Morris Kachani – Trilhando seu caminho entre a direção de numerosos documentários de respeito e a gestão da revista piauí, João Moreira Salles, filho caçula do ex-ministro, embaixador e banqueiro Walther Moreira Salles, enxerga com apreensão o futuro da nação: “Não tem ninguém que possa oferecer uma solução para esse impasse, que é o próprio sistema estar em crise. Sem uma reforma política, sem mudar a maneira como a gente escolhe nossos representantes, isso não se resolve. Hoje em dia o Congresso se tornou uma entidade autônoma que legisla, não para o país mas para si próprio, e é muito difícil que eles mudem alguma coisa. Portanto, a gente continuará a escolher pessoas que passam pelo mesmo filtro, isso é terrível”.
Acabamos nos encontrando por ocasião do lançamento de seu filme, “No intenso agora”, no café do Espaço Itaú de Cinema, na rua Augusta. Há uma voz em off neste filme, que nos conduz. É a voz do próprio João. Pessoalmente tão introvertido, ele divide sua intimidade às escâncaras, por trás das câmeras.
E então mergulhamos em uma meditação profunda não apenas sobre os ecos de maio de 68 em Paris, que João, ainda criança, vivenciou, mas também sobre a trajetória de sua mãe Elisa, que de certa forma divide o protagonismo deste filme com as barricadas.
Eu pelo menos nunca tinha visto uma montagem de imagens sobre maio de 68 tão primorosa. João se preocupou em cobrir todo o arco narrativo dos acontecimentos. Que iniciam na jornada heroica de estudantes e trabalhadores e terminam na dissipação do movimento e na retomada do controle das ruas por parte do general De Gaulle.
Paralelamente, o diretor decide fazer uma investigação sobre a própria mãe. Há uma aura de tristeza e melancolia em torno do assunto, mas as imagens de uma viagem que fez à China algum tempo antes de 68, nos primeiros tempos da Revolução Cultural, entre um grupo de amigos, revelam uma outra natureza de Elisa. Uma mulher vivaz, eloquente, que se deixa encantar pelas seduções do Oriente.
Foi inescapável durante nossa conversa, a tentativa de se traçar um paralelo entre 68 na França e junho de 2013 no Brasil. A escolha do assunto materno como fio narrativo e a própria razão de ser, da prática do documentário no Brasil, também permearam esta entrevista.
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“Hoje em dia, a esquerda embarca numa espécie de sonho regressivo. As utopias estão no passado. Há alguma coisa nostálgica aí, e como tento mostrar no filme, acho que toda nostalgia é perigosa porque é uma tentativa de recuperar o irrecuperável. Além disso, ela também é reacionária no sentido em que nega o futuro e prefere o passado. Então, bonito é o pequeno, o local, o comunitário, o mais simples, as comunidades fora do sistema. Ético são as estruturas horizontais, e não as verticais.
Essas esquerdas mais visíveis, que promoveram as manifestações da Primavera Árabe, Occupy, 2013 aqui, têm essas características de valorizar o espontâneo sobre o institucional, o particular sobre o geral. Há uma desconfiança muito grande de qualquer mediação e representação política, então as decisões são tomadas por assembleia, voto de consenso, essa coisa toda que eu acho que funciona muito bem e tem valor para unidades pequenas – cem, duzentas pessoas. Quando cresce e vira um país, a complexidade tem que ser levada em conta. Acho que Estados nacionais, quando se desfazem, não viram uma comunidade hippie de homens e mulheres solidários que se ajudam e se auto regulam. Eles viram a Iugoslávia, a Somália, o Iraque, a Síria”.
“Houve uma regressão civilizatória aqui. Agora, eu não atribuo simplesmente ao afastamento da presidente. Acho que este projeto de Brasil está embutido no projeto anterior. O Temer era vice da Dilma, o Geddel e o Henrique Eduardo Alves também foram ministros dela. O impasse brasileiro não vem do impeachment, vem daquilo que 13 mostrou muito bem, de uma crise profunda na representatividade”.
