Teoria

Notas sobre capitalismo e socialismo (5)

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Wladimir Pomar – Vol­tando ao pe­ríodo que tem início nos anos 1970, os Es­tados Unidos en­con­tram-se en­vol­vidos em crises fi­nan­ceiras e em pro­blemas es­tru­tu­rais. Há uma brutal con­cen­tração e cen­tra­li­zação de ca­pi­tais, for­mação de grandes cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais, cres­cente mo­no­po­li­zação e oli­go­po­li­zação da eco­nomia, rá­pido de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico, e o de­sem­prego es­tru­tural já mostra a sua cara. A ele­vação da pro­du­ti­vi­dade do tra­balho reduz a ne­ces­si­dade de uti­li­zação de mão-de-obra hu­mana, e ocorre queda acen­tuada da taxa média de lucro.

Para com­plicar ainda mais, os Es­tados Unidos en­con­tram-se afun­dados na Guerra do Vi­etnã e num cres­cente dé­ficit or­ça­men­tário, ao mesmo tempo em que pre­tendem der­rotar a União So­vié­tica na dis­puta so­cial e po­lí­tica mun­dial. Foi nesse con­texto con­tur­bado que o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano de­cidiu em­pre­ender uma série de re­a­justes econô­micos e po­lí­ticos de ca­ráter es­tru­tural.

No ter­reno econô­mico impôs o fim do Acordo de Bretton Woods, tor­nando o dólar uma moeda uni­versal de troca; in­ten­si­ficou a ex­por­tação de ca­pi­tais na forma fi­nan­ceira es­pe­cu­la­tiva e na forma de trans­fe­rência seg­men­tada ou com­pleta de plantas in­dus­triais para países ou re­giões agrá­rias ou agrário-in­dus­triais de baixos sa­lá­rios; impôs o ne­o­li­be­ra­lismo do Con­senso de Washington para agi­lizar esse con­junto de me­didas em países pre­dis­postos a abrir suas eco­no­mias a ca­pi­tais es­pe­cu­la­tivos. E, no campo po­lí­tico, ne­go­ciou o final da guerra do Vi­etnã para ficar em con­di­ções de se con­cen­trar na dis­puta econô­mica, po­lí­tica e mi­litar com a União So­vié­tica.

Esse con­junto de me­didas e ajustes es­tra­té­gicos norte-ame­ri­canos in­ten­si­ficou a glo­ba­li­zação do modo ca­pi­ta­lista de pro­dução no pe­ríodo que se es­tendeu até a crise do final dos anos 1990. Os ca­pi­tais es­pe­cu­la­tivos fi­caram li­vres de qual­quer re­gu­lação, cri­ando ca­pi­tais fic­tí­cios, ou bo­lhas es­pe­cu­la­tivas de di­fe­rentes tipos, como no setor imo­bi­liário e nos cha­mados de­ri­va­tivos, tanto no ter­ri­tório norte-ame­ri­cano quanto em países cujas classes do­mi­nantes ca­pi­tu­laram ide­o­ló­gica e pra­ti­ca­mente ao ne­o­li­be­ra­lismo.

Os ca­pi­tais pro­du­tivos, por sua vez, des­lo­caram-se para inú­meros países de mão de obra mais ba­rata, ca­pazes de gerar uma mais-valia com­pen­sa­dora e per­mitir a trans­fe­rência de parte subs­tan­cial do seu pro­duto in­terno bruto para os países de origem da­queles ca­pi­tais. O pro­blema, prin­ci­pal­mente para os Es­tados Unidos, con­sistiu na ve­lo­ci­dade com que o de­sem­prego, de­ri­vado da ele­vação in­terna da pro­du­ti­vi­dade e da trans­fe­rência de plantas in­dus­triais para ou­tros países, atingiu as di­fe­rentes ca­madas de tra­ba­lha­dores, téc­nicos e es­pe­ci­a­listas, ao mesmo tempo em que cen­tra­lizou os ca­pi­tais no 1% mais rico da po­pu­lação.

O de­can­tado Ame­rican Way of Life se es­garçou ra­pi­da­mente, fa­zendo com que cerca de 50 mi­lhões de norte-ame­ri­canos fossem co­lo­cados abaixo da linha da po­breza. Os si­nais de que a adoção de po­lí­ticas ne­o­li­be­rais ge­rava bo­lhas ex­plo­sivas apa­re­ceram pri­meiro em países pe­ri­fé­ricos, como Brasil e Rússia, em 1998, pre­nun­ci­ando os grandes pro­blemas econô­micos e po­lí­ticos que o ne­o­li­be­ra­lismo es­tava pro­du­zindo. É ver­dade que a vi­tória sobre o so­ci­a­lismo de tipo so­vié­tico, com a der­ro­cada da União So­vié­tica no início dos anos 1990, mas­carou a si­tu­ação crí­tica dos Es­tados Unidos, assim como o cres­ci­mento de seu trí­plice dé­ficit. Em­bora tenha se ele­vado mo­men­ta­ne­a­mente à po­sição de po­tência uni­polar, era pre­vi­sível que as re­formas es­tru­tu­rais do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano não pre­nun­ci­avam um ho­ri­zonte tran­quilo.

