferece uma ilustração do que Jacques Rancière qualifica propriamente de política: a luta dos excluídos (“aqueles que não têm parte”, no jargão do autor), ao se insurgir contra as forças do status quo, leva aos olhos aquilo que permanecia invisível, transforma em discurso aquilo que era percebido somente como ruído, enfim, altera a própria definição das fronteiras que separam o “dentro” e o “fora” de uma determinada comunidade política. Nesse sentido, tal luta não seria um mero complemento que, partindo das margens ou periferias, vem se somar a um determinado conjunto social já dado, mas sim um suplemento, cuja ação modifica a estrutura desse conjunto desde o seu interior.
Para além desse caráter agonístico, tanto em sua inscrição institucional, por meio da atuação de representantes eleitos, quanto através dos inúmeros atores individuais que avançam a luta em seus cotidianos, os movimentos sociais operam também sobre um eixo pedagógico, com a preocupação de conseguir uma transformação de sensibilidades, por meio da conscientização e desconstrução de preconceitos. Essa é uma distinção analítica; na prática, os aspectos “agonístico” e “pedagógico” misturam-se com frequência. A questão é que, ao invés de convergirem, de se reforçarem mutuamente, eles parecem na verdade estar se sabotando, o pedagógico sacrificado em função do agonístico. O trabalho de persuadir quem pensa diferente de você não fica exatamente mais fácil quando, em boa parte do tempo, você empenha sua energia na excomunhão dos impuros. Como estratégia de convencimento, tem alcance bastante limitado.
A pureza identitária exige um sistema de coerências cujos custos políticos superam os benefícios. É sintomático que boa parte da energia dos grupos identitários seja direcionada contra a própria esquerda – pois é apenas aí, no meio progressista, que a retórica e a moral associadas à noção de lugar de fala têm eficácia [2]. Mais ainda, é somente entre uma parcela da esquerda que o imperativo do “Cale-se e subscreva” pode ter alguma aderência. Afora o fato de que a cobrança de submissão incondicional de qualquer potencial aliado trabalha contra a ampliação da base da luta identitária, há ainda a dúvida acerca do próprio caráter dessa aderência. O silêncio dos “desconstruídos” que se recolhem ao seu “lugar de escuta” diante de qualquer discurso subalterno implica em respeito genuíno ou mero paternalismo? Acatar automaticamente argumentos por exigência, sem lhes dispensar atenção interessada e crítica, é um ato de condescendência, portanto desrespeitoso, como observou o filósofo Charles Taylor. Demandar reconhecimento absoluto ao que eu digo, somente por eu ser quem sou, é partir do princípio de que o conteúdo substantivo da minha fala talvez não baste; a singularidade e a potência do que tenho a dizer ficam rebaixados, escondidos atrás da minha identidade, essa sim merecedora de atenção e respeito.
No interior dos círculos ativistas, os efeitos desse ideal de pureza também não são exatamente auspiciosos. É que a estrutura do debate sobre identidade, a moldura dentro da qual essas discussões se dão, fecha-se numa redoma que asfixia inclusive o dissenso produtivo dentro dos próprios movimentos. A capacidade de operar mediações, de construir pontes, anda de mãos dadas com a habilidade de fazer distinções, e são justamente essas qualidades, indispensáveis à política, que as imposições da pureza identitária soterram. A fidelidade a esse princípio de pureza não cessa de mover as fronteiras que demarcam a construção do inimigo, trazendo-as cada vez mais para o interior do próprio campo progressista. Não é difícil imaginar, por exemplo, feministas que eventualmente concordem com alguns dos argumentos aqui expostos sendo acusadas de “dar biscoito” para um “esquerdomacho” branco e privilegiado.
Mas é na fricção produzida nas interações que ocorrem fora dos círculos de esquerda que as limitações da política identitária ficam mais nítidas. Há um hiato entre a justeza das reivindicações mobilizadas por tal política e a forma através da qual essas reivindicações são atualmente levadas adiante na esfera pública. Essa forma é parcialmente responsável pelo fato de a agenda identitária ser cada vez mais percebida como autoritária, logo ilegítima.
