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Iêmen: um milhão de civis padecem de cólera, mas bloqueio segue total

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Véronique Kiesel – No úl­timo dia 6 de no­vembro, a Arábia Sau­dita impôs um blo­queio a um Iêmen mar­ti­ri­zado por dois anos de guerra, com mais de 20 mi­lhões de civis que pre­cisam de ajuda hu­ma­ni­tária e um mi­lhão a pa­decer de có­lera.

“Ao longo de 7, 8 e 9 de no­vembro a co­a­lizão li­de­rada pela Arábia Sau­dita não au­to­rizou os Mé­dicos Sem Fron­teiras (MSF) a ater­ris­sarem em Saná e Áden, em voo pro­ve­ni­ente do Dji­buti, apesar dos nossos re­pe­tidos pe­didos”, in­digna-se Justin Arms­trong, chefe da missão da MSF no Iêmen. “O acesso dos voos hu­ma­ni­tá­rios ao Iêmen é fun­da­mental para poder aportar as­sis­tência mé­dica a uma po­pu­lação muito afe­tada por mais de dois anos de con­flito”, afirma.

O mesmo dis­curso emana do Co­mitê In­ter­na­ci­onal da Cruz Ver­melha (CICV): “as vias de abas­te­ci­mento hu­ma­ni­tário ao Iêmen devem se­guir abertas de ma­neira im­pe­ra­tiva”, de­fende Ro­bert Mar­dini, di­retor re­gi­onal da CICV.

Posto que nada entra e nem sai do Iêmen por mar, terra ou ar, um car­re­ga­mento de cloro – en­viado pela Cruz Ver­melha para lutar contra a có­lera, já que o cloro des­trói a bac­téria res­pon­sável pela do­ença – foi blo­queado na fron­teira norte do país.

É pre­visto que outro envio de as­sis­tência mé­dica chegue neste se­mana com­posto por 50 mil frascos de in­su­lina. “A in­su­lina só pode ser con­ser­vada se re­fri­ge­rada, assim, não so­bre­vi­verá se a fron­teira se­guir fe­chada. Se não se impõe logo um tér­mino a este blo­queio, as con­sequên­cias hu­ma­ni­tá­rias serão ter­rí­veis”, pre­vine Ro­bert Mar­dini.

A am­pli­tude da crise

Os aviões dos MSF não são os únicos a não en­trar no Iêmen: desde a se­gunda-feira (6) este país mártir en­contra-se iso­lado do mundo por um blo­queio im­posto pela Arábia Sau­dita. O se­cre­tário geral ad­junto de As­suntos Hu­ma­ni­tá­rios da ONU, Mark Low­cock, ad­vertia ainda no dia 15 deste mês ao Con­selho de Se­gu­rança da ONU que o Iêmen en­frenta a maior crise de fome das úl­timas dé­cadas, a qual po­deria pro­vocar “mi­lhões de ví­timas”.

“O nível de so­fri­mento é imenso. A de­vas­tação, quase total; 21 mi­lhões de pes­soas ne­ces­sitam ur­gen­te­mente ajuda hu­ma­ni­tária. Trata-se da pior si­tu­ação hu­ma­ni­tária em nível mun­dial, com 7 mi­lhões de pes­soas à beira da morte por fome, o de­cesso de uma cri­ança a cada 10 mi­nutos por do­enças e quase um mi­lhão de en­fermos com có­lera”.

Os civis foram as pri­meiras ví­timas de uma guerra muito cruel que já pro­vocou mais de 8650 mortos, entre os quais 1700 eram cri­anças, além dos cerca de 60 mil fe­ridos. “Se as­se­melha ao juízo final, com ca­dá­veres e ca­beças abertas por todo lado, de­vo­rados pelas chamas e se­mi­en­ter­rados sob as cinzas”, contou para a Anistia In­ter­na­ci­onal um ha­bi­tante da ci­dade por­tuária de al-Mukha, no su­do­este do país, após um dos bom­bar­deios da co­a­lizão que reúne Arábia Sau­dita, Egito, Jor­dânia, Mar­rocos, Sudão e os mem­bros do Con­selho de Co­o­pe­ração do Golfo, ex­ceto o Omã – vi­zinho do Iêmen ao leste.

