Lira Neto – Não houve incitação à pedofilia, incentivo à zoofilia. O que houve foi histeria, alimentada por doses inacreditáveis de preconceito, desinformação, moralismo, ignorância e má-fé. O que houve, também, foi a mais nítida demonstração de pusilanimidade por parte do Santander Cultural, que se rendeu ao barulho e aos faniquitos da turba e, por meio de nota xucra, endossou o atestado de retrocesso coletivo.
O cancelamento da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre, passará à história como mais um episódio a confirmar o atual cenário de obscurantismo no país. O Santander, que dizia apoiar a diversidade, dobrou-se à intolerância. O marketing pretensamente arejado não resistiu à tática do grito.
Eram obras em geral já conhecidas, algumas delas circulando em galerias e museus há dezenas de anos, incluindo trabalhos de Volpi, Portinari, Leonilson, Flávio de Carvalho e Lygia Clark. Postas em conjunto pela curadoria para ilustrar a presença da diversidade sexual nas artes nacionais, foram tratadas como objeto de escarcéu.
Difícil apontar o mais constrangedor em toda a celeuma: ativistas jovens escandalizados diante de imagens sexuais, a mais tosca carolice manobrando o instinto de manada que tomou conta das redes ou um centro cultural emitir nota ao público argumentando que a arte “perde seu propósito” quando não gera “reflexão positiva”.
Pelo nível dos comentários dos que se estomagaram com a exposição, a maioria entre eles deve fazer parte dos 92% de brasileiros que nunca puseram os pés em um museu e dos 93% que nunca foram a uma exposição de arte, segundo dados do IBGE.
O que diriam aqueles que acusaram Adriana Varejão de fazer apologia à zoofilia se vissem uma célebre imagem de autoria de Salvador Dalí, na qual um leão e um touro lambem os seios de uma mulher, um cão e uma ovelha mordiscam órgãos genitais masculinos, enquanto uma rã e um rouxinol divertem-se com a reentrância de um ânus e as texturas de um par de testículos humanos?
Qual a reação, entre os que se horrorizaram ante a imagem de um Jesus com vários braços e pernas em referência a Shiva, divindade do hinduísmo, se por acaso topassem, no museu de Namur, na Bélgica, com a tela “O Calvário”, pintada em 1882 por Félicien Rops, em que se vê Cristo transfigurado em Belzebu, com chifres pontudos, patas de bode e imenso pênis ereto, trançando com os cascos os longos cabelos de uma mulher nua?
Os “castos” que viram nas telas de Bia Leite alguma alusão à pedofilia talvez precisassem saber que tais obras premiadas foram inspiradas no Tumblr “Criança Viada”, do jornalista Iran Gusti, para o qual internautas enviavam as próprias fotos de infância a fim de enfrentar, com autoironia, grave questão que aflige milhares de meninos e meninas em todo o mundo: o bullying contra homossexuais.
Atualmente, no Tate Britain, em Londres, está em cartaz uma mostra de Queer Art, nos moldes da “Queermuseu” de Porto Alegre. Lá, crianças com menos de 12 anos de idade podem entrar e não pagam nada. Há pacotes familiares, com descontos no caso de compra de quatro ingressos, para dois adultos e duas crianças. Grupos escolares são bem-vindos, sob agendamento, informa o site do evento.
Durante a semana que passou, para reforçar a ideia óbvia de que o erotismo, a provocação e a quebra de tabus sempre estiveram presentes na obra de grandes mestres da arte universal, andei postando, pelo Twitter e Facebook, imagens clássicas de autoria de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Gustav Klimt, Félicien Rops e Honoré Daumier, entre outros.
Resultado: no Twitter, fui tratado como pervertido por vários usuários. “Cara, você é doente”, diagnosticou um. “Isso é obra de arte somente para desaculturados e sem-vergonhas”, rugiu outro. “Escritor de baixa cultura!”, exclamou um terceiro.
No Facebook, foi pior. Possivelmente denunciada por pudicas senhoras de Santana, minha página foi bloqueada e recebi uma advertência da corporação do sr. Mark Zuckerberg: ou eu retirava as imagens de nus de Picasso, Dali, Klimt, Rops ou Daumier, ou não teria mais acesso à rede social.
Não se trata mais de caso isolado. No Masp, uma exposição retrospectiva da produção do artista Pedro Correia de Araújo, com obras produzidas entre 1929 e 1955, acabou de receber pequenas cortinas pretas sobre imagens consideradas mais eróticas.
Isso sim é indecente: chegamos a um tempo em que obras de arte são obrigadas a vestir burca.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lira-neto/2017/09/1919101-caso-da-queermuseu-confirma-atual-cenario-de-obscurantismo-no-pais.shtml
Deixe uma resposta