Luís Brasilino – Em entrevista, Klecius Borges, psicólogo especialista em terapia afirmativa para gays, lésbicas, bissexuais e seus familiares, celebra conquistas dos homossexuais, como o aumento da visibilidade e da tolerância, mas destaca que ainda há um longo caminho para que os LGBT´s sejam plenamente aceitos na sociedadeLuís Brasilino
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – O cotidiano LGBT vem melhorando no Brasil nos últimos anos?
KLECIUS BORGES– A grande mudança das últimas duas décadas foi o aumento da visibilidade do que a gente chama de as diferenças de sexualidade e identidade. Até então, a homossexualidade ou as sexualidades menos de acordo com a heteronormatividade viviam muito marginalizadas, restritas a guetos gays como bares e boates. A sociedade sabia que existia, mas o contato direto com essa realidade era muito pequeno. Normalmente, a representação que existia era em cima de um estereótipo, que a televisão mostrava nos programas humorísticos, ou de figuras públicas como estilistas, costureiros… Uma imagem muito voltada para um estereótipo mais feminino, exagerado. Então, nos anos 1980, a grande visibilidade gay começou a crescer nos Estados Unidos com o surgimento da aids, por mais paradoxal que possa ser. O que aconteceu? Com a síndrome, a sociedade começou a descobrir que aquelas pessoas existiam, que muitas eram homossexuais e ninguém sabia. Então passamos a perceber que o dentista do meu filho, o professor não sei do quê, o médico etc. eram homossexuais. Houve uma saída do armário entre aspas. Nos Estados Unidos, essa visibilidade provocou, em função de toda uma cultura voltada para os direitos civis e o politicamente correto dos anos 1990, o aumento da representação do gay na sociedade, não só com o Village People ou aquela coisa mais caricata do showbiz, mas no dia a dia. Assim, as séries norte-americanas começaram a apresentar personagens gays, veio o filme Filadélfia… Essas representações, juntamente com todo o movimento chamado de orgulho gay, fizeram que de fato houvesse uma grande visibilidade. No Brasil, de uma maneira um pouco diferente, também fomos acompanhando isso. Vieram as paradas gays, que inicialmente eram muito marginais; começou a vir pelo lado negativo, com algumas figuras como o Cazuza e o Renato Russo, com a homossexualidade infelizmente associada à aids… E isso vem evoluindo. Nos últimos anos, houve avanços nas leis, nos direitos.
DIPLOMATIQUE – A aceitação também cresceu nesse período?
BORGES – O que aumentou nesses anos foi a visibilidade e, com isso, o grau de tolerância da sociedade. Grau de tolerância porque já existe no imaginário coletivo a figura do gay, de um homossexual que não necessariamente é o sujeito que vive na noite, marginal, que muitas vezes era misturado com o travesti, com o transexual. Já existe a figura do gay bacana, o cara jovem e bonito que vai à balada. E não é só o que as pessoas fazem na cama; os gays começam a produzir um estilo de vida. Com esse aumento da visibilidade, há uma representação social e cultural muito maior, com literatura, filmes com personagens gays, novelas com gays que fogem do estereótipo. Assim, começa-se a ver toda uma luta da militância contra o preconceito, contra as representações degradantes da figura do homossexual… Enfim, hoje há uma nova visibilidade, uma maior tolerância, mas aceitação é uma coisa complicada, que não é tudo ou nada. Você diz: “A sociedade aceita o gay?”. Depende. Por exemplo, dizem: “Você é livre, tudo bem”. Agora, quer que seu pai seja gay? Não, aí é diferente. E se for o professor do meu filho? Há diferentes graus de aceitação. Ainda não chegamos a um nível social e cultural em que haja aceitação da diversidade sexual com mais naturalidade.
DIPLOMATIQUE – Como esse aumento da tolerância se reflete no dia a dia familiar?
BORGES – É muito difícil saber como uma família vai reagir. O preconceito é sempre emocional. Então, é uma bobagem pensar que vou lidar melhor porque tenho a informação de que a homossexualidade é mais uma variante dentro das possibilidades da sexualidade humana. Claro que um pedaço do preconceito vem da falta de informação, mas o pedaço inconsciente é muito maior. É irracional. Você até acha bacana, “tudo bem, mas não na minha casa”. Até muito pouco tempo, a psiquiatria e a própria psicanálise colocaram [a homossexualidade] como sendo, se não uma anormalidade, algum erro psicossexual. “Se tudo der certo, o sujeito vai ser heterossexual.” Mesmo não mais considerada uma doença, no coletivo há uma compreensão de que seria uma anormalidade; não uma expressão natural, mas algo que está fora do ideal. Na família, a primeira pergunta é: “Onde eu errei?”. São elementos mais irracionais do que racionais. O segundo comportamento que se vê na família é este: “Tudo bem, amo meu filho, mas como as outras pessoas vão lidar com isso?”. Vem o medo da reação da sociedade, de como o filho vai sofrer e uma série de frustrações. A primeira ideia de uma mãe e de um pai de um gay é: “Não vou ser avô(ó)”. De alguma maneira, aquele filho idealizado não vai acontecer. Isso é muito claro em uma sexualidade que não é a normativa. Das frustrações vêm os medos, e aí surgem imagens que são muito poderosas. Sempre ouço: “Minha mãe diz que eu preciso tomar cuidado, que vou ficar sozinho, não vou ter filhos e morrerei sozinho”. Existem imagens no inconsciente coletivo que são muito negativas, e isso é internalizado inclusive nos próprios gays, que se preocupam com a velhice. Outra mudança muito interessante que vejo hoje é que, na minha geração, se um gay quisesse ser pai, ele só poderia fazer isso por meio de um casamento heterossexual – provavelmente uma mentira, não mentira do desejo de ser pai. Hoje essa possibilidade já existe. Então, você já pode, como homem gay, se imaginar sendo pai.
