M. ROSSI, F. BETIM e V. SEGALLA – Apropriação de pautas conservadoras faz grupo radicalizar postura contra manifestações artísticas, como a do Queermuseum, em Porto Alegre, e no MAM, em São Paulo
“Nóis é tipo bem Jesus / Todo mundo a gente ama / Inda [ainda] mais se for gatinha / Rola até levar pra cama / A gente topa tudo / Sapatão a bigodudo / Na hora do piriri / Cai ni min ô travesti / A gente somos linda / A gente somo inteligente / Antes de dar o edí [cu] / Eu jurava que era crente / Alegria da moçada, da perua a favelada / Nosso som é fantasia pra mamãe, vovó, titia”.
A letra acima é da música Solta o Frango, do Bonde do Rolê, grupo musical formado há mais de 10 anos por Rodrigo Gorky, Laura Taylor e Pedro Augusto Ferreira Deiro. Este último, conhecido como Pedro D’Eyrot, é também um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), o grupo que protagoniza protestos contra o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Seus ativistas estiveram na frente do museu na última sexta-feira. O espaço cultural promoveu uma performance na qual um artista permanece, totalmente nu, no centro da sala enquanto os espectadores interagem com ele. Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, uma criança, acompanhada de sua mãe, se aproxima do artista deitado no chão, de barriga para cima, e toca seus pés e uma mão. “As crianças devem ser protegidas, como diz a lei, para ter seu desenvolvimento físico, moral, espiritual e mental garantido. (…) Evidentemente, isso é um atentado, é um crime, contra as crianças, contra a sociedade, contra nossos valores”, disse Kim Kataguiri, coordenador nacional e um dos principais rostos do MBL, neste vídeo — uma amostra da pesada artilharia lançada pelo movimento nas redes sociais contra o MAM, que rebateu os protestos com a mensagem que pode ser lida abaixo. Após a polêmica, até o prefeito de São Paulo, João Doria, que possui uma relação estreita com o grupo, se posicionou contra a performance, argumentando que “tudo tem limite”.
Nas últimas semanas, o MBL também se apresentou como defensor da moral em uma campanha que pediu — e conseguiu — a suspensão da exposição Queermuseum, em Porto Alegre. “A gente promoveu uma campanha de boicote a uma exposição que queria mostrar pedofilia, zoofilia e ofensas à fé cristã, ofensas à imagem de Jesus Cristo”, justificou Kataguiri neste vídeo.
As controvérsias e incoerências dos líderes e criadores do MBL acompanham o crescimento do movimento, que nasceu com o objetivo de mobilizar as ruas a favor do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), de pregar o liberalismo econômico e exigir o combate à corrupção. Com relação a este último ponto, eles ainda concentram seus ataques, de forma obsessiva, ao PT e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é acusado de corrupção em vários processos e já foi condenado em um deles. Falam pouco, contudo, de políticos como o senador Aécio Neves (PSDB) e o presidente Michel Temer (PMDB), ainda que o primeiro tenha sido gravado pedindo dinheiro a Joesley Bastista, da JBS, e o segundo tenha sido alvo de duas denúncias por corrupção e organização criminosa da Procuradoria-Geral da República. “O MBL se articula em torno de alguns temas, mas os principais são ainda o antipetismo e a defesa das propostas liberais do governo. Isso explica o alinhamento com o PMDB e o PSDB”, explica Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório de estudos sobre Internet e Cultura (LABIC).
A artilharia contra a esquerda e qualquer tese defendida por grupos que eles vinculam a ela é o que mais se destaca em suas páginas. Só a do Facebook soma 2,5 milhões de curtidas. Mas de um tempo para cá o MBL vem se apropriando de pautas ultraconservadoras em diversos campos, firmando-se como porta-voz e tropa de choque desses setores. Com forte discurso punitivista, seus membros defendem, por exemplo, a redução da maioridade penal e o fim do estatuto do desarmamento. Se antes se recusavam a comentar temas morais ou comportamentais, hoje participam ativamente da chamada “guerra cultural”. Pregam contra o aborto, o feminismo, a “ideologia de gênero” e o “politicamente correto”. Não raro dizem que negros, homossexuais e mulheres têm discursos “vitimistas” e “infantis”. O “livre” que carrega em seu nome também se contradiz com uma das pautas preferidas do grupo: o Escola Sem Partido, que prega o que eles chamam de “o fim da doutrinação” nas escolas. O Ministério Público Federal já alertou sobre a inconstitucionalidade do projeto, enquanto que especialistas argumentam que, na prática, ele atenta contra a liberdade do professor na sala de aula.