“Vão me dizer que o sistema foi vencido? Não foi. Agora, seria também profundamente incorreto afirmar que 68 não deixou nenhuma marca na sociedade francesa. Deixou, e profundíssima. Movimento das mulheres, dos imigrantes, de liberdade sexual, uma abertura das instituições que eram muito aristocráticas e fechadas, tudo isso é um efeito civilizatório de maio. São coisas importantes, e políticas”.
“Todo mundo a chamava de Elisinha. Ela cai no meio da Revolução Cultural chinesa e, ao invés de se horrorizar, se comove. Eu não conhecia essa mãe. Eu conhecia uma mãe mais triste, incapaz desse movimento em direção ao mundo, e principalmente em direção ao seu contrário absoluto, sem negar mas aceitando, encontrando beleza. Eu comecei a pensar sobre isso, e aí caí em 68, porque a gente vivia em 68, e o maio francês foi muito influenciado pela Revolução Cultural chinesa; Godard era maoísta, Sartre flertou com o maoísmo, essas pessoas eram importantes no ecossistema de maio de 68. Comecei a ler as memórias de quem viveu 68, e encontrei nelas, sem exceção, essa mesma questão: como dar sentido à vida depois daquelas três semanas. O filme nasce dessa tentativa de falar da intensidade, de sua dissipação, e de como se consegue sobreviver ao fim dela. O segredo não está no filme, porque eu não tenho que dar lição, mas o pulo do gato é a não-nostalgia. Saudades tudo bem, mas nostalgia, como desejo de recuperar aquilo, não, porque é irrecuperável, passou, é como a juventude”.
“Essa questão de você perder a capacidade de ser feliz é uma questão minha também, um certo medo de me afastar das coisas, de me desengajar do mundo, do trabalho, é um fantasma”.
“Se tornou difícil pra mim voltar a fazer os filmes tradicionais, do cardápio, do documentário mundial e especialmente brasileiro. Que filmes tradicionais são esses? São aqueles em que você sai do seu apartamento, de um bairro bom, da parte organizada de uma cidade em um país pobre, e você vai filmar as pessoas que moram na periferia, na favela. Provavelmente 80% dos filmes realizados têm essa característica”.
“O documentário é um pouco o gênero em que as pessoas que têm filmam as que não têm, né? E isso se tornou um problema pra mim, porque eu sei que esses filmes são possíveis de serem feitos pois a gente usa do nosso privilégio de ser branco pra ir na Rocinha filmar. É muito fácil de imaginar um filme feito por jovens cineastas de um condomínio fechado da Barra da Tijuca sobre o Complexo da Maré. É impossível imaginar o de um grupo de jovens do Complexo da Maré sobre um condomínio fechado da Barra da Tijuca, que eles não entrariam. Na verdade, chamariam a polícia, e eles seriam presos”.
“Creio que a garotada que quer ser jornalista hoje em dia não tem como objeto de desejo o New York Times, mas a Vice, porque é ágil, é rápido, é visual, tem uma capacidade imensa de viralização na internet. Do meu ponto de vista, o ideal é que essas coisas passassem a conviver juntas. O New York Times tem uma plataforma de produção de documentários muito rica e interessante, e eles dão visibilidade a isso cada vez mais. Claro que eles são essencialmente um veículo de imprensa escrita, mas cada vez mais o visual ganha espaço. Mesma coisa acontece no Guardian, e no Washington Post. Isso é inevitável, e esta fertilização mútua é muito bem-vinda”.
“O que dá pra filmar, você filma. O que só cabe na escrita, você escreve. Mas o procedimento, a maneira de capturar o mundo, é fibra do mesmo tecido”.
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Como as pessoas têm recebido o filme?
Os debates são sempre meio que orientados pelo contexto político em que o filme está sendo visto. Em Paris só se falava de 68, que é importante pra eles, uma coisa um pouco narcísica também, o grande momento deles e tal. Então todo o debate foi em torno da representação no filme, daqueles eventos. Tinham todas as facções representadas na plateia, trotskistas, anarquistas, maoístas, stalinistas. Foi o debate mais difícil, porque foi muito aguerrido, os franceses detêm a tecnologia de debate.
