ANA ESTELA DE SOUSA PINTO e CLÁUDIA COLLUCCI – O bem-estar da população brasileira melhorou significativamente durante a Primeira República (1889-1930), mostra pesquisa da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). O estudo é o primeiro a usar dados nacionais sobre estatura para mostrar como evoluiu o padrão de vida brasileiro nesse período.
Com base em 17 mil registros do Exército e 7.000 passaportes, o pesquisador Daniel Franken estudou a estatura dos mais pobres e mais ricos, respectivamente.
A altura é apontada por pesquisas em todo o mundo como um bom indicador de condições de vida: 20% da estatura é atribuída ao estado nutricional e a outros fatores ambientais; 80%, à genética.
Carências nutricionais, por exemplo, afetam o crescimento principalmente quando ele é mais intenso: dentro do útero, nos três primeiros anos de vida e na adolescência.
O que a estatura tem a ver com a história
Por que há dificuldades no estudo da Primeira República?
Faltam dados demográficos e econômicos, como mortalidade infantil, expectativa de vida e renda per capita
Qual a novidade da pesquisa?
É a primeira a usar registros do Exército,uma fonte primária de dados sobre a população masculina de todo o país durante longo período de tempo
E as mulheres?
O pesquisador não encontrou dados suficientes sobre a população feminina. Nos países onde existem dados sobre os dois gêneros, porém, historiadores econômicos concluem que uma quantidade suficiente de dados antropométricos de um dos gêneros é bom indicador das condições de vida da população em geral
O que a estatura revela?
Estudos científicos mostram que a estatura está correlacionada a saúde física e mental, condição nutricional, produtividade e habilidade cognitiva
Quais as causas do aumento na estatura?
Desde os anos 1960, os estudos mostram que 80% da estatura é explicada pela genética, e 20% pelo estado nutricional ou pela qualidade biológica de vida, principalmente nos três primeiros anos de vida
O que pode ter levado ao crescimento na Primeira República?
Vacinação, saneamento, serviços de saúde, acompanhamento pré-natal, fim da escravidão, introdução da economia de mercado na região Sudeste e imigração da população nordestina para regiões menos expostas a doenças, investimentos em infra-estrutura
Os alistados no Exército não eram os mais pobres?
A pesquisa analisou também 7.000 registros de passaportes, que indicam aumento de estatura
A estatura mais alta pode ser efeito de imigrantes europeus?
Quando são analisados apenas registros dos sobrenomes mais comuns no Brasil, o aumento de estatura é ainda maior
Qualquer prejuízo à nutrição nessas fases tem grande impacto na estatura final, pela restrição de calorias e de proteína, ferro, cálcio, zinco, vitaminas A, B12 e C.
A pesquisa de Franken mostra que soldados nascidos em 1950 eram em média 3,7 centímetros mais altos que os nascidos em 1850, e o maior incremento é registrado nos nascidos entre as décadas de 1890 e 1910.
Uma das hipóteses é que políticas de saúde do governo republicano atacaram causas de desnutrição crônica, como malária e parasitas enterogástricos –dentre eles, os que causam ancilostomose (que ingerem sangue do hospedeiro, provocando anemia).
Essas doenças criam um ciclo vicioso: prejudicam a nutrição, e isso dificulta a reação do organismo. Verminoses prejudicam principalmente a gravidez e o crescimento na adolescência, que depende de suprimento adequado de ferro.
A República também promoveu erradicação de focos de mosquitos vetores da malária, combateu o curandeirismo e promoveu campanhas de aleitamento materno e distribuição de leite.
O economista Luiz Paulo Ferreira Nogueról, professor de história da UnB (Universidade de Brasília), aponta que os investimentos em saneamento feitos no início da República foram relativamente pequenos.
“Mas, dado que praticamente não havia fornecimento de água e coleta de esgoto, houve um impacto enorme.”
CHUVA, SECA E LISINA
O trabalho de Franken também identificou que a diferença de estatura entre soldados do Norte e do Nordeste em relação aos do Sul e do Sudeste (que chegava a 3 cm no século 19), caiu em 1910, mas não foi eliminada.
Em parte, a defasagem pode ser explicada pela dieta, mais pobre em proteína e em verduras ricas em ferro. Inhame e mandioca, alimentos comuns no Nordeste, têm pouca lisina, aminoácido fundamental para o crescimento.
O pesquisador também mapeou a intensidade de chuvas, períodos de secas e de enchentes pra aferir o efeito do clima na exposição a doenças (como as parasitoses) e, consequentemente, na estatura.