O leque de assuntos varia de acordo com o que grupos liberais e conservadores começam a defender de forma desorganizada nas redes. Na última semana, por exemplo, os ativistas Alexandre Santos (Salsicha) e Artur do Val foram até a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, para demonstrar como os moradores supostamente estavam satisfeitos com a intervenção das Forças Armadas contra o tráfico de drogas na região. Do Val possui um canal no Youtube chamado Mamãe Falei e é presença constante em, sobretudo, ações políticas e atos da esquerda com o objetivo de contrapor as pautas que ali estão sendo defendidas. Ele esteve também nas últimas semanas no Rio Grande do Norte para defender o empresário Flávio Rocha, dono da Riachuelo e alvo de uma ação milionária movida pelo Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte. A empresa é acusada de terceirizar funcionários em condições piores que as oferecidas aos funcionários com carteira assinada do grupo. Em seus vídeos, buscava demonstrar como trabalhadores terceirizados estavam contra a procuradora do trabalho responsável pelo processo.
Para Malini, o MBL segue a tendência das redes e “como a internet vive da atualização contínua dos fatos”, está forçado a também mudar constantemente. “A pauta do impeachment cessou depois de 2016, forçando o movimento a buscar novas agendas. Como o MBL se comporta como partido, tendo inclusive lançado um processo de filiação a partir de 2016 e candidatos a vereador, ele precisa ganhar institucionalidade com as agendas”, explica Malini. “E as agendas que têm mais popularidade estão no campo do comportamento, mais à direita do próprio MBL, o que acabou forçando um movimento de direita moderada a migrar para um populismo conservador”, acrescenta.
O movimento também apresenta ao vivo o MBL news em seu canal de Youtube, onde seus membros leem, comentam e fazem piadas dos acontecimentos diários. No mesmo canal publicam vídeos curtos, que contam com milhares de visualizações, nos quais explicam e opinam sobre determinados temas. Geralmente lançam mão de informações e dados sem mencionar a fonte. “Não existe desigualdade nos salários quando levamos em consideração o tempo de trabalho, a formação, a produtividade e o tempo de permanência no emprego”, diz Kim Kataguiri neste vídeo, no qual questiona a desigualdade salarial entre homens e mulheres. “Os homens trabalham uma média de 41.8 horas. As mulheres, 37.3. Os homens permanecem, em média, 6.2 no mesmo emprego. As mulheres, 5.5”, acrescenta. A reportagem não encontrou as fontes destes dados. Entretanto, segundo os dados de 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgados pelo IBGE, as mulheres têm níveis de escolaridade cada vez mais altos, fazem mais tarefas domésticas e estão chefiando cada vez mais famílias. Ainda assim, o rendimento médio dos homens era de 2.012 reais, enquanto das mulheres era de 1.522 reais. Esta diferença pode chegar a quase 1.000 reais dependendo do Estado, segundo o instituto. Em e-mail enviado ao EL PAÍS, o MBL diz fazer “uso de dados públicos para embasar seus vídeos” e divulgar “as fontes rotineiramente”.
O movimento nega que tenha mudado sua agenda de reivindicações e assegura que se mantém “coerente na defesa de suas bandeiras, elogiando ou criticando as mesmas posturas ou políticas públicas desde 2014”. O perfil do MBL no Facebook é a página de direita que mais cresce e a que mais interage com usuários, segundo a ferramenta de monitoramento Crowdtangle e um levantamento feito pela escola de Comunicação Digital ePoliticSchool.
Migração para a política partidária
Quando surgiram, no final de 2014, os ativistas do grupo chamaram a atenção pela sua juventude e por terem abraçado a correção na política como alvo. Diante de um PT envolvido em vários escândalos e que caía de joelhos com a Lava Jato, era fácil compreender porque a artilharia se voltava especialmente a um partido que somava então 12 anos no poder. O próprio EL PAÍS chegou a compará-los a uma banda de rock. Diziam-se, então, apartidários. Durante um ato pelo impeachment na avenida Paulista, em abril de 2015, chegaram a expulsar do palco o pastor Everaldo, que foi candidato à presidência pelo PSC no ano anterior, por causa do “partidarismo” do pastor. “Nós não permitimos que políticos subam no palanque”, disse na ocasião Rubens Nunes Filho, do MBL. “Nós o cumprimentamos, mas pedimos para que se retirasse por conta do nosso apartidarismo”, afirmou, à revista Época.