Representantes do segmento mais radical do movimento feminista, as chamadas radfems têm razão quando criticam o feminismo liberal (libfem) tanto por sua cegueira quanto à questão de classe, quanto por seu individualismo metodológico, que reduz tudo – adequação a ideais de beleza, preferências sexuais, prostituição etc. – a uma mera questão de escolha pessoal da mulher, como se não houvesse constrangimentos sistêmicos condicionando de antemão essas escolhas. Mas quando interagem na base do “Se você não tem um útero, não tem o que opinar sobre feminismo”, as feministas radicais fornecem material para a criação do estereótipo de que o machismo necessita para inventar o fantasma que passará então a lhe prover sustentação imaginária: não mais a mulher submissa que “pede” para ser dominada, mas a mulher autoritária que “pede” para ser combatida, em nome da liberdade. Eis o salvo-conduto fictício de que o machista necessita para justificar, para si próprio, a manutenção de seu papel na reprodução do sistema de opressão de que é parte: ele, homem, “apenas reage à feminazi”.
De modo análogo, há uma diferença significativa entre a crítica aos mecanismos sistêmicos de apropriação da cultura negra e a vigilância repressiva sobre a menina branca que usa turbante. Só uma desonestidade intelectual quase inimaginável poderia negar a validade de tal crítica; já a patrulha de costumes presta-se facilmente ao tipo de apropriação ideológica que acabo de descrever. Haveria de ser mera coincidência a crescente popularidade de uma noção tão estúpida e falaciosa quanto a de “racismo invertido”?
Valores não trazem em si a regra de sua aplicação. Mais ainda, valores são “troféus” políticos, passíveis de serem apropriados por este ou aquele grupo, e não apenas abstrações independentes de inscrições mundanas. Se, como observa o teórico da literatura Stanley Fish, esse troféu tiver sido capturado por uma força política adversária, não poderá ser mobilizado de um modo que ajude a nossa causa; terá, ao contrário, se transformado num obstáculo. Parte expressiva da política identitária ainda não percebeu que é exatamente o que vem acontecendo com o princípio da liberdade.
Quanto mais vigia e reprime costumes individuais nas ruas e redes sociais, mais entrega ao adversário a posse desse valor, convertido em arma política. Quando alguém exige que se abandone o uso de turbantes ou de fantasias de Carnaval, parece convicto de que sua reivindicação deve ter prioridade automática sobre a liberdade de seu interlocutor, mesmo que a ofensa daí advinda seja não intencional. O problema não é apenas a impossibilidade dessa exigência, dado que, em estados democráticos de direito, a reivindicação de respeito automático ao ofendido conflita com o princípio da liberdade. É que a própria exigência talvez tenha o efeito contrário ao esperado.
Está suficientemente claro que racistas, machistas, homofóbicos e preconceituosos em geral usam a liberdade como álibi para seu desejo nostálgico de voltar ao tempo em que podiam exercer sua opressão cotidiana sem serem incomodados. Mas se o álibi é uma desculpa epidérmica construída a fim de esconder algo de inconfessável, então o desafio está em expor sua verdade subjacente sem interditar o valor (a liberdade, no caso) do qual se vale para pintar sua fachada. Exibir aquilo que o álibi pretende ocultar talvez ajude na sua desconstrução; tentar silenciar o álibi em si, pelo constrangimento, não faz mais do que prover uma justificativa à sua reprodução. Facilita o trabalho de quem já está disposto a reduzir o ativismo identitário ao policiamento de liberdades.
Mais que atirar a pedra, é preciso se preocupar com onde ela irá cair. Essa preocupação, elementar em qualquer estratégia no campo da política, deveria merecer atenção redobrada por parte de movimentos contra-hegemônicos. Num texto postado em sua página pessoal no Facebook, o professor da Universidade de Pernambuco Acauam de Oliveira ilustrou bem os riscos a que se expõe parte do ativismo identitário, usando como exemplo a construção simbólica do racismo na linguagem. “As palavras com referência a claro e branco e afins têm conotação positiva, enquanto as com referência a escuro e negro e afins têm conotação negativa”, disse Acauam. Mas essa verdade tem seus limites. “As pessoas tiram a roupa do varal não porque a nuvem é negra, mas porque vai chover; o buraco negro não ‘rouba’ nada, e ‘claro’ tem função adverbial na frase ‘falar mais claro’, e não adjetiva.” O problema é que a generalização desse argumento sobre o racismo abre espaço para um contra-ataque igualmente generalizante: a verdade da dimensão simbólica do racismo na linguagem passa a ser considerada falsa porque alardeada como uma manipulação (que de fato eventualmente ocorre) tosca da esquerda. “Daí a se escrever outro ‘Guia politicamente incorreto’ pra desmistificar a farsa esquerdista”, concluiu Acauam, “é um pulo.”