No Brasil, por sua vez, a crise mo­ne­tária des­tampou as con­tra­di­ções per­versas das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais de juros altos (fic­ti­ci­a­mente para conter a in­flação), pri­va­ti­zação de ativos es­ta­tais, in­ves­ti­mentos pri­o­ri­tá­rios em bolsas de va­lores e ou­tras áreas es­pe­cu­la­tivas, e câmbio va­lo­ri­zado. O des­monte in­dus­trial, a jo­ga­tina ren­tista, a in­flação baixa via com­pressão do con­sumo, e o es­forço para o pa­ga­mento dos juros aos cre­dores in­ter­na­ci­o­nais só não se trans­formou num de­sastre na­ci­onal evi­dente porque o FMI in­terviu para sus­tentar as fi­nanças bra­si­leiras por mais algum tempo e evitar a der­rota de FHC nas elei­ções de 1998.

Mas o de­sastre ne­o­li­beral se tornou uma re­a­li­dade in­trans­po­nível. Trans­formou o se­gundo man­dado de FHC num ma­rasmo sem pers­pec­tiva de mu­danças, o que levou parte da bur­guesia na­tiva a con­cordar com uma pos­sível vi­tória elei­toral de Lula e do PT. Con­cor­dância que se firmou após a pu­bli­cação da Carta aos Bra­si­leiros que, sob o ar­gu­mento de uma cor­re­lação de forças des­fa­vo­rável, com­pro­meteu Lula e o PT a não re­vo­garem o nú­cleo duro da po­lí­tica ne­o­li­beral. Na prá­tica, a bur­guesia passou a Lula, ao PT e aos tra­ba­lha­dores a ta­refa de sair da crise sem mexer nos fun­da­mentos da pró­pria crise.

Mas essa bur­guesia não levou em conta a pos­sível re­a­ti­vação do mer­cado mun­dial de com­mo­di­ties agrí­colas e mi­ne­rais, efe­ti­vada prin­ci­pal­mente pelo cres­ci­mento econô­mico chinês. Também não levou em conta os efeitos po­si­tivos que tais con­di­ções ex­ternas fa­vo­rá­veis po­de­riam exercer sobre uma po­lí­tica de ele­vação do poder de compra das ca­madas po­pu­lares, através da ele­vação do sa­lário mí­nimo e de pro­gramas es­ta­tais de trans­fe­rência de renda para os se­tores mi­se­rá­veis e po­bres. A bur­guesia apos­tava que a es­querda, he­ge­mo­ni­zada pelo PT, afun­daria ra­pi­da­mente, jus­ti­fi­cando a re­to­mada das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais.

No en­tanto, os go­vernos de co­a­lizão di­ri­gidos pelo PT con­se­guiram am­pliar sua in­fluência po­lí­tica através da in­ten­si­fi­cação dos pro­gramas so­ciais que des­bor­davam as po­lí­ticas ne­o­li­be­rais. Isso co­locou a bur­guesia do­mi­nante di­ante da ne­ces­si­dade de en­con­trar novos meios pseu­do­de­mo­crá­ticos para re­tomar as ré­deas do go­verno como con­dição para a con­ti­nui­dade plena das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais. A crise po­lí­tica de 2005, que trouxe à tona o en­vol­vi­mento de di­ri­gentes pe­tistas na uti­li­zação de caixa 2 de em­pre­sá­rios para cam­pa­nhas elei­to­rais e para mo­vi­men­ta­ções fi­nan­ceiras pouco claras, foi a pri­meira ten­ta­tiva séria da bur­guesia para apear a es­querda do go­verno.

No en­tanto, o go­verno di­ri­gido pelo PT não só con­se­guiu en­frentar a crise com certo su­cesso, como Lula foi re­e­leito em 2006 e elegeu Dilma Rous­seff em 2010 e 2014. A pri­meira eleição de Dilma, no en­tanto, ocorreu no quadro de uma mu­dança ra­dical da si­tu­ação in­ter­na­ci­onal e na­ci­onal pro­du­zida pela crise global de 2008. Com origem nos Es­tados Unidos, essa crise teve efeitos de­le­té­rios sobre o co­mércio in­ter­na­ci­onal, in­cluindo o mer­cado de com­mo­di­ties mi­ne­rais e agrí­colas, e sobre as taxas de cres­ci­mento de todas as eco­no­mias na­ci­o­nais.

Em tais con­di­ções tornou-se ine­vi­tável um cres­cente con­fronto da bur­guesia do­mi­nante contra as po­lí­ticas so­ciais e contra a in­ter­venção do Es­tado na eco­nomia (a não ser nos casos em que a be­ne­fi­ci­avam di­re­ta­mente). Apesar disso, a maior parte do PT con­ti­nuou acre­di­tando que, mesmo sem romper ra­di­cal­mente com as po­lí­ticas ne­o­li­be­rais e sem re­tomar com fir­meza as ne­ces­sá­rias po­lí­ticas de rein­dus­tri­a­li­zação, seria pos­sível pro­mover o cres­ci­mento econô­mico através da ele­vação do poder de con­sumo. Em ou­tras pa­la­vras, acre­ditou que a ele­vação da de­manda de bens de con­sumo fun­ci­o­naria como in­dutor da in­dus­tri­a­li­zação e do cres­ci­mento.