Os dados mostram que, depois da implantação de medidas de controle e profiláticas, deixou de haver relação entre o clima e a estatura.
Políticas públicas, nota Franken, também têm efeito na estatura, já que podem promover aumento de renda, migração para regiões com menor incidência de doenças, proibir trabalho infantil, melhorar o acompanhamento pré-natal, prevenir e combater doenças por meio de vacinação, saneamento e serviços de saúde.
Quando o pesquisador analisou isoladamente soldados de 19 anos com sobrenomes comuns no Brasil (para excluir eventuais estrangeiros), observou-se uma alta na estatura de 5% em relação à média geral dos recrutas. As condições econômicas no ano de alistamento não afetavam os resultados.
Para o brasilianista William Summerhill, que orientou a tese, o trabalho de Franken é importante para entender a evolução da economia do país no longo prazo, já que há muita falha em dados como PIB, PIB per capita, salários, salários por qualificação.
“Há fragmentos e tentativas de retropolação (estimativas de dados passados) até bem feitas, mas que impõem limites às pesquisas.”
Dados antropométricos já foram usados, por exemplo, para traçar o bem-estar da população americana antes e depois da abolição, retraçar as origens da revolução industrial no império austro-húngaro e entender melhor os efeitos nocivos à saúde produzidos pela industrialização e urbanização no mudo inteiro.
Como a estatura indica a qualidade de bem-estar, se a evolução dessa característica não acompanha a evolução do PIB, por exemplo, isso indica que houve má distribuição do crescimento econômico, afirma Summerhill.
A análise de dados dos passaportes, usados para conhecer informações de pessoas mais abastadas também revela aumento de estatura na virada do século 19 para o século 20. A intensidade, porém, é menor que a verificada nos registros do Exército, a não ser nos passaportes de brasileiros “semiqualificados”. No caso dos passaportes, não se encontrou diferença regional.
Passaportes de portugueses, alemães, espanhóis, poloneses e russos também foram analisados por Franken: a estatura deles não era maior que a dos brasileiros.
Ele diz ter procurado bases de dados adequadas para avaliar a evolução antropométrica das mulheres brasileiras, mas não encontrou. “Historiadores econômicos têm concluído que uma quantidade suficiente de dados antropométricos de um dos gêneros permite vislumbrar as condições de vida da população.”
REVOLUÇÃO DE 1930
A tese do pesquisador Daniel Franken contradiz hipóteses de que o desenvolvimento econômico brasileiro só aconteceu depois da revolução de 1930.
Para o economista Leonardo Monasterio, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o estudo indica que “talvez a economia do início da era republicana fosse mais dinâmica do que se pensa, do que aponta a teoria da dependência [corrente analítica que se popularizou nos anos 1960 e 1970]”.
“Houve uma mobilização no período que levou a aumento de renda e permitiu às pessoas comprar uma cesta de produtos mais rica do ponto de vista nutritivo”, diz ele.
Para Monastério, a pesquisa é mais uma evidência de que o país não começou a melhorar na Revolução de 1930. “Os dados mostram que a estatura dos nascidos na década de 30 fica estagnada e dá até uma piorada.”
O crescimento dos brasileiros começa antes no Sul e no Sudeste, refletindo o aumento de renda real trazido pela cafeicultura e as iniciativas na área de saúde, que se iniciaram por essas regiões.
Estatísticas de mortalidade infantil e de mortes por enterite e malária apresentaram queda nas décadas iniciais da Primeira República -especialmente no Sudeste.
Outro achado de Franken, que estudou separadamente áreas urbanas e rurais, foi que a industrialização desses primeiros anos republicanos não reduziu a estatura, como ocorreu na Europa.
Uma explicação é a de que nesses países a industrialização ocorreu em meados do século 18, quando ainda não havia se consolidado a descoberta dos micro-organismos e seu papel nas doenças.
No Brasil os dois fenômenos coincidiram, e o efeito positivo do conhecimento científico compensou o impacto negativo do trabalho industrial.
As décadas que se seguiram à Primeira Grande Guerra trouxeram inflação e fome, brecando a alta e até reduzindo a estatura. A crise do café, a partir de 1929, piorou a situação, reduzindo os salários.
Apesar de o PIB ter crescido a níveis de 6% ao ano, em média, de 1940 a 1980, o ganho em estatura não foi vigoroso. Uma das hipóteses é a má distribuição de renda.