Em Buenos Aires, a questão era o desencanto. Todos saíram nas ruas em 2001, quando o país derreteu e aí produziu-se o fenômeno Kirchner com seu projeto de país. As plateias de festivais de cinema geralmente são de esquerda, progressistas, jovens, pessoas que embarcam nesse tipo de projeto nacional. Agora estão vivendo o rescaldo do fim do sonho Kirchner, a eleição do Macri, então eles tentaram extrair do filme uma espécie de manual de “como reavivar a chama do engajamento político”. Houve uma certa decepção do filme não terminar nas três semanas heroicas de maio mas ir adiante, e falar também do desencanto. Acho que eles queriam um filme que chamasse mais às armas.
Em Chicago, imediatamente o debate foi na direção do movimento Occupy, da desigualdade social, de como o movimento foi importante mas fugaz e se desfez, e você chega ao Trump.
No debate em Tel Aviv, havia a sensação de uma derrota completa do projeto de esquerda, uma perplexidade diante de toda a ocupação do espaço político pela direita. Tel Aviv é um hub de tecnologia, e como vem gente do mundo inteiro pra se instalar lá, os preços explodiram, e os moradores não conseguem mais viver na cidade. Uma moça jovem que não conseguia mais pagar aluguel colocou uma tenda na praça central de Tel Aviv como um protesto, e dois dias depois, tinham 5 mil tendas.
Foi um movimento importante, em 2014, 2015, e isso galvanizou as energias políticas. Durante algum tempo achou-se que aquilo podia ser o início de uma resistência maior ao projeto da direita, mas também se desmanchou com alguma rapidez. Então havia também essa sensação do vazio, que é um dos temas do filme.
E no Brasil?
No Brasil, as perguntas são sempre relacionadas a 2013.
2013 é um assunto.
Sim, e como o filme fala de engajamento político, de intensidade e de dissipação, os paralelos são quase que inevitáveis, embora o filme tenha começado a ser feito bem antes de 2013. No junho de 2013, eu estava no processo de montagem já fazia uns 8 meses. É mais rico que o filme saia agora do que em 2011, 2012, quando havia uma certa insatisfação sobre o andamento das coisas, mas nada estava ainda articulado. 2013 descamba tudo, dá voz a uma porção de coisas que estavam meio caladas.
Você acha que houve uma derrocada de vez num projeto político de esquerda no mundo?
Eu acho que a esquerda está em contração, com a direita vencendo as últimas batalhas. Veja o que aconteceu com os Estados Unidos, na eleição francesa, no Leste Europeu, um horror. Eu não tenho nenhum problema com a direita contanto que ela seja democrática. Nada contra os conservadores, tudo contra os reacionários. O que tem acontecido recentemente é a perigosa deriva em direção ao reacionarismo, de valores não-democráticos, força à lei, à ordem, ao solo, à pátria, ao nacionalismo, tudo isso é mais vigoroso hoje do que qualquer projeto de esquerda. Li uma entrevista recente da Tatiana Roque, da UFRJ, dizendo que é preciso admitir que a direita tem um projeto de futuro, e a esquerda não.
Hoje em dia, a esquerda embarca numa espécie de sonho regressivo, as utopias estão no passado. Há alguma coisa nostálgica aí, e como tento mostrar no filme, acho que toda nostalgia é perigosa porque é uma tentativa de recuperar o irrecuperável, porque passou. Além disso, ela também é reacionária no sentido em que nega o futuro e prefere o passado. Então, bonito é o pequeno, o local, o comunitário, o mais simples, as comunidades fora do sistema. Ético são as estruturas horizontais, e não as verticais.
Essas esquerdas mais visíveis, que promoveram as manifestações da Primavera Árabe, Occupy, 2013 aqui, têm essas características de valorizar o espontâneo sobre o institucional, o particular sobre o geral. Há uma desconfiança muito grande de qualquer mediação e representação política, então as decisões são tomadas por assembleia, voto de consenso, essa coisa toda que eu acho que funciona muito bem e tem valor para unidades pequenas – cem, duzentas pessoas. Quando cresce e vira um país, a complexidade tem que ser levada em conta. Acho que Estados nacionais, quando se desfazem, não viram uma comunidade hippie de homens e mulheres solidários que se ajudam e se auto regulam. Eles viram a Iugoslávia, a Somália, o Iraque, a Síria.
