Maíra Mathias – Num encontro corajoso, centenas de pensadores e ativistas pela Reforma Sanitária examinam os ataques ao sistema, seus próprios erros e os caminhos para retomar a luta pela Saúde Pública
“A esperança somos nós… e os outros; porque só nós somos muito poucos”. A frase é de Gastão Wagner, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), e sintetiza o momento atual da Reforma Sanitária. Em um país onde crise deixou de ser exceção para se transformar em fato do cotidiano, o movimento que lançou as bases para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) parece ter decidido que chegou a hora das verdades inconvenientes se o objetivo é barrar os retrocessos que atacam a democracia e os direitos sociais.
“Nós, preocupados em reproduzir a cultura do SUS, criamos a igreja do SUS. Sim, porque uma pretensão política e histórica que se nutre somente de uma doutrina e de princípios vira igreja. Quem conhece, se apaixona: é o SUS ideal. Mas o resultado disso é que só conseguimos falar para iniciados”, disparou, por sua vez, Amélia Cohn, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e um dos muitos quadros históricos da Reforma Sanitária que criticaram os rumos pelos quais enveredou o movimento ao longo do Congresso de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, que aconteceu no início de maio em Natal.
Sem autocrítica não há mudança
O evento, que reuniu 2,2 mil participantes, foi marcado por polêmicas – no melhor sentido do termo. Em um debate que reuniu José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde no governo Lula, e Arthur Chioro, titular da pasta no governo Dilma Rousseff, medidas aprovadas e defendidas em suas gestões, que há muito eram apontadas por militantes e pesquisadores como tiros no pé, foram contestadas.
“É difícil avançar nesse debate sem autocrítica. Mas a timidez e a brevidade da nossa autocrítica são desconcertantes. Não falo aqui da penitência para recuperar adesão, para reconquistar, por exemplo, os movimentos sociais que pularam fora da defesa do SUS como o movimento sindical que há muito tempo fez a opção pelos planos e seguros privados. A nossa autocrítica, não sei se vocês concordam, sempre termina com uma homenagem ao nosso discurso tradicional de defesa do SUS – o que é, no mínimo, incompleto. Reconstruir ou atualizar a pauta sobre uma visão de mundo baseada em universalismo requer superar os nossos próprios particularismos”, afirmou Mário Scheffer, professor da USP. depois de criticar a figura de filantropia de ‘excelência’, que garante isenções fiscais a hospitais lucrativos como Sírio Libanês e Albert Einstein e foi criada por Temporão em 2009, e a defesa e aprovação da entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde, herança da gestão Chioro.
“A crise que afetou a esquerda governista não pode engolir o movimento Sanitário”, defendeu Scheffer, e continuou: “Não há só uma crise abstrata, uma crise de agonia e decepções pelo fato de os nossos desejos e sonhos terem sido engolidos ou adiados. Não é um refluxo passageiro e tudo vai voltar a ser como ‘antes’ com a eleição do Lula ou do Ciro [Gomes]. É uma crise que pede também uma refundação do nosso campo, uma disposição de mudar profundamente e isso quer dizer mudar esforço acadêmico, programático e mudar a prática militante. É sobre incluir o SUS como elemento de um novo projeto nacional e de civilização”.
Segundo o professor da USP, além das crises política e econômica, a conjuntura traz desafios adicionais, bem diferentes do contexto de redemocratização que deu corpo ao movimento da Reforma Sanitária. “Fico pensando em como chamar para a defesa do SUS uma sociedade que se fragmentou em categorias sociais, em crenças religiosas, uma classe trabalhadora que em parte ‘endireitou’, as pessoas desiludidas pela realidade do trabalho precário, os 12 milhões de desempregados… Como falar do SUS em tempos de ascensão da extrema direita que votará no [deputado federal, Jair] Bolsonaro? A generalizada insatisfação com a saúde está presente no debate público, mas embolada nessa democracia de opinião polarizada que, de certa forma, atropelou nossos espaços de participação. As nossas conferências e conselhos [de saúde] são os mesmos de 20 anos [atrás] ou piores porque agora são dominados por corporações e por gestores sem nenhum protagonismo. Estamos encapsulados e precisamos mudar nossas estratégias, nossos manifestos só entre nós, nossos congressos entre nós. Não sabemos como fazer mas tenho certeza que sem a juventude sanitária e vigorosas novas alianças vai ser difícil”.
