Eleutério F. S. Prado – Num curioso artigo, dois deles admitem — oh! — que o domínio do capital financeiro provoca instabilidades e crises. Mas logo propõem uma “saída”. Mudanças? Nunca: que as sociedades salvem os bancos!
Dois macroeconomistas consagrados na academia norte-americana, Olivier Blanchard e Lawrence Summers[1], juntaram-se para escrever uma proposta de reformulação das práticas de política e de regulação econômica e, talvez (isto não está claro), de mudança da macroeconomia atualmente ensinada nos cursos ditos mainstream de Economics.[2] Eis o seu título algo inesperado para os acólitos: Repensando a política de estabilização. De volta para o futuro. Ao lê-la honestamente, um economista sério, mas não competente de acordo com os padrões vigentes, não pode deixar de pensar que a macroeconomia neoclássica está completamente aturdida, inteiramente atarantada. Eis aqui um dos parágrafos que abrem o escrito:
É obvio, a crise forçou os macroeconomistas a (re)descobrirem o papel e a complexidade do setor financeiro, assim como o perigo das crises financeiras. Mas o aprendizado tem de ir bem além; eis que os obriga a questionar uma série de crenças muito queridas. Os eventos dos últimos dez anos colocaram em questão, entre outras fés, a presunção de que o sistema econômico estabiliza-se por si mesmo, e trouxeram de novo a questão de saber se choques temporários podem ter efeitos permanentes, mostrando inclusive a importância das não-linearidades. (Blanchard e Summers, 2017, p. 2).
Diante dessa declaração, algo parece bem certo: nada como a crítica da própria história para rebaixar a pretensão de sabedoria dos economistas do sistema cuja arrogância extrapola usualmente aquele mínimo de senso crítico que é inerente ao esforço científico, mesmo vulgar. Mas, ainda assim, essa crítica não parece ter sido capaz de fazer com que eles aprendessem a raciocinar de modo rigoroso[3].
Veja-se: falar em não-linearidade recomenda que se pense o sistema econômico como um sistema dinâmico que contém não apenas realimentação negativa (ou seja, rendimentos decrescentes) tal como reza o consenso neoclássico, mas também realimentação positiva (ou seja, rendimentos crescentes em escala). Ora, isto requer que se entenda o sistema econômico como um processo apenas descritível, em primeiro lugar, por meio de sistemas dinâmicos que operam fora e longe do equilíbrio – e não basicamente por meio de modelos estáticos, os quais pressupõem (sem prova, é claro) que este equilíbrio seja estável e fortemente atraente. A virada que querem dar deveria implicar, portanto, que não se deveria mais pensar o sistema econômico real como um sistema teoricamente estável, que flutua apenas moderadamente porque recebe choques exógenos.
Mas não é por essa senda que querem caminhar. Como se sabe, a tradição à qual pertencem abandonou totalmente no curso do último século, na verdade antes ainda que o século XX tivesse começado, a possibilidade de pensar o sistema econômico como um processo temporal que se move por impulsos endógenos. É bem sabido que o medo pânico de pensar o devir do sistema econômico a partir de suas próprias contradições estruturais, as quais afloram fenomenalmente por meio de desequilíbrios constantes, levou toda uma tradição de economistas, a negar a verdadeira natureza desse sistema no plano do pensamento. Alarmados com as revelações incomodas da teoria clássica, eles trabalharam duro na construção de uma idealização que vê nesse sistema a harmonia, o funcionamento equilibrado, a realização do bem-estar. A partir daí passaram, então, a se abrigar sob o teto de várias versões da teoria neoclássica e mesmo da teoria keynesiana – neste último caso, sob a cobertura de uma síntese devidamente despida, obviamente, de qualquer elemento crítico em relação ao próprio sistema econômico.
Entretanto, o baque da crise de 2008, assim como a deflação das perspectivas de crescimento no futuro, deixou os macroeconomistas desse sistema bem atordoados. Eis como Blanchard e Summers explicam porque empregaram a expressão back to the future:
Por que escolhemos adicionar “de volta para o futuro” no título do artigo? Porque achamos que as lições básicas a tirar da Grande crise financeira são similares àquelas alcançadas pela revolução keynesiana como resposta à Grande depressão. As economias podem ser afetadas por choques fortes e, por isso, não é de se esperar que elas se estabilizem a si mesmas, automaticamente. Não temos dúvida, na ausência de respostas de política fiscal e de política monetária, a crise financeira teria produzido um resultado tão ruim ou pior do que aquele observado na Grande depressão. Eis que as políticas fortes de estabilização se afiguram, por isso, como essenciais. (Blanchard e Summers, 2017, p. 20).