A crença do­mi­nante era a de que o em­pre­sa­riado, atraído pela ele­vação da de­manda, in­ves­tiria na pro­dução, e de que o mer­cado ori­en­taria a eco­nomia no bom sen­tido. Não le­vava em conta que o em­pre­sa­riado lu­crava mais com os altos juros reais e que o mer­cado era ori­en­tado por esse ren­tismo das grandes cor­po­ra­ções in­ter­na­ci­o­nais he­ge­mo­ni­zadas pelo ca­pital fi­nan­ceiro e também pela fração agrária da bur­guesia.

Em tais con­di­ções, as tí­midas ten­ta­tivas de re­o­ri­en­tação es­tra­té­gica através dos PACs, das par­ce­rias pú­blico-pri­vadas para a cons­trução in­fra­es­tru­tural, e das de­so­ne­ra­ções fis­cais a de­ter­mi­nados ramos in­dus­triais, não con­se­guiram su­perar a su­bor­di­nação da eco­nomia na­ci­onal aos car­téis in­ter­na­ci­o­nais. E a au­sência de re­gu­lação dos in­ves­ti­mentos ex­ternos não só dei­xava de di­re­cioná-los para pro­gramas efe­tivos de rein­dus­tri­a­li­zação (base se­gura para um cres­ci­mento econô­mico firme) como man­tinha a eco­nomia na­ci­onal aberta à ação dos ca­pi­tais es­pe­cu­la­tivos.

A essas fra­quezas na es­tra­tégia de en­fren­ta­mento dos pro­blemas es­tru­tu­rais da so­ci­e­dade bra­si­leira acres­centou-se a tá­tica de mi­ni­mizar o poder des­truidor da crise global e de con­si­derar que a me­lhor forma de en­frentar o cres­cente des­con­ten­ta­mento da bur­guesia com as po­lí­ticas so­ciais con­sistia em in­ten­si­ficar a con­ci­li­ação e adotar as me­didas re­cla­madas por ela, a exemplo das con­tí­nuas de­so­ne­ra­ções e, de­pois, do ajuste fiscal.

Ou seja, ao invés de cons­truir um pro­grama econô­mico que com­bi­nasse os ins­tru­mentos es­ta­tais e pri­vados na­ci­o­nais com forte atração de in­ves­ti­mentos ex­ternos di­re­ci­o­nados para im­plantar in­dús­trias de base e in­ter­na­lizar novas tec­no­lo­gias, a exemplo do que co­me­çara a ser feito para a ex­plo­ração do pré-sal, cri­ando fis­suras na bur­guesia na­tiva e es­tran­geira, foi es­co­lhida uma rota con­trária a tudo que era de­fen­dido nos em­bates elei­to­rais. A eco­nomia afundou em re­cessão e no de­sem­prego, abrindo bre­chas para a ofen­siva es­tra­té­gica contra a con­ti­nui­dade tanto de go­vernos di­ri­gidos pelo PT quanto das po­lí­ticas so­ciais e de­mo­crá­ticas em curso.

A bur­guesia voltou a mos­trar sua ca­ra­tonha de des­na­ci­o­na­li­zada, su­bor­di­nada e de­pen­dente dos ca­pi­tais es­tran­geiros, além de an­ti­de­mo­crá­tica e ra­cista. As elei­ções de 2014 ocor­reram num clima ainda mais ra­di­ca­li­zado do que as de 2010, obri­gando o PT a sus­tentar ban­deiras que pa­re­ciam in­dicar uma in­flexão po­pular e de­mo­crá­tica mais ní­tida no caso de vi­tória elei­toral. No en­tanto, ao con­trário, para es­panto geral, o go­verno ra­di­ca­lizou sua con­ci­li­ação com a bur­guesia, ado­tando o ajuste fiscal re­cla­mado por ela como es­tra­tégia para en­frentar as con­sequên­cias da crise econô­mica.

Com isso, o novo go­verno Dilma con­tri­buiu para de­sor­ga­nizar as forças po­pu­lares e abrir os flancos para uma ofen­siva geral das classes do­mi­nantes, não só contra o go­verno e suas po­lí­ticas so­ciais, mas também contra os par­tidos de es­querda e os mo­vi­mentos po­pu­lares. A ope­ração Lava Jato, o pro­cesso de im­pe­a­ch­ment por su­postas pe­da­ladas fi­cais, a cres­cente ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica, as cam­pa­nhas pela in­ter­venção mi­litar, e uma série con­si­de­rável de ações re­a­ci­o­ná­rias não só co­lo­caram em risco os pe­quenos avanços so­ciais e de­mo­crá­ticos con­quis­tados du­rante os go­vernos co­man­dados pelo PT, como ini­ci­aram o des­monte de tais avanços.

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