“Como o acesso à saúde e à educação das crianças no Brasil dependem muito das rendas dos pais, a maioria mais pobre fica sem acesso a medicamentos, informações e nutrientes importantes, o que produz diferenças de estaturas entre as classes sociais ainda hoje”, diz Luiz Paulo Ferreira Nogueról, da UnB.
Segundo o professor da UnB, investimentos públicos em saúde e em educação jamais foram prioritários e ainda hoje são muito mal administrados.
Outro problema é que, embora as crianças aprendam noções básicas de higiene na escola, a alimentação de qualidade está fora do currículo.
Ele diz que o avanço no bem-estar poderia ter sido tão forte quanto o da Primeira República “se os investimentos em saúde e em educação tivessem sido prioritários, maiores, mais eficientes e sustentados pelos mais ricos”.
SUL-COREANAS, AS QUE MAIS CRESCERAM
Em cem anos, homens e mulheres brasileiras registraram o mesmo crescimento: 8,6 cm.
Eles têm, em média, 1,73 m, e elas, 1,60 m. São dez centímetros a menos que homens e mulheres da Holanda (1,83 m e 1,70 m), os mais altos do mundo.
A estimativa é de um estudo apoiado pela OMS (Organização Mundial de Saúde ) e que envolveu mais de 800 pesquisadores de 187 países.
Chamada “Um Século de Tendências na Altura Humana”, a pesquisa analisou dados de altura entre 1914 a 2014 e foi publicada na revista científica “eLife” no ano passado.
Os pesquisadores usaram técnicas estatísticas para poder comparar dados que em alguns casos eram incompletos e vinham de fontes diferentes.
No caso do Brasil, por exemplo, foram reunidos dados de 23 fontes, com informações de diferentes regiões e épocas.
O maior salto na altura foi observado no homem do Irã e na mulher da Coreia do Sul, que cresceram em média 16 cm e 20 cm.
Para homens, o Brasil é o 68º colocado em altura, acima de nações como Portugal, México e Chile, e abaixo de Romênia, Argentina e Jamaica.
A mulher brasileira alcançou a 71ª posição, mais alta do que a turca, argentina ou chinesa, e mais baixa que as espanholas, israelenses e inglesas.
Países europeus dominam os rankings de altura atualmente, mas a pesquisa sugere que as tendências de crescimento se estabilizaram no Ocidente.
Nos EUA, por exemplo, a altura dos cidadãos começou a atingir um limite nos anos 1960 e 1970. Ao longo do último século, homens e mulheres cresceram apenas 6 cm e 5 cm, respectivamente.
Em 1914, o homem americano era o 3º mais alto e a mulher a 4ª mais alta do mundo. Hoje eles estão em 37º e 42º lugar.
MAIS BAIXO
As alturas médias chegaram a cair em certas partes da África subsaariana desde os anos 1970. Nações como Uganda e Serra Leoa viram seus homens perderem alguns centímetros.
Segundo os autores, a genética explica algumas variações de altura, mas não é o fator principal.
“Cerca de um terço da explicação está nos genes. Mas isso não explica a mudança ao longo do tempo. Os genes não se alteram tão rápido e não variam muito no planeta. Então mudanças no tempo e variações pelo mundo são, em grande parte, ambientais”, afirma o pesquisador Majid Ezzati, chefe da pesquisa e professor do Imperial College de Londres.
Pesquisas mostram que bons padrões de saúde, saneamento e nutrição são os principais determinantes ambientais da altura, principalmente nas fases de maior crescimento: dentro do útero, nos primeiros três anos de vida e na adolescência. Por isso, também é importante a saúde e a alimentação da mãe na gravidez.
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1870
Introdução da indústria no Brasil
1889
Lei cria planos de profilaxia e assistência médica e é criado instituto para distribuir leite em mamadeiras esterelizadas
1890
Primeira campanha pró-aleitamento materno
1891
Constituição atribui a cidades e Estados os serviços de saúde
1902
Notificação obrigatória de febre amarela, cólera, peste bubônica, sarampo, difteria, febre tifoide, tuberculose e lepra
1904
Vacina obrigatória contra sarampo
1907
Vigilância sanitária é criada e são coibidos descarte incorreto de carcaças de animais e fraudes no leite
1910
Começa o combate à ancilostomose e ao mal de Chagas nas áreas rurais
1911 a 1920
Erradicação de focos de mosquitos de malária e campanhas de aleitamento materno e distribuição de leite
1921 a 1935
Guerra Mundial trouxe inflação e fome; crise do café acirrou a pobreza
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