Otaviano Helene – Neste terceiro artigo de uma pequena série sobre a educação brasileira, será examinada uma de suas características mais perversas e danosas para o futuro do país e a construção da democracia: a desigualdade. A desigualdade educacional está relacionada com a desigualdade na distribuição de renda no país, pois ambas, em um país cuja escola pública é precária e subfinanciada e a educação é mercadoria a ser vendida e comprada, se realimentam intensamente, formando um cruel círculo vicioso.
A concentração de renda no Brasil é uma das piores do mundo e, por volta de 1990, fomos, nada mais, nada menos do que o país mais desigual e injusto de todo o mundo. Durante toda a década de 1990, a concentração de renda no Brasil pouco se alterou. Apenas a partir de 2000, aproximadamente, a concentração de renda no país começou a retroceder. Apesar disso, como partimos de uma péssima situação e evoluímos muito lentamente, ainda hoje estamos no grupo dos 10 países mais desiguais do mundo (1).
A concentração de renda brasileira é tal que basta ter um rendimento domiciliar por pessoa da ordem de um salário mínimo para estar na metade mais bem aquinhoada da população. Note que essa renda deve custear todas as despesas, como moradia, alimentação, vestimenta, transporte, saúde etc. (para fazer parte dos 10% mais ricos, é necessário ter uma renda domiciliar por pessoa próxima dos quatro mil reais ou uma renda individual da ordem do dobro disso (2)).
A renda média do grupo formado pelos 10% mais ricos é quase 40 vezes maior do que a renda média dos 10% mais pobres. Ou seja, o que um membro típico do primeiro grupo ganha e gasta em um dia, um membro daquele grupo mais pobre ganha e gasta durante todo um mês.
Evidentemente, essa enorme desigualdade na distribuição de renda brasileira não é um fato da natureza, mas uma construção política e social para a qual a educação muito contribui. Quase a metade dos trabalhadores brasileiros não completou o ensino fundamental. Consequentemente, pessoas desse grupo ocupam posições inferiorizadas na sociedade e no mundo do trabalho e têm baixa renda: o rendimento médio desse grupo é da ordem de um salário mínimo mensal (note que essa é a média; um grande contingente de tal grupo ganha e gasta menos do que a metade dessa média).
Ser excluído do ensino fundamental antes de sua conclusão não foi uma escolha daquelas pessoas quando crianças. Assim, tais pessoas foram vítimas pelo menos duas vezes: ao serem excluídas do sistema educacional e, por causa disso, ao ocuparem posições inferiorizadas na sociedade.
Frequentar uma escola custa caro
Um dos fatores mais importantes para a exclusão da escola é seu custo. Apesar de não ter mensalidades, a frequência à escola pública tem custos diretos e indiretos, pois impede que jovens e crianças se dediquem a atividades econômicas ou que contribuam com os serviços domésticos (como cozinhar, tomar conta de parentes idosos ou de irmãos menores etc.), coisas que têm impacto financeiro direto, no primeiro caso, e indireto, no segundo. Além disso, a frequência escolar induz despesas diretas com material escolar, uniforme e transporte, por exemplo, e indiretas, como sapatos e roupas em melhor estado do que aqueles usados em casa, uso de um possível espaço para estudo ou para guardar material escolar etc.
Embora os fatos possam parecer menores quando olhados da perspectiva dos grupos menos desfavorecidos, eles são muito importantes para aqueles que estão em uma faixa de renda inferior a um salário mínimo por pessoa por mês – o limiar entre as metades mais e menos pobre da população. Para a décima parte mais desfavorecida da população, cuja renda por pessoa é inferior a cinco ou dez reais por dia (insistindo: rendas que devem ser destinadas à moradia, alimentação, vestimenta etc.), aquelas despesas diretas e indiretas ou a perda de renda proveniente da frequência escolar são barreiras absolutamente intransponíveis.
Os poucos e modestíssimos instrumentos de gratuidade ativa são insuficientes para compensar as despesas diretas e indiretas pela frequência à escola. Esse fato, combinado com a pouca proteção que o país oferece a suas crianças e adolescentes, à falta de recursos nas escolas para dar um atendimento especial para aqueles que necessitam, da violência dentro e fora das escolas, do abandono no qual vivem muitas crianças e de muitos outros problemas, acabam por fazer com que um enorme contingente de crianças e jovens sejam impedidas de dar continuidade aos estudos. A consequência é que uma em cada 4 crianças deixa o ensino fundamental sem completá-lo e quase metade das pessoas abandona a escola sem completar o ensino médio.
Desigualdade educacional
A desigualdade educacional no Brasil, que acompanha a desigualdade de renda e patrimônio, é enorme e, quando medida em dinheiro, mostra toda sua perversidade.
Nos extremos mais pobres, todo o investimento educacional feito na educação de uma criança limita-se àqueles poucos anos de escola pública, que pode não ser maior do que dez ou vinte mil reais ao longo de toda a vida para aqueles que não concluem o ensino fundamental. No extremo mais rico, os investimentos estritamente escolares podem superar um milhão de reais ao longo da vida, sejam eles em instituições privadas ou públicas. Incluindo-se aulas particulares, cursos de línguas, compra de materiais educacionais, viagens culturais e muitas outras coisas comuns nos segmentos mais ricos e totalmente inexistentes nos grupos mais pobres, os valores são ainda maiores. Ou seja, o investimento educacional de uma criança pobre ao longo de toda a vida pode não ser maior do que o investimento educacional de uma criança proveniente dos estratos mais favorecidos da população em alguns poucos meses.
