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Venezuela: o país que formou uma legião de leitores

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Fania Rodrigues – Jovem escritor fala sobre o novo momento da literatura venezuelana, que vem ganhando destaque dentro e fora do país

“A Venezuela tem muito mais que petróleo, miss universo e revolução”, afirma o jovem escritor franco-venezuelano Miguel Bonnefoy, de 31 anos, que vem ganhando destaque e prêmios no concorrido mercado literário da França. Em seus livros, ele retrata uma Venezuela rica em tradições, folclore, religiosidade, criatividade artística e em belezas naturais.

Filho de mãe diplomata venezuelana e pai comunista chileno – também escritor e refugiado da ditadura de Augusto Pinochet –, Miguel Bonnefoy nasceu na França e viveu boa parte de sua vida entre a Venezuela e a Europa. Seus dois romances, El viaje de Octavio e Azúcar Negra (ambos sem edição brasileira), foram, primeiro, escritos em francês, mas sua inspiração veio de uma Venezuela profunda, do imaginário coletivo do país e da herança literária latino-americana.

Comumente associado ao realismo mágico do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, ele prefere estar entre seus pares venezuelanos, como Rómulo Gallegos, que seria uma espécie de Machado de Assis à la venezuelana. Entre os livros de Gallegos mais importantes estão Doña BarbaraCanaima e Pobre negro, que foram traduzidos a dezenas de idiomas, inclusive, alguns ao português.

Outro escritor que trouxe um novo frescor ao mercado editorial venezuelano é David Parra, de 26 anos, da cidade de Mérida, na região andina próxima à Colômbia. “Esse é um dos nossos mais promissores talentos literários”, garante o presidente da editora Monte Ávila, Gabriel González.

Recentemente, Parra fez sua estreia com o livro de contos A colecionista, que apresenta uma narrativa capaz de fazer o leitor viajar por um mundo imaginado por ele, mas que, por hora, parece mais real que a fantástica realidade venezuelana.

As obras dos dois escritores são alguns dos destaques da Monte Ávila, uma editora pública do governo venezuelano, que vende livros de qualidade a baixo custo. Enquanto, na França, o livro El viaje de Octavio é vendido, em média, por 10 euros (cerca de R$ 38), na Venezuela, a mesma obra custa 1.800 bolívares, isso seria menos que uma garrafa de água ou uma xícara de café, que em geral são vendidos a 5 mil bolívares (o que seria uma média visto que o câmbio do país vem sofrendo muitas variações).

Quando a Monte Ávila buscou a editora francesa Poyot & Rivages para comprar os direitos autorais do romance El viaje de Octavio, o autor conta fez questão de aceitar a oferta, mesmo tendo oferecido um valor abaixo do preço do mercado editorial de outros países.

“Aceitamos, porque era a Venezuela e porque sei que essa editora não vai ganhar dinheiro com a venda do livro, pois os preços populares fazem parte de uma política de Estado para incentivar a leitura. Tendo o livro como personagem principal um homem analfabeto que aprende a ler na Missão Robinson, não poderia ser diferente”, relata Miguel Bonnefoy. A Missão Robinson é um programa social criado pelo ex-presidente Hugo Chávez, em 2003, para a erradicação do analfabetismo na Venezuela.

O livro não fala explicitamente do programa do governo, mas o relata de forma alegórica. “No dia em que o jovem médico regressou à casa de Octavio, havia sido hasteada uma bandeira no centro do bairro, para sinalizar que o analfabetismo, assim como uma enfermidade, havia sido eliminado dessa comunidade. Centros de aprendizagem para adultos foram instalados nas alas desertas das escolas”, diz um trecho do livro.

Legião de leitores

Foi com Chávez que a Venezuela deixou de ser o país com um alto número de analfabetos para converter-se em nação com uma verdadeira legião de leitores.

Em 2005, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) qualificou o país como “Território Livre do Analfabetismo”. E, nesse mesmo ano, uma imagem entrou para a memória coletiva da Venezuela. Filas imensas se conformaram em praças públicas para receber um livro. O presidente bolivariano havia mandado imprimir e distribuir 1 milhão de exemplares do clássico Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes. A edição recebeu um prefácio especial escrito pelo português José Saramago, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Depois, também foram impressos 1 milhão de exemplares da novela Os Miseráveis, do escritor francês Victor Hugo, igualmente distribuídos em praça pública.