Por que ‘aquilo’ deu ‘nisso’
A ideia da saúde como direito social fervilhou entre movimentos sociais e populares durante a redemocratização brasileira mas há quem ache que, desde que foi plasmada na Constituição Federal de 1988, a fervura como que evaporou. As explicações são várias. Por muito tempo, prevaleceram as análises que juntavam o cenário econômico mundial na década de 1990 com a vitória de políticos que encamparam por aqui o projeto neoliberal, fazendo com que o SUS e as políticas sociais definhassem no nascedouro pós-constitucional e, consequentemente, não ganhassem ‘corações e mentes’. Sem ignorar esse histórico, durante o encontro promovido pela Abrasco, Amélia Cohn deu outra chave de interpretação, muito mais incômoda para o movimento da Reforma Sanitária. “A tese que vou defender aqui é que há futuro, mas o futuro vai ser duro. Temos que refundar o SUS e refundar a Reforma Sanitária”, iniciou a socióloga, que partiu de uma história pessoal para relembrar o sentido do Sistema Único de Saúde numa sociedade como a brasileira. “Fui a uma UBS [Unidade Básica de Saúde] administrada por OS [Organização Social] em São Paulo tomar vacina de gripe. Depois de ter que ouvir meus colegas de sala falarem que tinha que ter pena de morte, que tem que ter ditadura para botar ordem, que os políticos são todos corruptos ao longo de uma hora e meia de espera, fui falar com uma ‘colaboradora’ – que é como eles chamam os trabalhadores – e a resposta dela foi: ‘A senhora não sabe que está numa UBS? Vai para aquela sala, encosta na parede e espera!’”.
A moral da história? “O velho [Sergio] Arouca dizia que o SUS era um projeto civilizatório, através do qual iríamos modernizar essas relações tão hierarquizadas da nossa sociedade”, lembrou. Mas segundo Cohn, numa sociedade tão desigual como a brasileira, o problema sempre foi construir identidades políticas autônomas das classes e setores dominantes. “A nossa ‘cidadania regulada’ mais do que um canal de expansão de direitos, obliterou, fechou os espaços institucionais de práticas e identidades potencialmente alternativas. E, portanto, o problema do Brasil, já em 1983, era como se constituir uma sociedade política capaz de superar os traços burgueses e pequenos burgueses, acostumados a monopolizar o discurso da sociedade na política e no Estado”, disse ela, e arrematou: “Eu acho que isso se aplica à Reforma Sanitária. Apesar de todos os esforços, nós, da velha e da nova guarda da Saúde Coletiva, continuamos monopolizando na sociedade o discurso da saúde como direito”.
Para Amélia Cohn, o movimento apostou fichas demais no Estado como regulador e mediador das forças sociais e “bebeu nas águas” do desenvolvimentismo. “Foi nisso que a nossa proposta se calcou e foi exitosa. Este modelo de Reforma Sanitária baseado nessas premissas acabou. Quer dizer que fomos todos derrotados? Não, mas esse modelo está esgotado. Não é mais a partir do Estado. Não é mais a partir de nossas falas decanas que a Reforma vai se refazer e reviver”, defendeu. E propôs: “Meu primeiro encaminhamento é: saiamos do Estado e caminhemos para a sociedade civil para entender o Estado. A Reforma Sanitária foi o inverso [disso]. Pela primeira vez, nós não temos nenhum representante líder da Reforma Sanitária no interior do Ministério da Saúde. Fomos despejados. E vamos ter que aprender a viver não dependentes do Estado quando a nossa trajetória foi a de se voltar para o Estado dando as costas para a sociedade”.