O quadro abaixo dá uma ideia do nível educacional com que crianças e jovens provenientes de quatro grupos populacionais de igual tamanho (cerca de 50 milhões de pessoas cada) deixam, hoje, o sistema educacional. Além do que a tabela explicita, há aspectos qualitativos escondidos: a escola frequentada por aquelas crianças provenientes dos grupos mais pobres e que a abandonaram depois de poucos anos nada tem a ver com a escola dos mais ricos.
Renda domiciliar per capita, em salários mínimos por mês |
Situação escolar típica das crianças e jovens de cada grupo |
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Abaixo de meio |
Não concluem o Ensino Fundamental |
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Entre meio e um |
Concluem o Fundamental, mas não o Médio |
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Entre um e dois |
Concluem o Médio, mas não o Superior |
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Acima de dois |
Grande parte conclui o Ensino Superior |
A consequência disso tudo é que o desenvolvimento escolar da população, além de, em média, ser muito baixo, é muito desigual, reproduzindo o que ocorre com a distribuição de renda do país. No futuro, a desigualdade educacional dará origem a uma população com enorme desigualdade de renda. A combinação baixa renda hoje implica em baixa escolaridade dos filhos ou dependentes; no futuro, estes, por terem baixa escolaridade, terão baixa renda, forma um círculo vicioso muito perverso.
Caso o Brasil quisesse construir um futuro menos desigual, precisaria garantir que o sistema educacional também fosse menos desigual, fazendo com que a condição de escolarização do pobre fosse igual à do rico. Isso feito, os fatores de desigualdade se restringiriam àquilo que é conseguido fora da escola. Mas, ao contrário, o que tem ocorrido, em especial com as medidas tomadas após o golpe de 2016, é aumentar ainda mais a desigualdade por meio do sistema educacional.
Isso ocorre por vários fatores, inclusive pela diminuição dos gastos públicos com educação pública (como a provocada pela emenda constitucional 95, apelidada, quando em tramitação, de PEC do fim do mundo, em parte reproduzida por estados e municípios) e pela transformação cada vez maior da educação em uma simples mercadoria a ser comprada segundo as possibilidades de cada um. Vale lembrar que o secretário de educação paulista entende que, excluídas segurança e justiça, “tudo o mais (educação inclusive) deveria ser providenciado pelos particulares” (3).
Evidentemente, quem pensa assim e age de acordo com essa norma está defendendo a manutenção da desigualdade, a exclusão social, a marginalização dos filhos dos pobres, a concentração de renda, a violência, a manutenção da pobreza; enfim, tudo que de pior os grupos economicamente dominantes têm imposto ao país.
Conclusão
Para que o Brasil fosse hoje um país realmente democrático, deveria, no passado, ter tratado de forma igualitária suas crianças, independentemente de suas condições geográficas, étnicas e econômicas. Como isso não ocorreu, temos hoje um padrão terrível de exclusão, desigualdade e marginalização que impede o estabelecimento de uma sociedade plenamente democrática. Para que tenhamos, no futuro, as condições necessárias para a democracia, deveríamos garantir, hoje, os direitos à educação a todas as pessoas. Mas fazer isso “bate de frente” com os interesses mesquinhos dos grupos dominantes. Assim, a tarefa imediata seria enfrentar esta barreira, inclusive denunciando os métodos usados para impedir o desenvolvimento de um sistema educacional igualitário no país.
Tais métodos incluem a desqualificação do sistema público e dos que nele trabalham e estudam. Essa desqualificação é usada para justificar a negação dos recursos financeiros necessários para melhorar as condições de trabalho (salário incluído) e estudo nas escolas públicas brasileiras (4). Ora, a falta de recursos é um projeto político dos grupos dominantes, não uma realidade que não se pode mudar: muitos países equivalentes ao Brasil têm sistemas educacionais muito melhores do que o nosso. Mantida a atual situação educacional, não há nenhuma possibilidade de um futuro realmente democrático: estamos construindo, agora e por meio do sistema educacional, nosso atraso futuro.
A forma de se implementar tal projeto político e a consequente carência de recursos públicos passa pela enorme sonegação fiscal, por isenções de impostos, por subsídios para o setor educacional privado em detrimento do público, pelas alíquotas baixas dos impostos diretos, pelo praticamente inexistente imposto sobre grandes patrimônios. Vamos, em um próximo artigo, investigar a forma com que esses recursos são subtraídos, avaliar seu montante em cada caso e a consequência prática da subtração.
Notas:
1) Considerando a média do índice de Gini dos últimos dez anos, o Brasil ocupa a nona pior posição. Além do Brasil, os dez países mais desiguais incluem África do Sul, Botsuana, Colômbia, Honduras, Lesoto, Namíbia, Panamá, República Centro Africana e Zâmbia. (Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=2&series=SI.POV.GINI,SI.DST.FRST.10,SI.DST.FRST.20,SI.DST.02ND.20,SI.DST.03RD.20,SI.DST.04TH.20,SI.DST.05TH.20,SI.DST.10TH.10#, consultada em novembro/2017.
2) Valores aproximados correspondentes a 2017.
3) Essa afirmação aparece em artigo assinado pelo secretário de educação paulista desde abril de 2016, reproduzido em http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/a-sociedade-orfa. Consulta feita em 17/novembro/2017
4) Argumentos falsos ou usados de forma totalmente distorcida, tanto para desqualificar o sistema educacional público como para negar os necessários recursos incluem afirmações como “dinheiro tem, o problema é que é mal aplicado”, “há estudos que comprovam que um aumento dos recursos não implica obrigatoriamente em melhoria do aprendizado”, “o ensino superior tira recursos da educação básica e esse problema precisa ser resolvido antes de se colocar mais dinheiro”, são alguns exemplos.
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12965-a-escolarizacao-dos-mais-pobres
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