Na verdade, não apenas passaram a se recordar de Keynes, mas também, junto com o próprio mercado financeiro, foram pragmaticamente despertados para as análises de Hyman Minsky. Este economista pós-keynesiano havia avisado “por décadas sobre as consequências do crescimento do risco financeiro”; esse risco sempre existira, mas “o paradigma macroeconômico prevalecente ignorava a possibilidade de crises financeiras” (Blanchard e Summers, 2017, p. 5). Trata-se, sem dúvida, de uma confissão e tanto…
No artigo em que ventilam essas ideias, entretanto, não há qualquer análise do que produziu essa grande crise financeira. A razão provável é que eles a consideram como produto de um choque adverso e não como uma decorrência de um processo de desequilíbrio interno ao próprio movimento do sistema econômico. E sendo um choque, a culpa do evento só pode ser atribuída a falhas de governo, a erros de política econômica… ou, talvez mesmo, às manchas solares…
Ora, como se sabe, a macroeconomia convencional não apenas ignora o sistema financeiro, eis que ela ignora também o dinheiro enquanto tal. Eis que o considera apenas como meio de troca, algo neutro que não afeta essencialmente o funcionamento do sistema econômico. Ela o substitui por um instrumento idealizado que apenas facilita as trocas e que não tem jamais a função de meio de entesouramento e de meio de pagamento -e esta última função, como se sabe, pressupõe o crédito; portanto, o sistema de crédito, que é essencial para o funcionamento daquilo que chamam de market economy. E é essencial porque nele se move o capital de financiamento, o capital portador de juros, sem o qual o capital industrial – o capital que comanda a produção de mercadorias reais – estaria severamente limitado em sua ambição de obter lucros e mais lucros, insaciavelmente.
A crítica da história e do próprio mal funcionamento do sistema da relação de capital abriu os olhos dos macroeconomistas do sistema para aquilo que pós-keynesianos e marxistas (alguns[4]) chamam de financeirização do capitalismo. Agora, por isso, os seus olhos estão bem arregalados, mas eles ainda não sabem bem o que fazer com essa impertinente intromissão da realidade na teoria econômica que, evidentemente, apesar de tudo, eles consideram como muito, muito, muito competente.
Eles pressentiram, mas se mostram incapazes de compreender a mutação histórica do capitalismo no correr dos anos após a II Guerra Mundial. Eis que a “era de ouro” se transformou pouco a pouco na “era da tina”. Pois, o próprio desenvolvimento do capital industrial altamente concentrado e centralizado requereu o desenvolvimento do capital de financiamento e, assim, a enorme ampliação do setor financeiro. Eis que nesse processo ocorreu algo que fora previsto por Marx, qual seja, a emergência histórica de uma ampla socialização do capital, do descolamento da propriedade do capital do capital em funcionamento. E isto se manifesta no fato iniludível de que o poder de comando se encontra hoje concentrada nos agentes financeiros (bancos, seguradoras, etc.) – que manipulam os fundos de ações e de títulos de várias espécies, assim como a emissão dinheiro de crédito e o financiamento em escala nacional e mundial – e não com os capitalistas industriais enquanto tais. Eis que, assim, deixou de predominar a lógica do capital industrial na orientação do sistema (D – M – D’), passando a vigorar a lógica do capital portador de juros (D – D’).
Ora, é preciso ver que o próprio Minsky nunca deixou de considerar que a teoria tinha um papel crucial na compreensão do sistema econômico, deste sistema que aí está e que ele chamava também pelo seu nome: capitalismo. Eis que a teoria – disse – pode funcionar “como uma lente e como um tapa-olhos”. Veja-se, pois, o que escreveu sobre o papel da teoria que domina entre os economistas:
No interior da teoria econômica padrão atual, que é usualmente chamada de síntese neoclássica, a questão “por que nossa economia é tão instável” é simplesmente sem sentido. A teoria econômica padrão não apenas impede a explanação da instabilidade como atributo do sistema, mas ela realmente não reconhece que ela é endógena e que consiste num problema que uma teoria satisfatória teria necessariamente de explanar. (Minsky, 2008, p. 109).