A paixão que embala a autoimagem de quem se sabe integrante de uma revolução em andamento tem seus encantos e armadilhas. Por um lado, é fonte de inspiração indispensável à ação coletiva; por outro, dificulta o reconhecimento das contradições e limites dessa ação. Ao sujeito mergulhado na certeza de legitimidade de suas próprias reivindicações, é fácil perder de vista o fato de que a afirmação “o pessoal é político” é uma verdade óbvia somente para o campo progressista. A maioria que efetivamente decide eleições vê o mundo desde uma perspectiva em que a repressão direta quanto ao que se pode vestir e dizer aparece não como um imperativo ético justificado, mas como censura pura e simples, ou frescura sem razão de ser. De nada adianta dizer que a luta é contra essa perspectiva: isso deveria ser um motivo a mais, não a menos, para que se reflita sobre a melhor maneira de avançar essa luta. A vigilância repressiva de costumes, a desqualificação do interlocutor (e não de seu argumento), podem até ser moralmente reconfortantes, mas limitam-se a atacar o sintoma, não o problema em si. Infelizmente, investir contra o sintoma só faz adensar o nó que o gera.
Podemos agora dar um passo atrás, abrir o escopo de observação a fim de inscrever o exame da política identitária dentro da paisagem mais ampla de nosso tempo. O ideal de pureza, como princípio e fim da prática política, é o fio invisível que une correntes de direita e esquerda no ataque ao que vem sendo percebido como o fracasso da democracia representativa. Talvez haja algum exagero nessa afirmação, que certamente mereceria um tratamento melhor do que poderei dar aqui. E é quase desnecessário lembrar que esse ideal comparece de formas distintas, e com efeitos diferentes, em cada caso. O apelo à pureza étnica, por exemplo, difere bastante do elogio a líderes carismáticos que se oferecem como encarnação do “verdadeiro” povo. De qualquer maneira, é expressivo – e crescente – o desafio atualmente imposto ao funcionamento da democracia representativa.
A ascensão da democracia à condição de emblema dominante da política contemporânea caminhou a par do aumento de seu desencanto, o que não surpreende, dadas as respostas insuficientes que regimes democráticos vêm oferecendo aos múltiplos desafios com os quais precisam lidar.
São diversas as questões que fazem com que, aos olhos da opinião pública, a democracia apareça como incapaz de cumprir suas promessas. A crise de legitimação do Estado-nação, sua reduzida capacidade de atendimento às expectativas de populações cada vez mais longevas; o ataque frontal da racionalidade neoliberal aos fundamentos da soberania democrática, visando substituir seus princípios básicos – constitucionalismo, igualdade legal, liberdade civil e política, autonomia política e inclusão – por critérios de mercado, como custo/benefício, eficiência e lucratividade; a oligarquização dos partidos políticos, que, operando num jogo autorreferido, distanciam-se dos interesses que supostamente deveriam representar; a transferência progressiva, ao Poder Judiciário, de atribuições que cabem ao Legislativo; a consolidação do escândalo como linguagem da política, isto é, a quase incapacidade de pensar a atividade política fora de um campo semântico constituído por noções como revolta, desonra, indecência, vergonha, indignação; enfim, tudo somado, constatamos, aqui e alhures, a erosão da legitimidade da própria ideia de representação.