O que deveria ser feito, dentro de uma perspectiva das esquerdas?
É preciso encontrar uma resposta pro futuro, pra essa sociedade difícil, complicada, cada vez mais automatizada. E aí vou repetir o que a Tatiana Roque tem falado, o projeto de esquerda tem que levar em conta não mais o trabalho no sentido clássico do capital de trabalho, porque isso está desaparecendo. As categorias mais clássicas de esquerda se organizam em torno do mundo do trabalho como se imaginava, as fábricas, etc. Isso não é mais uma realidade do século 21, e passará a ser cada vez menos. É toda uma discussão que precisa ser conceitualizada, e não sei se isso está na pauta das esquerdas nesse momento.
Você está chocado como eu, com o que anda acontecendo no Brasil?
Sim, houve uma regressão civilizatória aqui. Agora, eu não atribuo simplesmente ao afastamento da presidente. Acho que este projeto de Brasil está embutido no projeto anterior. O Temer era vice da Dilma, o Geddel e o Henrique Eduardo Alves também foram ministros dela. O impasse brasileiro não vem do impeachment, vem daquilo que 13 mostrou muito bem, de uma crise profunda na representatividade. Essa política, do jeito que funciona, deixou de apresentar respostas, é um fracasso. Eu acho que Fernando Henrique e Lula tentaram encontrar uma maneira e conseguiram. Acho que eles são melhores do que o que estava por baixo deles, mas o sistema estruturalmente os obrigou a fazer alianças impuras, que deu no que deu. Compreendo as pessoas relacionarem o meu filme e, em especial, maio de 68 na França com 13, porque maio também surgiu de uma imensa insatisfação, primeiramente dos estudantes, depois dos operários, em relação às instâncias que os representava. O governo não representava mais as demandas dos estudantes, e as instâncias clássicas da esquerda, como os sindicatos e o Partido Comunista francês, também não. Tinham se burocratizado, se afastado das demandas reais. O Partido Comunista recebia suas ordens de Moscou, e o maior sindicato, a CGT, recebia suas ordens do Partido Comunista. Portanto, era tudo orientado por Moscou, que naquela altura, oferecia um modelo em que a esquerda europeia já tinha deixado de acreditar há muito tempo.
Isso lembra 2013 mesmo, “Vai ter Copa sim”, os sindicatos estavam alinhados ao governo, e este era o grande legitimador da Copa, e das Olimpíadas também.
Maio de 68 foi um desencantamento?
Eu acho que o desencantamento é inerente à intensidade de uma coisa vivida. Você vive uma paixão, e o que vem depois, necessariamente é sempre menos do que o que você viveu. A questão é, “será que nada daquilo permanece?”. Eu acho que muita coisa permanece. Insisto que se você quiser entender 2013 a partir de 68, basta ler a entrevista do Sartre com o Cohn-Bendit (Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil do movimento). O Sartre disse pra ele, “Isso tudo é extraordinário, tem uma situação potencialmente revolucionária aqui. Agora, onde vocês querem chegar?”. E o Cohn-Bendit responde que não tem projeto, que o que vale é a espontaneidade. Ou seja, toda agenda já implica em demandas que restringem a força desse movimento, que tem que ser caótico, que tem que dar um choque elétrico no sistema, e isso em si já é o valor. E o Sartre responde, “Ok, entendo. Mas vocês não vão conseguir manter essa energia. Se não canalizar, isso se dissipa. As férias vêm aí, as pessoas vão pra praia, vai haver uma dissipação da força”. E foi exatamente o que aconteceu.
Então do ponto de vista das demandas específicas das pessoas que saíram às ruas em maio de 68, quando chega junho, elas perdem, porque De Gaulle reafirma seu poder, ainda que um ano depois ele deixe o mandato.