Novas relações entre o público e o privado
Mas os debates mostraram também que, se quiser atravessar e encontrar a sociedade do outro lado da calçada, a Reforma Sanitária vai ter que olhar para os dois lados da avenida em que trafegam Estado e mercado, cuidando assim de não ser atropelada no meio do caminho. Ou pior: evitar a tentação de pegar carona com algum empresário para um lugar bem longe dali. “Nós não estamos mais nos anos 1960, 1970, 1990, quando havia uma política privatizante nascida no seio do Estado imposta para a sociedade. Agora o jogo é diferente. Quem dá as cartas, inclusive no seio do Estado, é o setor privado. O jogo mudou, o tabuleiro mudou, as peças mudaram e precisamos conversar sobre isso”, propôs Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo ela, uma primeira mudança nessa história é a pauta do empresariado da saúde. “Apareceu em 2015 explicitamente exposta por novas entidades empresariais a proposta de, ao fim e ao cabo, entregar o público para a administração do privado. Essas entidades demandam ativamente prontuário único, consideram que a coordenação do cuidado e as regiões de saúde são essenciais. Inclusive, se propõem a gerenciar tudo isso. Grandes empresas privadas contrataram médicos de família, inclusive os mais famosos – as lideranças da medicina de família brasileira – e financiaram o último Congresso Internacional de Medicina de Família no Brasil. Portanto, essa agenda está posta”, denunciou.
Nesse sentido, Ligia esclarece que, diferente do que podemos pensar, o setor privado não está contra o SUS. Ou melhor: não está contra qualquer SUS. “Existe um consenso sobre o SUS, seja lá que conotação ele tenha: SUS para pobre, o SUS como eu o considero, o SUS como outros o consideram. O SUS ter ficado de pé, apesar dos pesares, não é pouco. Mas temos que admitir que ficou de pé quase como um saco vazio”, lamentou, emendando: “Seria ingenuidade supor que nosso único adversário é o Ricardo Barros [ministro da Saúde] e não encararmos a força econômica e política desses grandes empreendedores e empreendimentos que não têm nada contra o SUS. Desde que o SUS seja o saco vazio, desde que seja o enunciado abstrato, desde que seja quase um fetiche”.
Quais são, então, os perigos do setor privado para a proposta de um sistema universal em plena periferia do capital que tem, portanto, como principal horizonte o combate da desigualdade social? Para Ligia, um deles é a captura. “Não é só captura: é prisão perpétua. Para quem passa da porteira, é muito difícil que a gente consiga habeas corpus, até porque as pessoas não querem”, brincou. Segundo ela, um grande grupo econômico vem decidindo com a maior desenvoltura quem vai ocupar cargos no Ministério da Saúde, nas agências reguladoras, em secretarias estaduais estratégias, especialmente a de São Paulo. “E não menos importante: a captura vem subtraindo quadros do Movimento Sanitário. Existem hoje sanitaristas consultores, sanitaristas nos institutos dos hospitais para ricos e pesquisas financiadas com recursos da renúncia fiscal dada aos hospitais para ricos. Não é que exista uma porta giratória: é um portal, no qual muita gente tem algum tipo de envolvimento”.
Unidade de ação
O encontro entre o pano de fundo setorial com a crise econômica deu margem a várias análises que defenderam uma reorganização do movimento da Reforma Sanitária. Para o economista Áquilas Mendes, da USP, o momento pede menos propostas de intervenção na arquitetura institucional do SUS e mais táticas de ação conjunta. “Não vamos dizer que a gente não tem alternativa. A gente tem a alternativa da construção da luta. Precisamos nos juntar, mas para isso precisamos ter diagnósticos, no mínimo, parecidos para reforçar a luta em uma correlação de forças em que o outro lado não quer conversar. Vamos parar de brigas bestas? Se o melhor [para o SUS] é [ser gerido em um modelo de] autarquia, consórcio, etc. Não basta ficar discutindo a melhor forma de trabalho humanizado na UBS do ‘Cariquiri’. Faz parte, mas a gente não pode se perder nisso. Enquanto estamos discutindo essas propostas, eles estão passando por cima da gente. É disso que precisamos ter clareza”, afirmou.