Mesmo se Blanchard e Summers não dão indicação de que querem reformular radicalmente a teoria padrão recebida, eles têm sugestões pragmáticas e amplamente triviais de como enfrentar os problemas trazidos pelas crises financeiras. Procuram apenas – e isto mostra bem o nível da dupla – evitar as suas consequências que consideram como perversas. Para salvar os bancos, o sistema financeiro e, assim, o capitalismo, preveem que se faz necessário:
Um uso combinado de ferramentas de política macroeconômica tendo em vista reduzir os riscos e reagir mais agressivamente aos choques adversos. Uma política monetária mais enérgica que crie o espaço necessário para arrostar os choques adversos (…) prover liquidez generosa se e quando for necessário. Um uso pesado da política fiscal como ferramenta de estabilização e uma atitude mais relaxada frente à consolidação das dívidas. Uma regulação financeira mais ativa, sabendo que (…) as políticas macro prudenciais não eliminarão os riscos financeiros. (Blanchard e Summers, 2017).
Para fazer melhor e para voltar de fato para o futuro, seja no plano da teoria seja no plano da política econômica, eles teriam de retornar não apenas de modo estritamente superficial à Teoria Geral de Keynes e à teoria da instabilidade financeira de Minsky, mas ao ano de 1776, bem distante agora, quando foi publicada pela primeira vez A riqueza das nações. Aí, sim, eles estariam sendo revolucionários.
Quando Adam Smith, ainda no século XVIII, escreveu que “o preço natural é como que o preço central ao redor do qual continuamente estão gravitando os preços de todas as mercadorias” (Smith, 1983, p. 85), ele admitiu de modo explícito a natureza intrinsecamente anárquica e turbulenta do capitalismo. Quando ele dispôs em sua obra magna todo um capítulo sobre o dinheiro como um setor específico do capital geral da sociedade, ele mostrou que já se preocupava com o seu papel na estabilidade do sistema econômico. Aí, por exemplo, ele ponderou: “importa reconhecer, porém, que o comércio e a indústria do país, embora possam ser de certo modo ampliados por essas operações bancárias, no global não desfrutam de tanta segurança, já que estão, por assim dizer, suspensas nas asas de Dédalo[5] do papel-moeda” (Smith, 1983, p. 277). É claro, muita água já correu na correnteza da teoria econômica burguesa e do próprio capitalismo…
Para Minsky, que observa o sistema depois da II Guerra Mundial, “a instabilidade é um resultado do processo interno da economia capitalista” (Minsky, 2008, p. 114). Entretanto, segundo ele, tal tendência ao desbalanceamento não é inerente ao sistema como um todo, mas apenas ao seu subsistema financeiro. Assim, primeiro ele diz que “o mecanismo de preço de uma economia capitalista descentralizada pode levar a resultados coerentes desde que esteja regrado por instituições e políticas adequadas. Para depois, completar: “a intervenção pode ser necessária embora se possa confiar no mecanismo de mercado para que tome conta dos detalhes” (Minsky, 2008, p. 117). Donde provém, então, a instabilidade endógena do sistema? Advém daqueles mercados que supostamente não operam segundo o que denomina de princípio de substituição[6]:
Se o princípio de substituição é suficientemente forte, então os mercados descentralizados são instrumentos confiáveis na alocação de produtos para as famílias e insumo para as empresas. Porém, nos mercados de capitais e financeiros, nos quais os elementos conjecturais e especulativos são poderosos, o princípio de substituição não funciona. Um aumento do preço relativo de algum conjunto de instrumentos financeiros ou de ativos de capital pode elevar a quantidade demandada desses mesmos instrumentos e ativos. Um aumento de preço pode alimentar as condições que conduzem a um aumento subsequente. (Minsky, 2008, p. 117).
É assim, pois, que esse autor pós-keynesiano descreve a geração de instabilidade no capitalismo. Ora, se ele a descreve, faz isso de um modo restritivo e, mesmo assim, sem explicá-la adequadamente. Para compreender melhor o problema é preciso observar uma diferença crucial entre o circuito do capital industrial e o circuito do capital portador de juros, anotando desde logo que o próprio processo de acumulação do capital industrial gera, sim, também, instabilidade – e que isto já era perfeitamente conhecido nos albores do século XIX. Há muito tempo os episódios de superprodução vêm mostrando que há também não linearidade e realimentação positiva na dinâmica de acumulação do capital industrial – ainda que, talvez, não tão intensos quanto aqueles que ocorrem na esfera da finança, do capital portador de juros.