Recentemente, fizeram as pazes com a representação por partidos. Alguns de seus membros estão filiados a legendas políticas e até se elegeram vereador — o caso mais conhecido é o de Fernando Holiday, coordenador nacional do movimento que foi eleito em São Paulo pelo DEM. Outros ocupam cargos em câmaras municipais e prefeituras de cidades como Porto Alegre, Goiânia, Caxias do Sul (RS) e São José dos Campos (SP). O grupo também ensaia se unir a parlamentares do PSDB para as eleições de 2018. E se, no passado, não deixavam que políticos subissem no carro de som do MBL, hoje, são eles os que sobem no palanque de olho na eleição de um possível candidato: João Doria(PSDB), atual prefeito de São Paulo.
A candidatura do tucano começou a ser articulada ainda em outubro do ano passado, antes mesmo de assumir a Prefeitura, segundo indica um áudio de um dos líderes do movimento, Renan Santos, ao qual o EL PAÍS teve acesso. Nele, Santos critica o deputado Jair Bolsonaro, preferido pelos conservadores para a Presidência, e fala em “convencer” o prefeito de São Paulo a se candidatar. “Tem que ser Doria 2018, tem que convencer esse cara a sair para presidente. Ele tem lá um pezinho social-democrata aqui e ali (…), mas acho que a gente tem que trabalhar para colocar esse homem lá”, diz Renan.
Questionado pela reportagem sobre qual será a estratégia para as eleições, sobretudo com relação a uma possível campanha do Doria, o MBL respondeu: “Nossa estratégia é sermos fiéis a nossos valores e ideais. Acreditamos em uma agenda de país que trate da diminuição da máquina pública, defenda a política de privatizações, proponha a independência do Banco Central, reformas como a trabalhista, previdenciária, tributaria; uma revisão do pacto federativo, entre outros”. O grupo também diz apoiar “parlamentares que defendam boas ideias, independente da sigla” — com exceção das de esquerda e centro-esquerda, como PSOL, PT e Rede, os quais eles consideram “extremistas”.
O prefeito não esconde sua proximidade com o grupo. Alguns integrantes do MBL já conquistaram cargos na administração municipal. Paloma Oliva, 22 anos, e Cauê Del Valle, 23, são funcionários da prefeitura regional de Pinheiros, comandada por Paulo Mathias — que foi presidente da juventude PSDB e, neste ano, ingressou no MBL. Já na Prefeitura regional da Sé está Eric Balbinus, que também é editor do site O Reacionário, muito compartilhado na página do MBL no Facebook.
Intimidação na rede
O respaldo ao prefeito também faz com que o grupo dedique boa parte de suas postagens nas redes sociais para enaltecer a gestão municipal e intimidar jornalistas ou personalidades que contrariam o tucano ou a ideologia do grupo. Um desses casos de revide ocorreu com o então promotor eleitoral José Carlos Bonilha, que pediu uma abertura de inquérito contra o vereador Fernando Holiday para apurar se ele desobedeceu a lei eleitoral. Em áudio ao qual o EL PAÍS também teve acesso, Flávio Hernandes, outro membro do MBL, pede para “levantar a vida” do promotor. O resultado pode ser conferido nesta publicação do site Jornalivre. Questionado, o MBL assegura que “a pessoa em questão é apenas um apoiador e sua opinião não tem relação alguma com a do movimento”.
O mais recente escracho nas redes ocorreu na última semana, contra o jornalista Artur Rodrigues, da Folha de São Paulo. Ele publicou uma reportagem na qual informava que a prefeitura regional de Pinheiros havia contratado o ativista Cauê del Valle — que antes era assessor parlamentar de Holiday — logo após apagar uma pichação no muro da casa de Doria. O MBL chegou a postar nas redes uma foto de Rodrigues na qual ele aparece em frente a uma estante livros. O grupo destacou uma biografia do guerrilheiro Carlos Marighella em sua estante, sugerindo que o profissional estava vinculado à “extrema-esquerda”. “O MBL atua como escudo do Doria. Quando ele é criticado ou atacado, o movimento com frequência revida. No lugar de discutir o tema, ele busca o calcanhar de Aquiles de seus adversários e ataca”, explica Malini. Em certas ocasiões, Doria e o MBL agem de forma paralela. Como Donald Trump nos Estados Unidos, costumam taxar as reportagens com as quais não concordam de fake news.“Esta estratégia de revide, de escracho, de silenciamento, é muito própria da internet. E o MBL se especializou nisso”, acrescenta o especialista.
Rodrigues já havia sido alvo desta mesma estratégia de intimidação em julho deste ano, quando publicou uma reportagem na qual dizia que as doações de empresas privadas para a Prefeitura de São Paulo não estavam sendo efetivadas. No mesmo dia, tanto o prefeito como o movimento reagiram de maneira ostensiva e utilizaram estratégias parecidas contra o repórter que assinou o texto. Enquanto o MBL atacava o jornalista em suas redes e no site Jornalivre, o prefeito publicava um vídeo no qual também expunha o autor da matéria, chegando inclusive a marcar a página pessoal do repórter no Facebook.