Eu voltei a Paris e fui ver o ponto de vista da cúpula da Sorbonne pelo boulevard Saint-Michel, onde todos os protestos aconteciam. Hoje em dia, aquilo é uma praça. Em uma das esquinas, tem uma loja da GAP, e na outra, uma da Nike. Vão me dizer que o sistema foi vencido? Não foi. Agora, seria também profundamente incorreto afirmar que 68 não deixou nenhuma marca na sociedade francesa. Deixou, e profundíssima. Movimento das mulheres, dos imigrantes, de liberdade sexual, uma abertura das instituições que eram muito aristocráticas e fechadas, tudo isso é um efeito civilizatório de maio. São coisas importantes, e políticas.
Não era isso que eles queriam. Eles queriam coisas mais clássicas, como derrubar o regime, uma nova maneira de produzir, queriam novas relações. Isso tem um valor imenso. Quem viveu aquilo, se transformou pra sempre, nas suas relações em casa, afetivas. Eu acho que 13 tem coisas muito semelhantes.
Então 2013 conseguiu deixar marcas?
Eu acho que sim, pra todos os lados. Acho que 13 anunciou que havia uma crise profunda de representatividade política no Brasil. Não era um objetivo claro, ou de boa parte das pessoas que saíram. O espectro ideológico era muito amplo, tinha gente da direita e da esquerda. Acho que elas não esperavam o impeachment, mas ele seria impossível sem 13. Percebeu-se que havia uma demanda na sociedade por mais accountability, como dizem os americanos, mais transparência, e que a política institucional estava contaminada pelo que havia de pior, e era preciso acabar com esse negócio.
“Não vai ter Copa” foi entendido como “então vamos ver que Copa é essa que estão fazendo, que estádios são esses que a Odebrecht está construindo”. Isso chega na Dilma, e acaba dando em impeachment. Não acho que fosse esse o propósito de 13, mas uma característica desses movimentos sociais muito abertos e horizontais, que não querem definir agenda porque acham que as demandas têm que ser fluidas, é que você não sabe o que vai ser entendido, nem como, por aqueles que agirão depois em função do recado que recebem das ruas.
Acho que esse foi o recado entendido por quem estava no Paraná, em Curitiba, e foram adiante, com a Lava Jato. Acredito que não teria uma assertividade tão grande dos movimentos negros, do feminismo, como temos hoje no Brasil se não fosse 13 também. As pessoas se sentiram com o poder de fala, foi uma consequência muito positiva.
Tem o outro lado dessa moeda também, que é o de que quem sempre foi reacionário também se sentir no direito de dizer de maneira clara e sem nenhum tipo de encabulamento, “eu sou a favor do golpe militar”, “bandido bom é bandido morto”, “eu vou votar no Bolsonaro”. Isso era indizível por boa parte das pessoas antes, mas hoje tudo se tornou possível dizer. Eu acho que isso é rico (risos), vai em todas as direções.
Em termos de perspectivas sobre o futuro, o que você acha?
Ah, estou muito inquieto em relação a 2018, porque do que está aí, não tem ninguém que possa oferecer uma solução pra esse impasse, que é o próprio sistema estar em crise. Sem uma reforma política, sem mudar a maneira como a gente escolhe nossos representantes, isso não se resolve. Hoje em dia o Congresso se tornou uma entidade autônoma que legisla, não pro país mas pra si próprio, e é muito difícil que eles mudem alguma coisa. Portanto, a gente continuará a escolher pessoas que passam pelo mesmo filtro, isso é terrível.
Das pessoas que estão aí pra 2018, é realmente difícil alguém que tenha habilidade política, né? Nomes bons a gente sabe que existem, só que não com reais possibilidades.
Por que que você fez esse filme?
Começou com minha mãe, muito antes de maio de 68. E com essa questão, como é que alguém que teve curiosidade pelas coisas, teve prazer, alegria, pode perder isso? Claro que há questões médicas e tal, mas para além disso. Eu acho que a depressão veio a reboque de uma incapacidade de dar sentido à vida depois de ter passado por coisas que ela amou muito. Essa questão de você perder a capacidade de ser feliz é uma questão minha também, um certo medo de me afastar das coisas, de me desengajar do mundo, do trabalho, é um fantasma.