Também de acordo com Carlos Ocké, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), a palavra de ordem é “unidade”. “O que está colocado na conjuntura é a superação da crise [econômica] em sentido capitalista e, pior, em sentido autoritário e fascista. Como sair da crise em sentido democrático, popular e socialista é o nosso desafio”, disse. Segundo ele, estamos assistindo a um aprofundamento da destinação do fundo público para o setor privado e, principalmente, para o mercado financeiro, que detém a hegemonia da configuração atual do sistema. “Você tem uma recessão e ao invés de propor política anticíclica de caráter keynesiano, se propõe uma política de austeridade que não supera a crise econômica. Não há aumento da arrecadação e há estrangulamento do financiamento das políticas sociais. Vimos a EC [Emenda Constitucional] 95 ser aprovada, uma medida que reduz ainda mais o gasto público [com saúde] per capita. É uma política perversa e privatista”, elencou.
Para Ocké, o conjunto de entidades que compõe o movimento da Reforma Sanitária precisa discutir um projeto não só para tentar influenciar as plataformas políticas em 2018, mas para organizar os trabalhadores “contra a direita, contra o fascismo e a favor do SUS”. “Olhemos a experiência italiana na luta contra o fascismo, a experiência da socialdemocracia na luta contra o nazismo e os problemas da esquerda brasileira em 1964. A unidade do bloco histórico em defesa do SUS é fundamental, vai se construir na ação e para isso a gente precisa estar organizado”, defendeu.
Ainda vale a pena
“O que nós podemos começar a fazer? Nossa tradição é boa. Eu considero que somos já, desde 1970, um movimento social de novo tipo”, disse Gastão Wagner para um público de duas mil pessoas. No dia seguinte (03/05), ele encontraria um público menor, mas representativo. É que desta vez, o Congresso de Política sediou uma reunião do movimento da Reforma Sanitária bastante diferente: além de entidades tradicionais como Abrasco, Cebes e Abrasme, associações de usuários do SUS e iniciativas como a Frente Nacional Contra a Privatização do SUS se integraram ao grupo para dar início a um processo de diálogo que tentará encontrar convergência na divergência. Como saldo do encontro, todos os presentes passarão a integrar um grupo executivo que tem a missão de colocar de pé ações. Ficou decidido que a primeira delas é uma espécie de limpeza do terreno: um debate em que os muitos diagnósticos da conjuntura poderão ser aprofundados e as discussões travadas.
“Precisamos renovar este projeto da Reforma Sanitária mas, sobretudo, radicalizar a participação dos vários agentes e atores nesse processo e isso só será possível se nós seguirmos um pouco o Milton Nascimento, que diz que é preciso saber o que fizemos para saber o que teremos mais para fazer”, disse Jairnilson Paim, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na abertura do congresso, para completar: “A Reforma Sanitária não é uma coisa que aconteceu lá em 1980. Ela pode ser entendida como movimento, como projeto e, a depender da conjuntura, o momento do movimento será mais relevante do que o momento do projeto e da sua implantação. A Reforma Sanitária não é 8ª Conferência Nacional de Saúde, nem a Constituição de 1988”.
O presidente da Abrasco, Gastão Wagner, também contextualizou esse passar de anos entre a mobilização que criou o SUS e os dias de hoje. “O movimento da Reforma Sanitária não tem comitê central. Tem conflito, alguns têm mais poder, outros menos, alguns são mais experientes, outros têm mais capacidade de vocalização. Integra-se por produção de consenso, não exige eliminação do diferente para funcionar. A gente evita produzir adversários entre possíveis aliados. A gente conseguiu aprovar o SUS na Constituinte, isso exigiu um processo de organização. Entretanto, o tempo passou e a barra pesou. Ainda há a hegemonia de uma visão de que o crescimento econômico por si garantiria bem-estar social. Não estou falando só dos intelectuais, isso graça entre setores de trabalhadores, populações. Precisamos reconstruir a perspectiva de que se o crescimento econômico não estiver integrado ao desenvolvimento ambiental e social não tem sentido. Sem concomitante distribuição de renda, sem cidadania plena, não tem sentido” afirmou Gastão na conferência de abertura do congresso. E, arrematando as fichas que foram caindo ao longo evento com um fio de esperança, concluiu: “Sabemos da crise de legitimidade das políticas sociais. O SUS tem uma força, que é a existência dele. O SUS virou um nome próprio, substantivo. Vale a pena brigar pelo SUS. Vale a pena brigar pela universidade pública. Vale a pena brigar pelo movimento da Reforma Sanitária”.
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