Leonardo Sakamoto – ”Pezão é um ex-governador em exercício.” A declaração do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), dada a este blog, ajuda a explicar a sensação de caos na segurança pública do Rio de Janeiro. Pois ao tentar culpar a crise econômica pela qual o Estado passa – que atrasa salários, reduz investimentos e limita gastos públicos – o poder público carioca quer fazer crer o problema é recente e conjuntural, tentando se eximir de responsabilidade.
”É um momento difícil da economia. Estamos vivendo a maior crise brasileira. Estamos pagando o preço por esse decréscimo”, disse Pezão em entrevista à GloboNews.
Estamos pagando sim o preço de uma falência institucional pela qual o grupo ao qual o governador pertence tem grande responsabilidade. Do ponto de vista econômico, através da adoção de medidas de desoneração e subsídios em benefício de empresas que ajudaram a quebrar o Estado. Isso sem contar a corrupção, que já levou o seu antecessor, Sérgio Cabral, a ser condenado a 45 anos de prisão.
Um governo estadual sem aprovação e sem legitimidade dá lugar a um vazio. Contudo, poder não admite vácuo, que é rapidamente preenchido por outras forças – sejam elas policiais, criminosas, milicianas. Daí, sem controle, o Rio se aprofunda no caos.
Mas também pagando um preço por conta da manutenção de uma política falida de ”guerra às drogas”, mantida por sucessivos governos, inclusive o atual.
Em nome de combater o comércio ilegal de psicoativos, estabeleceu-se as bases para a violência armada organizada na capital carioca – que não serão alteradas até que mude a própria política para drogas.
As maiores batalhas do tráfico sempre acontecem longe dos olhos da classe média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.
Não percebemos isso com frequência porque boa parte das TVs registram com mais facilidade o fechamento de escolas das classes alta e média alta quando a violência desce o morro ou transborda da periferia do que as portas de escolas públicas constantemente fechadas por conta da violência em comunidades pobres. Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce não para resolver o problema em definitivo, mas para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte ”civilizada” da cidade.
A forma como o tráfico se organizou e a política adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Sim, o combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas – até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes se chama álcool. Você pode comprá-la no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas ela não é proibida, apenas regulada. Tal como o tabaco.
Toda a expansão de mercado é conflituosa. Em uma sociedade que funciona dentro das normas legais, apela-se à Justiça para decidir quem tem razão em uma disputa. Mas quando se vive em um sistema ilegal, condenado pela própria Justiça, a solução é ter o maior poder bélico possível para fazer valer o seu ponto de vista sobre os demais, sobre a polícia, sobre os moradores de determinada comunidade.
Policiais honestos são vítimas dessa situação, em detrimento aos que não seguem as regras e os que criam milícias. Foram 102 assassinados neste ano, o dobro de anos anteriores – o que já era um número absurdamente alto e inaceitável. A verdade é que normalizamos o absurdo e vamos seguindo enxugando gelo. A maioria das mortes não são de agentes de segurança em serviço. Eles morrem porque são descobertos com armas ou identidade policial em assaltos, mas tudo começa porque são vítimas de assaltos no bairro pobre onde mora. Como a maioria da população.
Ao mesmo tempo, segue o genocídio de jovens negros e pobres nas periferias.
Não há saída para a violência armada organizada no Rio de Janeiro que não passe pela discussão da legalização das drogas. Outros países têm feito esse debate como uma das soluções para reduzir a disputa armada por territórios. Sabem que a ”guerra às drogas” falhou, servindo apenas para controle político e para fortalecer grupos de poder locais e o tráfico de armas. Por aqui, infelizmente, ainda se discute qual o tamanho do porte de maconha que pode dar cadeia.
Em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, na última terça (19), o presidente da Colômbia Juan Manuel Santos criticou a ”guerra às drogas” e defendeu que são necessários outros enfoques e novas estratégias. ”É preciso entender o consumo de drogas como um assunto de saúde pública e não de política criminal”, disse.
Foi uma resposta ao presidente norte-americano Donald Trump, que demandou que a Colômbia aumentasse o combate à produção e ao comércio de cocaína. Santos lembrou que, enquanto houver consumo, haverá oferta e pediu aos outros chefes de Estado que conhecessem as experiências de regulação da produção, comércio e uso de drogas que estão sendo implementadas ao redor do mundo.
”A guerra contra o narcotráfico ceifou muitas vidas, e, na Colômbia, estamos pagando um preço muito alto, talvez o mais alto entre as nações, e o que estamos vendo é que o remédio está sendo pior que a doença”, afirmou o presidente colombiano, um dos responsáveis pelo acordo de paz que pôs fim à guerra contras as Farc.
Isso cai como uma luva para o Brasil e o Rio de Janeiro de hoje: o remédio está sendo pior que a doença. No intuito de combater o tráfico, estamos matando milhares de pessoas todos os anos – a maioria, moradoras de áreas pobres, policiais ou traficantes. Ou seja, gente considerada dispensável. E, ao mesmo tempo, vamos mantendo a indústria do medo em curso e promovendo o controle de determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência. Tudo isso é muito mais danoso à sociedade do que a liberação controlada e regulamentada de drogas.
Se o Rio de Janeiro e o Brasil tivessem governos, neste momento eles deveriam ir às comunidades mais pobres participar dos debates que vêm sendo puxados por elas, sobre as soluções para a violência na disputa de territórios controlados pelo crime organizado. E assumir um planejamento legal e de saúde pública para a legalização e a regulamentação das drogas, desidratando o tráfico de drogas e o tráfico de armas através do fim de seu mercado ilegal.
Isso se o Rio e o Brasil tivessem governos, claro.
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