De qualquer modo, Minsky estabelece uma dicotomia: de um lado, tem-se o “setor real” que seria quase-estável – mas que se torna bem estável quando vem a ser bem gerenciado, isto é, quando passa a ser administrado pelos próprios economistas keynesianos – e, de outro, tem-se o “setor financeiro” que é intrinsecamente instável e que precisa ser constrangido fortemente por meio de regulação estatal. As conexões entre o capital industrial e o capital portador de juros, assim, não são apreendidas corretamente nem no plano teórico nem no plano da compreensão histórica. E isto permite manter a crença na perenidade do capitalismo.
Quando o circuito do capital assume a forma D – M – D’, o fetiche do capital industrial diz que ele próprio produz ou que ajuda a produzir o mais-valor, isto é, D’ menos D; entretanto, nesse caso, a memória de que essa produção requer trabalho não pode ser suprimida. O capitalista industrial sabe perfeitamente que é apenas por meio de um duro processo de produção, o qual envolve sempre muito suor, alguma lágrima e mesmo sangue, que ele obtém lucro.
Ocorre algo diferente quando o circuito do capital assume a forma D – D’. Agora, o fetiche do capital portador de juros parece dizer que o próprio dinheiro é capaz de produzir mais dinheiro. Ora, se isto é o que parece do ponto de vista do capitalista financeiro em particular – eis que agora não há mais qualquer memória do trabalho –, não é verdade do ponto de vista do sistema capitalista como um todo. As ações, os títulos privados e públicos são apenas formas de capital fictício, demandam remuneração, mas não comandam a produção de valor. Por isso mesmo é que o capital ganha certa autonomia formal de valorização na esfera financeira – ele “pensa” que não depende do trabalho, mas apenas de si mesmo para se valorizar[7]. É esse fetiche, portanto – um absurdo real segundo Marx –, que se encontra na base da especulação e da irracionalidade sempre observada nos mercados financeiros.
Blanchard e Summers suspeitam que um certo desvairio é inerente aos mercados financeiros; por isso, quase no final do artigo, não deixam de confessar: “nenhuma regulação financeira ou política macroprudencial eliminará os riscos financeiros” (Blanchard e Summers, 2017, p. 21). Ora, eles deveriam concluir também, contra toda a tradição que abraçam, que nenhuma combinação de política econômica pode eliminar as crises do capitalismo.
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[1] Olivier Blanchard, entre outras posições, atuou como economista-chefe do FMI; Larry Summers foi Secretário do Tesouro no governo Bill Clinton.
[2] Trata-se de um texto preparado para ser apresentado na abertura de um seminário sobre o tema “rethinking macro policy”, promovido pelo Peterson Institute for International Economics e realizado em outubro de 2017.
[3] Não se deve confundir “rigoroso” com “exato”. Pois, os economistas do sistema sabem, sim, construir modelos matemáticos exatos, os quais eles pretendem que sejam – em geral não são – conceitualmente rigorosos. Ao contrário, a teoria econômica vulgar – aquela que apreende apenas os nexos externos entre os fenômenos – é em geral conceitualmente frouxa.
[4] Se o termo “financeirização” é usado para indicar o surgimento de uma anomalia na economia capitalista, então, ele é um equívoco do ponto de vista marxista.
[5] Como se sabe, na mitologia grega, Dédalo é um arquiteto capaz de construir maravilhas (asas que permitem ao homem voar bem alto, por exemplo) e enormes desastres (uma queda fatal no chão, na terra ou no mar, para continuar o exemplo).
[6] Segundo Minsky, “este princípio estabelece que preços relativos altos tendem a desencorajar e preços relativos baixos tendem a encorajar o emprego da mercadoria ou serviço apreçado” (2008, p. 117). Note-se que ele enxerga o desequilíbrio pela demanda, mas deveria vê-lo pela oferta. Quando um capitalista ganha dinheiro com a venda de uma determinada mercadoria, ganancioso, ele pode sim, episodicamente, produzir um excesso crescente dessa mercadoria.
[7] Na verdade, como se sabe, são os seus suportes “humanos” é que pensam por ele; eis que eles internalizam na própria subjetividade, com um certo espírito de sacrifício e não sem um certo tanto de alegria, a meta objetiva do próprio capital.
Referências bibliográficas
Blanchard, Olivier; Summers, Lawrence – Rethinking stabilization policy. Back to the future. Peterson Institute for International Economics, out. 2017.
Minsky, Hyman P. – Stabilizing an unstable economy. New York: McGraw Hill, 2008.
Smith, Adam – A riqueza das nações – Investigação sobre sua natureza e suas causas. Volume I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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