HUMBERTO LAUDARES – Há alguns dias, algum editor da página do Instituto Mises Brasil no Facebook postou um texto argumentando que sociedades culturalmente mais homogêneas causam menor desigualdade social. O texto concluía “se o Brasil fosse inteiramente formado por uma população como a do interior do Rio Grande do Sul ou de Santa Catarina, a desigualdade seria tão baixa quanto a dos (países) nórdicos. Igualmente, se fosse inteiramente formado por uma população como a do interior do Maranhão ou do Piauí, também seria baixa. E mais pobre.”
A mensagem viralizou. Após alguns dias e muitas críticas, a postagem foi apagada e até mesmo rechaçada por outros membros do próprio instituto.
O curioso é que o austríaco e filho de pais judeus Ludwig von Mises, que dá nome ao instituto, imigrou para Nova York em 1940. Ele se juntou aos outros 11 milhões de imigrantes que viviam nos Estados Unidos naquela época, ampliando o multiculturalismo do país que o acolheu.
Achar que a homogeneidade da sociedade é a chave para explicar o desenvolvimento das nações não parece ser um caminho promissor. Além disso, é perigoso. Por isso mesmo, vou insistir no assunto. Afinal, são temas caros ao desenvolvimento e à própria história do Brasil, mas muito difíceis de serem relacionados empiricamente.
A partir da literatura científica, sabemos que o multiculturalismo, a diversidade étnica, contribui para que um país tenha uma vasta gama de pessoas com diferentes habilidades, nível educacional e posse de bens que facilitam a inovação e aumentam a produtividade da economia. Ao mesmo tempo, há registros de que diversidade étnica está associada com políticas públicas ineficientes, instituições menos inclusivas e conflitos derivados do ódio baseado nas próprias diferenças entre os grupos existentes. Por exemplo, a fragmentação etnolinguística tem correlação negativa com o desempenho econômico em diversas dimensões, com exceção em países mais ricos.
Pego dois países que me são mais familiares para fins ilustrativos. O primeiro é Ruanda, um país povoado majoritariamente pelas etnias tutsi e hutu. A rivalidade entre os grupos gerou uma guerra civil entre 1990 e 1995. Como resultado, a população do país reduziu-se em 25%. Parte dessas pessoas emigraram. Estima-se que 11% da população foi assassinada. O país ficou 57% mais pobre no período da guerra civil.
O segundo é a Suíça, um país com quatro idiomas oficiais e do tamanho do estado do Espírito Santo. Um a cada quatro residentes na Suíça é imigrante. Além disso, 36% dos casamentos no país se dão entre nacionais e imigrantes. (Esse é o caso da Anna, minha esposa). A Suíça é, deste modo, bastante multicultural, até porque precisa ser para que sua economia seja ainda mais dinâmica. Segundo as estimativas do Fundo Monetário Internacional, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita da Suíça é o segundo mais alto do mundo, atingindo US$ 79 mil por ano (para efeito de comparação, o do Brasil é de US$ 8,7 mil e ocupa a 69º posição no ranking). Como um país rico, a fragmentação etnolinguística e o desempenho econômico não são negativamente correlacionados.
Ao mesmo tempo, desigualdade de renda traz problemas para uma sociedade, aumentando o crime, atrapalhando os mais pobres de adquirirem educação de qualidade ou distorcendo o funcionamento da democracia. Como brasileiros, sabemos bem disso. Mas, desde os tempos do economista e Prêmio Nobel em 1971 Simon Kuznets, há quem argui que desigualdade de renda pode ter efeitos positivos na promoção da inovação e no empreendedorismo em primeiro momento. De qualquer forma, a relação entre desigualdade e desenvolvimento não é consensual.
Tais fatores tornam ainda mais complexo relacionar multiculturalismo com desigualdade. Os economistas Alberto Alesina (Universidade Harvard), Stelios Michalopoulos (Universidade Brown) e Elias Papaioannou (London School of Economics) publicaram um artigo no ano passado no Journal of Political Economy que ajuda a esclarecer essa questão.
A partir de mapas linguísticos espacialmente distribuídos ao redor do mundo e usando dados de satélite, os autores criaram um índice de desigualdade étnica, que captura as variações de renda e bem-estar entre diferentes grupos da população, fundindo as questões de multiculturalismo e desigualdade de renda. Curiosamente, esses dados de desigualdade étnica não são correlacionados com desigualdade social ou fragmentação étnica. Os autores mostram que quanto mais desigualdade houver entre grupos multiculturais, menor tende a ser a riqueza média por habilitante. Ou seja, desigualdade étnica é ruim para o desenvolvimento.
O artigo de Alesina, Michalopoulos e Papaioannou aponta um novo olhar para a relação entre multiculturalismo e desigualdade. Mesmo assim, os próprios autores sugerem que seria importante entender como se criar políticas públicas que funcionem para reduzir a desigualdade entre diferentes grupos étnicos. Minha impressão é que a resposta aqui passa necessariamente, embora não exclusivamente, pela consolidação de instituições que sejam inclusivas e capazes de mediar conflitos eficientemente numa sociedade plural e complexa.
O também austríaco e judeu Stefan Zweig mudou-se para o Brasil em 1941. Para ele, “enquanto o Velho Mundo está mais do que nunca guiado por uma tentativa insana de procriar pessoas de raça pura, assim como cavalos de corrida e cachorros, a nação brasileira tem sido construída ao longo dos séculos pelo princípio de miscigenação livre e ilimitada”.
O Brasil está longe de ser uma democracia racial plena, mas é muito difícil imaginar que a desigualdade brasileira é explicada pela miscigenação, até porque ela quebra barreiras étnicas, como sugere o artigo citado acima. É mais simples de acreditar, como Zweig mesmo notou, que as mazelas brasileiras e as desigualdades frutificaram por falhas em políticas públicas.
O bom desta história é que a ciência econômica desenvolveu-se muito desde os seminários de “praxeologia” lecionados por Ludwig von Mises na Universidade New York ou das caminhadas de Stefan Zweig pelas ruas de Petrópolis. Uma das principais transformações ocorridas foi um maior rigor com a análise empírica, a qual pode informar o debate sobre questões públicas e iluminar os ambientes dominados por ideologias ou achismos.
https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2017/Multiculturalismo-gera-desigualdade
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