Aí eu comecei a pensar sobre isso e tive a experiência de acompanhar a minha mãe, com quem eu tinha uma relação difícil, até o final, quando ela decidiu que não valia a pena continuar a viver. Eu encontrei aquelas imagens da China, e em seguida, o relato que ela escreveu sobre essa viagem. O que me impressionou naquele momento era ver o quanto ela estava feliz, como ela se deslumbrou com aquilo que, a princípio, tenderia a chatear, a horrorizaria, porque ela era uma mulher da alta sociedade, muito católica, burguesa, conservadora.
Qual o nome dela?
Elisa.
Você não fala no filme.
Não falo, é verdade (risos). Elisa Gonçalves. Todo mundo a chamava de Elisinha. Ela cai no meio da Revolução Cultural chinesa e, ao invés de se horrorizar, se comove. Eu não conhecia essa mãe. Eu conhecia uma mãe mais triste, incapaz desse movimento em direção ao mundo, e principalmente em direção ao seu contrário absoluto, sem negar mas aceitando, encontrando beleza. Eu comecei a pensar sobre isso, e aí caí em 68, porque a gente vivia em 68, e o maio francês foi muito influenciado pela Revolução Cultural chinesa; Godard era maoísta, Sartre flertou com o maoísmo, essas pessoas eram importantes no ecossistema de maio de 68. Comecei a ler as memórias de quem viveu 68, e encontrei nelas, sem exceção, essa mesma questão, como dar sentido à vida depois daquelas três semanas. O filme nasce dessa tentativa de falar da intensidade, de sua dissipação, e de como se consegue sobreviver ao fim dela. O segredo não está no filme, porque eu não tenho que dar lição, mas o pulo do gato é a não-nostalgia. Saudades tudo bem, mas nostalgia, como desejo de recuperar aquilo, não, porque é irrecuperável, passou, é como a juventude.
Quando vocês saíram do Brasil?
A gente saiu do Brasil em 64 por causa do golpe. Meu pai tinha sido ministro do Jango, e ele achou que podia ter algum tipo de retaliação, então fomos pra Paris. E a gente voltou em 68, porque ficaram assustados de que os bolcheviques estavam chegando. Eu tinha 6 anos, não me lembro de nada. Mas eu sei que esse movimento de retorno ao Brasil foi causado pelo maio. Acho que a gente vem durante as semanas de tumulto, ficamos aqui duas ou três semanas, retornamos à França pra cumprir o ano letivo, e aí no final do ano voltamos pro Brasil. Em 69 já estava aqui.
O filme mudou alguma coisa em relação a sua mãe?
Agora em Lisboa, alguém da plateia disse, “eu reparei que no final do filme, nos três últimos minutos, você se refere a ela como ‘mamãe’. Antes era ‘minha mãe’”. Foi a primeira pessoa que reparou nisso. Esse “mamãe” apareceu na última escrita, na última gravação, e eu me senti à vontade pra dizer aquilo naquele momento, não sentiria no início do filme. Aí eu pensei que talvez esses 4 anos de trabalho, e o próprio arco do filme, fez com que eu me aproximasse um pouco mais dela. A distância que existia, que era muito grande nos últimos anos de vida dela, talvez tivesse diminuído no fim, e a linguagem de certa maneira manifestou isso.
Acho que “Santiago” é um filme sobre o pai, enquanto que esse é sobre a mãe. Não é uma coisa que eu tenha pensado antes de começar a fazer, nem um nem o outro, acabou sendo isso, mas eles estabelecem um diálogo desta maneira.
Alguma razão afetiva por incluir imagens da Primavera de Praga no filme?
Não, nenhuma, mas é quando cai o pano das utopias de 68. Pra todo mundo que viveu o período, o único experimento da Cortina de Ferro que parecia apontar na direção de um socialismo mais humano, democrático, aberto, era a Tchecoslováquia durante aqueles sete meses da Primavera de Praga. E aquilo é ceifado pela invasão dos tanques do Pacto de Varsóvia, liberado pelos soviéticos.