O con­flito ainda agravou uma crise hu­ma­ni­tária que era já pro­funda, após anos de muita po­breza e de má gestão pú­blica. Antes do blo­queio com­pleto vi­gente desde o úl­timo dia 6, a co­a­lizão já havia im­posto um blo­queio aéreo e ma­rí­timo par­cial que punha muitas travas ao abas­te­ci­mento de com­bus­tível e de ou­tros pro­dutos bá­sicos.

O preço dos ali­mentos foi su­bindo de ma­neira sig­ni­fi­ca­tiva, e o acesso aos me­di­ca­mentos já es­tava di­fícil. Em ja­neiro deste ano, a si­tu­ação ficou ainda mais de­gra­dada. Dos 20 mi­lhões de ha­bi­tantes que há pelo país, 14,5 mi­lhões ca­re­ciam de água po­tável e acesso a ins­ta­la­ções sa­ni­tá­rias ele­men­tares; 2 mi­lhões de civis eram ex­pulsos das suas casas e terras; e um nú­mero de cri­anças se­ve­ra­mente des­nu­tridas só au­men­tava, com ter­rí­veis con­sequên­cias para o fu­turo. Es­tima-se que mais de 500 mil, em um país no qual mais de 70% da po­pu­lação vive abaixo da linha da po­breza.

Os danos in­fli­gidos pelos bom­bar­deios em pontes, ae­ro­portos e portos com­plicam ainda mais o envio destes itens bá­sicos à so­bre­vi­vência.

A causa do de­sas­tres

Não foi uma ca­tás­trofe na­tural a que pro­vocou ta­manho so­fri­mento, senão uma guerra civil de­sen­ca­deada em 2014 e in­ten­si­fi­cada em 2015 por uma co­a­lizão li­de­rada pela Arábia Sau­dita que, há dois anos, lan­çava os pri­meiros ata­ques aé­reos contra o grupo ar­mado dos houthis. Mais de dois anos e meio de­pois, o con­flito se es­tendeu e os com­bates têm lugar em todo o país.

Para além dos bom­bar­deios in­ces­santes da co­a­lizão, os dis­tintos grupos ri­vais en­frentam-se em terra. Por um lado, os houthis, grupo ar­mado cujos mem­bros per­tencem a um ramo do islã xiita co­nhe­cido como zai­dismo. Os houthis são ali­ados dos se­gui­dores do ex-pre­si­dente ie­me­nita Ali Ab­dala Saleh.

Por outro lado, en­fren­tando-os, estão as forças anti-houthis ali­adas do atual pre­si­dente, Abd al-Rahman Rabbuh al-Mansur al-Hadi, e contam com o apoio da co­a­lizão li­de­rada pela Arábia Sau­dita. Tal co­a­lizão be­ne­ficia-se do apoio lo­gís­tico e em ma­téria de in­te­li­gência dos Es­tados Unidos, po­tência que assim pre­tende lutar contra a in­fluência cres­cente do Irã na re­gião.

Em maio deste ano, no marco da vi­sita de Trump à re­gião, os con­tratos as­si­nados de vendas de armas al­can­çavam os 110 bi­lhões de dó­lares a curto prazo, assim como 350 bi­lhões em 10 anos.

A res­posta di­plo­má­tica

Os quinze mem­bros do Con­selho de Se­gu­rança da ONU con­de­naram o blo­queio, mas também o lan­ça­mento, no úl­timo dia 4 de no­vembro (sá­bado), de um míssil ba­lís­tico atri­buído aos re­beldes houthis e di­ri­gido ao ae­ro­porto da ca­pital sau­dita Riad. O míssil, in­ter­cep­tado e des­truído pela Arábia Sau­dita, pro­vocou a nova crise, e in­ten­si­fica as ten­sões entre a po­tência su­nita e o Irã, po­tência xiita. O muito re­a­tivo prín­cipe her­deiro sau­dita, Mohamed bin Salman, havia acu­sado o Irã de agressão di­reta. En­quanto isso, os civis ie­me­nitas morrem de fome e en­fer­mi­dades.

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