DIPLOMATIQUE – E existem outras conquistas no plano institucional.
BORGES – Existem conquistas objetivas, mas estou falando mais do aspecto interiorizado. Objetivamente, há a parceria civil, algumas leis em alguns estados que protegem as relações homoafetivas, iniciativas de boas políticas públicas. Mas nós estamos falando de um sentimento que vai além do objetivo. Falei da ciência, mas queria falar de outras verdades, como a religião. Não há nenhuma tradição religiosa que considere natural a expressão da homossexualidade, nenhuma. Algumas são mais rígidas, outras menos, mas basicamente todas dizem: “O homossexual também é nosso filho, mas não [aprovamos] a sexualidade”. Qual seria a solução? Não exercer a homossexualidade. Então, ciência e religião refletem uma postura diante da homossexualidade como uma expressão não natural. O que se sabe é que se trata de uma variação da sexualidade que sempre existiu e que não é só do humano − muitos estudos mostram a homossexualidade em várias espécies. Mas o que nós chamamos de ser homossexual, na nossa cultura, é algo específico e culturalmente construído, a cultura gay.
DIPLOMATIQUE – Isso não partiria de uma necessidade de dar um rótulo, na verdade criando uma distinção do que seria “normal”?
BORGES – Do ponto de vista cultural, o que acontece é que essa identidade homossexual é uma forma de defesa em uma sociedade heteronormativa, e as pessoas se autoidentificam com isso. Na minha geração, não se sabia o que era. Havia um desejo diferente, mas não havia ninguém na família para perguntar, não existiam modelos. Hoje, qualquer menino de 13 anos que sentir um desejo homoerótico já sabe que isso tem um nome, que isso é ser gay.
DIPLOMATIQUE – Não é só um estereótipo.
BORGES – É isso que a gente chama de espelho. Quando eu era jovem, via figuras conhecidas, mas eu não era aquilo, não essa pessoa afetada, não tinha nada a ver comigo. Mas onde ia achar um modelo? Não havia. Então há aí um movimento cultural gay que, como qualquer movimento de minoria, vai formar uma identidade, trabalhar esse conceito de orgulho, que é uma forma de proteção em um mundo muito hostil.
DIPLOMATIQUE – Então, esse movimento promove um avanço importante no sentido da autoaceitação?
BORGES – Para o sujeito entrar nesse grupo, ele tem um longo caminho até dizer: “De fato, eu sou gay”. Embora isso aconteça mais facilmente agora, muitas pessoas não se aceitam, ou se aceitam em graus menores. É complicado. Uma coisa é o sujeito ter um comportamento homossexual, fazer sexo com outros homens, outra é se autoidentificar como tal. Dizer “eu sou gay” é um estágio avançado da autoaceitação e de afirmação diante de uma cultura heteronormativa. Então chegamos ao ponto em que existe uma maior visibilidade dessa cultura que estou chamando de gay, que há espetáculo de teatro, literatura, festival Mix Brasil, parada, eventos. Mais recentemente vemos outro movimento, que são lugares cada vez mais misturados. Se você for para o Baixo Augusta [na cidade de São Paulo], os bares não são gays. Passamos de uma situação de invisibilidade, de uma situação de uma vida marginal, para a ocupação dos espaços públicos. O grande problema da Avenida Paulista é esse. Os atos homofóbicos são contra a ocupação do espaço heterossexual, heteronormativo, por essas pessoas. Há uma garotada que não se identifica mais, não quer ir ao bar, à boate gay. Então, passam a existir baladas que são misturadas. Na minha visão, o que acontece é que, na medida em que a sociedade fica mais tolerante, não preciso me esconder tanto, e a sociedade deixa de me definir apenas pela minha orientação homossexual. Antes, era assim: gay é gay. Hoje, as pessoas já conseguem entender que ser homossexual ou homoafetivo é um atributo da identidade. Esse atributo ficou durante um longo tempo muito importante, porque ele precisava sobreviver.