O MBL assegura que não recorre a práticas de intimidação. “Quem agride e mata jornalistas são militantes ligados ao MPL — Movimento Passe Livre. A memória de Santiago Andrade não pode ser esquecida”, disse o grupo ao EL PAÍS, referindo-se ao cinegrafista que morreu após ter sido atingindo por um rojão em 2014, durante um protesto no Rio contra o aumento do preço das passagens de ônibus. Os dois jovens que seriam responsáveis estão sendo julgados. “Nós do MBL respeitamos e defendemos a atividade da imprensa”, acrescentou o movimento, que faz uso de sites que se dedicam a espalhar comentários ofensivos ou tendenciosos pelas redes. O principal deles é o já mencionado Jornalivre, uma espécie de porta-voz do MBL. Quando a jornalista Camila Olivo, da rádio CBN, noticiou que moradores em situação de rua da praça da Sé, em São Paulo, foram acordados com jatos d’água por funcionários da prefeitura que limpavam o local, este site escreveu o seguinte sobre a profissional: “Assim como outros jornalistas da grande mídia, Camila faz parte da classe dos extremistas de esquerda que simulam isenção, evitando se associar ao petismo e outras variantes do pensamento socialista“. Este texto serviu de base para que, depois, Doria falasse que a jornalista tinha um “passado ideologicamente comprometido com o PT“.
A relação do MBL com o site — que está registrado fora do Brasil — não está clara e o grupo se limita a dizer que tem uma relação “amigável” com ele. A reportagem fez um levantamento utilizando a ferramenta Crowdtangle, de monitoramento de páginas do Facebook, e verificou que, entre os dias 16 de junho a 17 de setembro deste ano, o movimento publicou em sua página oficial 4977 posts. Um total de 2.321 posts, quase a metade, são links para os textos do Jornalivre.
AS RESPOSTAS DO MBL AO EL PAÍS
Pergunta. O MBL mudou sua agenda de reivindicações e bandeiras desde sua fundação? Se sim, quais novos temas foram abarcados e quais foram deixados de lado?
Resposta. Não. O movimento notabiliza-se por se manter coerente na defesa de suas bandeiras, elogiando ou criticando as mesmas posturas ou políticas públicas desde 2014.
P. Qual a relação do MBL com o site Jornalivre?
R. Amigável, assim como é com diversos outros sites independentes.
P. O MBL vai mesmo se unir a parlamentares jovens do PSDB nas eleições de 2018?
R. O MBL apoia parlamentares que defendam boas ideias, independente da sigla. Obviamente, aqueles de partidos extremistas como PSOL, PT, PCdoB, Rede e etc não contarão com nosso apoio.
P. Qual é a estratégia do MBL para as eleições de 2018, sobretudo com relação a uma possível campanha do Doria?
R. Nossa estratégia é sermos fiéis a nossos valores e ideais. Acreditamos em uma agenda de país que trate da diminuição da máquina pública, defenda a política de privatizações, proponha a independência do Banco Central, reformas como a reforma trabalhista, reforma previdenciária, reforma tributaria; uma revisão do pacto federativo, entre outros.
P. O EL PAÍS teve acesso a um áudio no qual o membro do MBL Flávio Hernandes fala que a vida do promotor José Carlos Bonilha deveria ser “vasculhada”. Por que vocês adotam este tipo de prática?
R. A pessoa em questão é apenas um apoiador e sua opinião não tem relação alguma com a do movimento. A pergunta não faz sentido.
P. O MBL é acusado de intimar e expor jornalistas que fazem matérias com as quais o MBL não concorda. Isso de fato ocorre? Se sim, por que? Se não, por que surgem estas acusações?
R. Vocês erraram a sigla. Quem agride e mata jornalistas são militantes ligados ao MPL – Movimento Passe Livre. A memória de Santiago Andrade não pode ser esquecida. Nós do MBL respeitamos e defendemos a atividade da imprensa.
P. Ao abordar diversos temas, como os de segurança pública, o MBL utiliza vários dados para sustentar seus posicionamentos. Mas nunca diz as fontes desses dados. Por quê? Como é feita a pesquisa do MBL?
R. O MBL faz uso de dados públicos para embasar seus vídeos, e divulgamos as fontes rotineiramente.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/politica/1506459691_598049.html?id_externo_rsoc=FB_CC
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