Tudo isso está bem documentado, mas a questão que realmente importa parece ser a altura mínima para o sarrafo das concessões feitas em nome da governabilidade, a linha que separa o aceitável do repulsivo, seja lá o que se consiga em troca. A resposta, naturalmente, varia ao gosto do freguês. E varia muito em função do grau de pureza a partir do qual se concebe o jogo político. Se você parte do princípio de que a verdadeira democracia só pode advir do protagonismo de um sujeito político intrinsecamente virtuoso, sua tolerância a concessões será baixíssima. Se, por outro lado, e contra inúmeras evidências disponíveis na literatura sobre o tema, você supõe verdadeiramente democráticos apenas os sistemas de participação direta, então sua tolerância a concessões típicas de mecanismos representativos também será baixa. Se, ainda que tendo boa vontade para com um determinado projeto político, você desconhece as dinâmicas estruturais de partidos em geral e do nosso presidencialismo de coalizão em particular, é provável que você acabe repreendendo-o por haver cometido o pecado de agir de acordo com a percepção de que a classe média intelectualizada, sozinha, não vence eleições. Eis algumas ilustrações de como perspectivas calcadas no princípio da pureza precisam desprezar as complexidades do mundo real para se fazerem sedutoras.
É nesse contexto que o populismo tem ressurgido como resposta às insuficiências dos sistemas democráticos. Quando a distância entre a promessa de “todo poder emana do povo” e a performance concreta do jogo representativo se esgarça a ponto de criar um vácuo totalmente preenchido pela percepção da democracia como processo autorreferido de negociatas intraoligárquicas, o populismo vem prometer um ideal renovado de prática política, livre de confabulações partidárias. Contra a rotina burocrática das instituições, o empoderamento de líderes carismáticos: o populismo, diz a historiadora Margaret Canovan, é uma resposta à assimetria entre o excesso da dimensão pragmática da política (o “toma lá, dá cá” contínuo, que resulta da negociação de interesses mundanos conflitantes) e o déficit de sua dimensão redentora (a promessa de resolução desses conflitos, a estabilidade de uma paz próspera).
Essa resposta admite graus de intensidade variados – desde um governo compatível com os marcos legais da democracia, até um regime autoritário, desestabilizador dos processos legislativos –, mas o importante é o dado de suspeição que ela necessariamente introduz acerca de qualquer instância de mediação. Enquanto forma de mobilização de paixões políticas, o populismo tanto pressupõe quanto reforça o fetiche do vínculo direto. Como observou Jan-Werner Müller num ensaio publicado aqui na piauí(“Populistas”, edição 124, janeiro), ao apresentar-se não apenas como porta-voz, mas como a encarnação mesma do “verdadeiro povo”, o líder populista reivindica para si um monopólio moral que postula automaticamente todos os adversários como ilegítimos, desonestos ou corruptos. “Aos olhos dos populistas e de seus seguidores”, escreve Müller, “toda mediação é distorção.”
Para conservar seu apelo imaginário, o princípio da pureza não pode admitir qualquer margem de manobra quando aplicado às situações concretas do mundo, o que por sinal evidencia seu caráter antipolítico. A impaciência com relação a concessões, o desprezo por processos institucionalizados de deliberações, o repúdio a qualquer forma de mediação – não parecem ser esses, cada vez mais, os traços distintivos da atmosfera política contemporânea? Aos olhos dos segmentos mais fervorosos da militância identitária, toda concessão não equivaleria à capitulação, logo à traição? Ao igualar o marcador de identidade à posição política específica do sujeito, a política identitária não apenas alimenta o fetiche do vínculo direto, como ainda rebaixa em seu horizonte de preocupações a questão da organização da luta política propriamente dita.
O trabalho árduo de conectar anseios particulares a um projeto coletivo é substituído pela exigência de lealdade incondicional a uma suposta essência, o que aliás assinala mais um personagem algo imaginário (uma “ficção ontológica”, no jargão da filosofia) com o qual os cientistas sociais terão que lidar. Ao lado do sujeito liberal, o homo oeconomicus auto-interessado e consciente de suas escolhas, e do sujeito bovino da teoria política desenvolvida na esteira de Schumpeter, temos agora um sujeito totalmente subsumido em vínculos de pertença identitária. Não é que tal sujeito não possa existir aqui e ali, empiricamente; é que o diagnóstico que lhe toma por base não nos ajuda a compreender questões relevantes da política atual, como por exemplo as razões que levaram cerca de 30% dos latinos e mais da metade das mulheres brancas norte-americanas a votarem num racista e predador sexual assumido nas últimas eleições presidenciais.