Aí o Chris Marker, muito envolvido nos movimentos de 68, escreve no livro dele que todo mundo ficou à espera da resposta de Fidel Castro, porque Cuba era a possibilidade de um socialismo moreno, dançante, alegre, feliz, o contrário da burocratização e do horror do Gulag soviético. Ficaram esperando o que Fidel ia dizer porque estavam convencidos de que ele iria romper com a União Soviética. Dois dias depois, Fidel vai à televisão e dá uma declaração impressionante, na qual ele diz essencialmente o seguinte: é uma invasão absolutamente imoral, porque são países estrangeiros ocupando uma nação soberana, mas politicamente é absolutamente necessário, porque não podemos deixar um país socialista derivar pro campo do Ocidente. E aí o Marker diz, “caiu o pano”. Não havia mais pra onde olhar, não havia mais paraíso.
Tempos atrás eu entrevistei o Fernando Morais, e ele também fez um comentário nesse sentido, sobre uma espécie de “mal necessário”.
O contrário disso é o Cohn-Bendit, por quem tenho grande simpatia, até porque ele é muito humano, os pecados dele me enternecem, acho ótimo o fato dele ter ido pra Berlim às custas de uma revista de fofocas. Em 98, no aniversário de 30 anos de maio de 68, ele declara pro jornal, “Maio de 68, nós vencemos no front da cultura, e graças a Deus, não tomamos o poder. Perdemos no front político”. E ele é massacrado até hoje por ter dito isso, mas o que ele quer dizer é isso que você identificou no Fernando Morais. Os modelos que estavam na cabeça deles eram modelos autoritários. Se eles chegassem ao poder, eles iam instituir uma curva, eles iam substituir com as consequências que a gente sabe, “ah, dá pra fuzilar alguns”. Como o Cohn-Bendit é essencialmente um democrata e um humanista, ele dá graças a Deus por não ter assumido o poder e ter estado em condição de ter tomado esse tipo de decisão. Eu acho que o Gabeira concordaria também, é um pouco a mesma cabeça.
Você vem numa toada de se expor, né? Logo você que é um cara mais introvertido, de repente se escancara.
Não é uma coisa que eu faça com facilidade. Por outro lado, se tornou difícil pra mim voltar a fazer os filmes tradicionais, do cardápio, do documentário mundial e especialmente brasileiro. Que filmes tradicionais são esses? São aqueles em que você sai do seu apartamento, de um bairro bom, da parte organizada de uma cidade em um país pobre, e você vai filmar as pessoas que moram na periferia, na favela. Provavelmente 80% dos filmes realizados têm essa característica.
No Brasil?
No mundo também. O documentário é um pouco o gênero em que as pessoas que têm filmam as que não têm, né? E isso se tornou um problema pra mim, porque eu sei que esses filmes são possíveis de serem feitos pois a gente usa do nosso privilégio de ser branco pra ir na Rocinha filmar. É muito fácil de imaginar um filme feito por jovens cineastas de um condomínio fechado da Barra da Tijuca sobre o Complexo da Maré. É impossível imaginar o de um grupo de jovens do Complexo da Maré sobre um condomínio fechado da Barra da Tijuca, que eles não entrariam. Na verdade, chamariam a polícia, e eles seriam presos.
Seria um ótimo filme, rs.
Esse seria um filme deslumbrante, é o filme que revoluciona o documentário brasileiro. Mas por enquanto, ele ainda não foi feito. E isso passou a ser uma reflexão minha.
Por volta de “Santiago”, eu me dei conta que o que eu podia falar com legitimidade era de mim mesmo, e do meu mundo. Como meu mundo é um que aparece no cinema, porque a gente se fecha, se defende, talvez essa pudesse ser a minha contribuição no cinema, abrir uma janela pro mundo do qual eu venho. Me pareceu politicamente importante fazer esse tipo de cinema, com todas as dificuldades pruma pessoa que de fato nunca se expôs.
Creio que isso seja amadurecimento. Mas “Notícias de Uma Guerra Particular” e “Nelson Freire” são grandes filmes.