A imagem que a mídia tentava construir de um “Chávez tirano”, conforme noticiavam jornais da época, contrastava com a de um presidente que pedia em rede nacional para o povo buscar e ler livros gratuitos distribuídos pelo governo.

“Ver as pessoas fazendo fila para buscar seu livro grátis em todas as praças Bolívar do país [todas as cidade venezuelanas têm uma praça Bolívar] foi uma coisa inédita e que guardamos na memória”, conta Giordana García, diretora da editora El Perro y la Rana.

“Essa editora foi criada pelo presidente Hugo Chávez, em 2006, com a missão de imprimir livros de forma massiva e a baixo custo. Chávez era um promotor da leitura. Basta revisar seus discurso para ver que ele sempre comentava algum livro ou recitava um poema. Além disso, era um leitor muito bom, um crítico agudo”, relembra García.

O ex-presidente criou ainda o Plano de Leitura, proposta que inclui um circuito com mais de 60 livrarias públicas em todo país, que são as Librarias del Sur, e uma série de políticas públicas que garantem, até hoje, que os livros estejam acessíveis ao povo.

“Os venezuelanos sentem que o acesso ao livro é um direito. Assumem isso como uma demanda natural. Os livros deixaram de ser um privilégio de poucos”, destaca García.

Hoje, a editora El Perro y la Rana tem mais de 4 mil títulos publicados. Todos os anos são lançados cerca de cem livros de variados gêneros literários: romance, teoria política, ensaio, história, arte, literatura juvenil e infantil.

Pensamento político

Ainda que a ficção tenha ganhado novo vigor nos últimos anos, o tema preferido dos venezuelano é, definitivamente, a política. “Em todos os eventos literários observamos que os livros sobre pensamento político são os mais buscados. As pessoas querem estar atualizadas. Além disso, estamos falando de uma sociedade altamente politizada. Os livros infantis também têm muita saída”, comenta a diretora de El Perro y la Rana.

No principal evento literário do país, a Feira Internacional do Livro da Venezuela (Filven 2017), realizada entre os dias 9 e 19 de novembro, os livros sobre pensamento político são as grandes estrelas, segundo o diretor da Editora Trincheira, Amilcar Figueroa.

Ele afirma que vendeu mais de 200 livros só nos três primeiros dias do evento. “Entre os mais vendidos estão títulos como Breve história do comunismo e Lênin: a pergunta de vento. Além disso, temos uma coleção de bolso sobre a revolução das mulheres que tem saindo bastante”, relata Figueroa.

O diretor afirma ainda que, este ano, sua editora vendeu pelo menos o dobro de livros em comparação ao mesmo evento do ano passado. “Apesar de circular menos dinheiro no país, acredito que as pessoas estão buscando mais fundamento para explicar algumas questões. Existem elementos novos na crise do capitalismo mundial”, ressalta. O valor dos livros da Editora Trincheira, que recebe incentivos do governo, varia entre 7 mil e 20 mil bolívares (o que seria cerca de menos de R$ 0,50).

Na Filven 2017, que tem entre seus expositores mais de 50 livrarias e editoras do país, é possível encontrar obras clássicas de escritores como Gabriel Garcia Marquez, Julio Cortázar, Vargas Llosa, Rómulo Gallegos, Gustavo Flaubert, Charles Dickens e outros, que são vendidas a menos de um dólar.

O Capital, de Karl Marx, e a coleção A Divina Comédia, de Dante Alighieri, que no Brasil custam mais de R$ 100, em Caracas são vendidos pelo equivalente a R$ 15, segundo informou o livreiro Nahuel Montenegro.

Na livraria de sua família, a Milibrousado, é possível encontrar preciosidades dignas de colecionadores, como um livro ilustrado sobre o filme Star Wars da década de 1970. Assim como edições esgotadas no Brasil, como a obra Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, o livro Sexus, do norte-americano Henry Miller, os primeiros escritos de Anais Nin, também dos EUA, e até uma coleção rara de literatura erótica clássica.

Entre as verdadeiras joias da literatura, novos escritores e o intenso ritmo de publicação de livros políticos, a Venezuela vai construindo sua própria tradição literária, profundamente marcada pela realidade e pela conjuntura política do país.

 

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