Vera Iaconelli – Quando movimentos obscurantistas de ultradireita, liderados (não dá para usar encabeçados, pois é justamente a cabeça que falta) por uma figura cuja misoginia e homofobia são notórias, reivindicam que exposições de arte, aulas de história, palestras de filósofos e outras expressões culturais e políticas sejam barradas, a mensagem é clara e horripilante: todos os espaços para o exercício do pensamento seguem sendo ameaçados.
Esses movimentos têm como alvo impedir o diálogo e a reflexão com o intuito de manter privilégios sobre os que são considerados por eles, claro, diferentes. Diferentes de quem? Quem define a norma e o modelo? Em nome do bem de quem? Das nossas criancinhas? Da família brasileira? Pois é dentro da família brasileira que crianças e mulheres têm sido agredidas –e a falta de reflexão é uma das grandes razões para isso. Não pensar não é direito do humano que se dispõe a viver em sociedade.
Em 1963, ao relatar o julgamento de Eichmann em Jerusalém (Cia das Letras, 1999), Hannah Arendt denunciou a banalidade do mal. Trata-se do agir sem reflexão, obedecendo à burocracia mortífera do Estado, que faz com que um sujeito insípido e sem brilho como Eichmann seja capaz de enviar milhões de pessoas inocentes para a câmara de gás, o que o deixa orgulhoso por cumprir sua função, sem questioná-la.
Isso poderia ser interpretado como ato de um monstro nazista, mas Arendt defendia que se tratava de algo muito mais próximo do homem comum que obedece sem crítica. Dessa constatação vem o alerta: sem reflexão a barbárie se instala.
O que diferencia o nu artístico da pedofilia? A arte provoca o pensamento, a reflexão, dialoga com a cultura, educa e transforma. O artista se faz veículo do novo e paga o preço por ocupar este lugar vulnerável, sujeito à exposição e à crítica. A pedofilia, pelo contrário, submete e bloqueia o pensamento, congela a reflexão e impede a crítica.
Judith Butler, principal nome no estudo das teorias de gênero, durante seminário Queer, em São Paulo
Da criança na situação de abuso é exigido nada falar, nada questionar– suas reivindicações são silenciadas pela desqualificação de qualquer dúvida e hesitação ou pela simples força. Por sinal, adultos que foram abusados na infância se revelam indignados com a comparação com o nu artístico, porque essa comparação demonstra que continuamos cegos para o problema que eles sofreram e que as crianças ainda sofrem.
Para não terminar este texto com o gosto de bílis na boca, cabe aproveitar o ridículo que nos é ofertado por esses mesmos grupos. Na inacreditável manifestação contra a palestra de Judith Butler, uma das filósofas mais importantes da atualidade que vem falar sobre democracia hoje no Sesc Pompéia, a sugestão dos grupos contra a “ideologia de gênero” (santa ignorância!) exortava os homens a se vestirem de azul e as mulheres de rosa.
Antídoto para essa cretinice? Leve seu filho de qualquer idade à avenida Paulista no domingo. Em menos de 1.000 metros ele terá visto homens, mulheres, travestis, gays, trans, jovens, velhos, crianças, pobres, ricos, muçulmanos, espíritas, evangélicos, judeus, artistas, operários, bancários, negros, brancos, asiáticos…
Enfim, uma manifestação permanente em prol da alteridade. É disso que trata a questão de gênero: democracia. E é sobre isso que Butler vem falar.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2017/11/1933356-seu-filho-e-as-questoes-de-genero-uma-aula-a-ceu-aberto.shtml?loggedpaywall
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