As exigências da pureza evocam a utopia de uma política e um mundo livre de contradições. O ideal de sujeito pressuposto pela política identitária é a pessoa que, consciente do imperativo de recolher-se ao seu lugar de escuta diante do outro subalterno, não apenas se abstém de emitir juízo acerca de qualquer realidade que não seja a sua própria, como ainda se curva em deferência absoluta ao discurso desse outro. Não se tratando propriamente de um interlocutor, mas de um ouvinte passivo, resta evidente o caráter antidialógico que subjaz a uma tal utopia. Não é precisamente essa a velha imagem do sonho liberal? Uma sociedade composta por indivíduos que, absortos nos narcisismos de suas pequenas diferenças, movimentam-se pela esfera pública somente sob a condição de causar o mínimo de atrito possível, se possível nenhum?[3]
Vista mais de perto, essa é uma concepção de política que já pressupõe uma capitulação fundamental: uma vez que o ideal republicano de bem comum teria se provado inatingível – ou pior, um engodo –, o melhor que teríamos a fazer é investir na defesa ferrenha do (nosso) particularismo. Essa dicotomia caminha a par com outra, igualmente cara à política identitária: dado que toda afirmação com pretensão à validade universal esconde uma vontade de poder imperialista e subjugante, só nos restaria a defesa intransigente de nossos próprios pontos de vista.
Pode-se recusar essas dicotomias sem abrir mão do compromisso de lutar por redistribuição e reconhecimento. Não é porque um ambiente 100% asséptico seja uma impossibilidade, diz a conhecida metáfora do antropólogo Clifford Geertz, que iremos realizar cirurgias no esgoto. A suspeita quanto ao substrato político das alegações de caráter universal não precisa desaguar num relativismo estéril. Rejeitar a noção de que seja possível falar sobre o mundo a partir de um lugar desinteressado não nos obriga a “escolher um lado” e aderir acriticamente a ele. Essa é uma perspectiva que exige a disposição para ver com bons olhos as contradições e os paradoxos, os hibridismos e os interstícios, tudo o que escapa a qualquer tentativa de ordenação binária da realidade [4]. Tarefa nada fácil, sobretudo em um ambiente de informação que dá ensejo não somente à engenharia do consenso – ou seja, a grande mídia pautando a agenda de debates na esfera pública –, mas à fermentação autorreferida do dissenso – as bolhas homogêneas nas redes sociais, cada vez mais surdas à diferença.
Acerta altura do romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o jovem Adso, aflito com mais uma morte misteriosa no mosteiro em que vivia, vai ao encontro de seu mestre, Guilherme de Baskerville. O corpo de um monge, conhecido pela voracidade do apetite, acabara de ser descoberto; como todos os outros mortos, tinha a língua e o dedo indicador manchados em coloração escura. Guilherme diz que o glutão “havia se tornado um puro”, e o rapaz questiona horrorizado: “Mas esta é a pureza?” “Haverá também as de uma outra espécie”, afirma Guilherme, “mas, seja qual for, sempre me dá medo.” Adso lhe pergunta o que o aterrorizava mais na pureza, ao que o mestre responde: “A pressa.”
Sociedade alguma poderá olhar a si própria no espelho e dizer-se justa enquanto suas estruturas reproduzirem relações de poder que violentem prática e simbolicamente a vida de seus cidadãos, sobretudo os mais vulneráveis. Enquanto houver subjugação, discriminação e exploração de mulheres, negros, homossexuais e minorias, haverá pressa na luta pelo direito de existir na diferença e de participar da vida pública em condições de igualdade. Mas, em política, convém não ignorar as armadilhas que o imperativo da ação imediata coloca. A pressa dos fins é mais do que necessária. A pressa dos meios, o dogmatismo dos que pretendem lacrar o debate político, arrisca a retrair, no interior do próprio campo progressista, o espaço necessário ao pensamento.
[1] O texto pode ser lido em http://esquerdaonline.com.br/2017/01/08/sobre-o-lugar-de-fala/
[2] Agradeço a Sérgio Martins por haver chamado a minha atenção para esse ponto.
[3] Devo o argumento a José Eisenberg.
[4] O que não significa abraçar de modo ingênuo o elogio da mistura: quem quer que tenha lido a história que Gilberto Freyre conta sobre a escravidão brasileira conhece bem os problemas desse elogio.
http://piaui.folha.uol.com.br/materia/pureza-e-poder/
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