O “Nelson” é um filme no qual saio um pouco dessa equação, de filmar a tragédia social brasileira. E o “Notícias” é um filme meu e da Katia Lund, de duas pessoas querendo produzir um documento sobre o que estava acontecendo na minha cidade naquele momento. Infelizmente, é um filme que se tornou atual de novo, achei que aquilo já tivesse ficado pra trás. Mas hoje em dia eu teria dificuldade de fazer esse tipo de filme. Não quer dizer que eu não volte a fazer, mas preciso encontrar maneiras de resolver essa questão do poder, porque ela existe. Do meu privilégio permitir filmar pessoas que estão do lado de lá da desigualdade brasileira. Foi quando eu passei a usar a primeira pessoa.
Você começou com o audiovisual e ensaiou um vôo pro jornalismo. E eu sou o contrário, comecei no jornalismo e hoje trabalho numa produtora. Como é que as duas coisas dialogam pra você?
O Steve Coll, que é o diretor do departamento de jornalismo da Universidade de Columbia, e que já ganhou dois Pulitzers, esteve aqui no Festival da piaui, dizendo que se tivesse que recomeçar hoje, recomeçaria como documentarista, pois acha que o jornalismo hoje em dia migra pro audiovisual, e que há coisas extraordinárias a serem feitas com imagens no campo do jornalismo. Acho que isso é um pouco ingênuo, mas entendo porque ele diz isso.
Creio que a garotada que quer ser jornalista hoje em dia não tem como objeto de desejo o New York Times, mas a Vice, porque é ágil, é rápido, é visual, tem uma capacidade imensa de viralização na internet. Do meu ponto de vista, o ideal é que essas coisas passassem a conviver juntas. O New York Times tem uma plataforma de produção de documentários muito rica e interessante, e eles dão visibilidade a isso cada vez mais. Claro que eles são essencialmente um veículo de imprensa escrita, mas cada vez mais o visual ganha espaço. Mesma coisa acontece no Guardian, e no Washington Post. Isso é inevitável, e esta fertilização mútua é muito bem-vinda.
Particularmente, quando eu criei a piaui e passei a escrever pra revista, não fiz nada de diferente daquilo que fazia como documentarista. Meu procedimento de apuração, a maneira como estruturava as histórias escritas, como eu descrevia as cenas, era essencialmente a mesma que eu empregava com uma câmera. O modo de narrar não mudava, mudava a ferramenta que estava usando.
Uma ferramenta bem mais barata.
Sem dúvida, mas mais do que isso. A questão no fundo é se a história cabe mais no texto escrito ou no documentário filmado. Acho que o “Entreatos” seria mais pobre se eu tivesse escrito, porque tem o corpo que fala, o gesto, a expressão, tem um abraço que o Lula dá no Dirceu, outro no Palocci, tudo isso faz parte da informação. Seria muito difícil materializar escrito.
Por outro lado, o perfil que eu fiz do Artur Avila, o matemático que viria a ganhar anos depois o Fields Medal, seria impossível filmar, porque tudo o que o Artur faz é abstrato; é deitar numa cama e pensar. Como é que se filma alguém na cama pensando? Qual é a diferença de um grande matemático na cama pensando, e de um sujeito medíocre na cama pensando? O que dá pra filmar, você filma. O que só cabe na escrita, você escreve. Mas o procedimento, a maneira de capturar o mundo, é fibra do mesmo tecido.
Existe machismo no audiovisual?
Eu acho que essa pergunta pode ser ampliada, acho que existe patriarcado na imprensa. As redações são majoritariamente lideradas por homens, são poucas mulheres que comandam as ações. O cinema é mais um aspecto de uma sociedade que é patriarcal, pra não falar da raça. Aí realmente as redações têm um trabalho a fazer. Elas são brancas, é um 2017 criminoso!
Tenho a impressão que sim, se você pegar na função, na hierarquia, os diretores são bem mais homens do que mulheres, embora você tenha uma crescente presença de mulheres dirigindo filmes, muito mais hoje do que dez anos atrás, do que dez anos antes. O Cinema Novo é essencialmente de homens. O cinema contemporâneo brasileiro não é essencialmente de homens, é um cinema de mulheres, que escrevem, que dirigem, mas ainda são minoria.
http://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/maio-de-68-junho-de-2013/
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