DIPLOMATIQUE – E como você analisa a aceitação nos espaços públicos em geral?
BORGES – Há muitos mais espaços públicos, não no sentido de espaço físico, mas, por exemplo, de presença na mídia, em eventos, congressos, no mundo corporativo. Temos as paradas e o festival Mix Brasil, além de lugares de lazer, bares, restaurantes, baladas, grupos de atividades que se reúnem, como o Gay Bikers e um grupo que joga vôlei no Parque do Ibirapuera… No nível internacional, há as olimpíadas gays… Não há uma série de televisão norte-americana que não tenha um personagem gay, normalmente mostrado de maneira muito positiva. Claro que isso não representa a cultura norte-americana como um todo, mas mostra o grau de visibilidade que isso atingiu no país. No Brasil, é um pouco menos, mas já está acontecendo.
DIPLOMATIQUE – E no trabalho, os LGBTs são mais aceitos?
BORGES – Tradicionalmente, muitos gays se deram bem em certas profissões em que ser gay não é grande problema. Muitos gays escolheram inconscientemente profissões nas quais eles não iriam sofrer, na cabeça deles pelo menos, grandes pressões. São profissões mais ligadas à arte, à criação etc., ou profissionais liberais, que também conseguem ter um grau de independência maior. No mundo corporativo é outra realidade. Houve uma grande mudança. As empresas norte-americanas, por causa da cultura dos Estados Unidos que nos anos 1990 passou a encarar a diversidade como um diferencial de mercado, trouxeram programas de diversidade, uma cultura que dizia: “Olha, tudo bem se você é gay”. Isso existe há anos. Hoje, no Brasil, há um perfil de organizações mais sofisticadas, nas quais isso não é uma questão problemática. Para você ter uma ideia, há pouco tempo fui chamado por uma multinacional para preparar a equipe porque um dos gerentes havia saído de férias e quando voltasse teria mudado de sexo. Agora, essa não é a realidade em empresas de médio porte nem em algumas companhias com uma visão mais tradicional. No Brasil, essas empresas trabalham na linha do “todo mundo sabe, mas não se fala nesse assunto”. Então, podemos dividir o mercado assim: uma elite de organizações em que essa questão é tranquila, os trabalhadores podem levar o companheiro na festa de fim de ano etc.; e a grande maioria, em que se tolera.
DIPLOMATIQUE – Você acha que a violência homofóbica tem aumentado?
BORGES – Não. Veja, não tenho estatísticas, sou um observador dessas cenas. A minha leitura é que isso é consequência da maior visibilidade. Poderia acontecer, mas eu não sei de casos de gente que pega o carro e vai de um lado para outro para bater em ninguém, não existe.
DIPLOMATIQUE – E na Avenida Paulista…?
BORGES – Existe. Na minha percepção, essa violência tem a ver com uma resposta da sociedade, ainda muito homofóbica, à visibilidade. E há outra coisa, psicologicamente falando: aquelas pessoas têm uma questão muito específica com relação à sexualidade, e a agressão também tem a ver com isso. Algumas pessoas podem não gostar; podem, num jogo de futebol, dizer “sua bicha”… Outra coisa é bater em alguém. Nesse caso, estamos falando de uma coisa que tem a ver também com as questões sexuais. Para bater em alguém e matar uma pessoa, está tentando matar alguém dentro dele, não é?
DIPLOMATIQUE – De forma geral, seu balanço é positivo?
BORGES – Háuma evolução no mundo ocidental de maneira geral em relação às conquistas de liberdades individuais. Então, em primeiro lugar, o movimento dos gays vem atrelado a isso, às liberdades individuais. Temos a questão da religião, da religião católica, e isso conta muito no Brasil. Por exemplo, a Argentina tem leis muito adiantadas em relação ao Brasil. Por quê? Porque não somos tão livres nos nossos costumes, e aqui há uma influência muito forte da religião. Por que não conseguimos aprovar uma legislação contra a homofobia, que todo mundo já tem? Porque a bancada evangélica não deixa. Todas as conquistas que tivemos no Brasil, como a parceria civil, vieram do Judiciário. Mas posso dizer que nos últimos dez anos nós andamos muito. Acabei de saber que um ex-paciente meu ganhou o Prêmio Esso e, na premiação, ele agradeceu ao companheiro dele. A gente avançou muito para ele poder fazer isso. Agora, o que falta no Brasil? Uma legislação que garanta de fato a possibilidade de os homoafetivos poderem ter o direito de casar e seja contra a homofobia. Respondendo à sua pergunta, acho que há um avanço no movimento dos direitos individuais, e o Brasil tem acompanhado isso, democracia plena etc. Agora, a grande mudança cultural é a visibilidade: você está no armário e, quando sai, simbolicamente você ganha um espaço na sociedade. Isso faz que você avance e leve porrada ao mesmo tempo. Mas não há conquista social sem isso.
http://diplomatique.org.br/avancamos-e-levamos-porrada-ao-mesmo-tempo/
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