Flávio Aguiar – Beleza natural encanta e herança cultural e histórica entorpece os sentidos, em uma vertiginosa experiência no interior do México
Gostosuras e travessuras – ruas exibem vitrines sedutoras e também recados de um povo de elevada consciência social
Ir a Chiapas é uma dupla viagem. A primeira, material, é a de ir a um belo recanto geográfico do mundo mexicano. A segunda é tributária daquele significado herdeiro dos anos 60, de ternura experiência que ao mesmo tempo amplia e alucina o mundo sensorial e do espírito. A experiência é tão vertiginosa que não dá para sintetizá-la num todo compacto e coerente. Por isto preferi organizar o relato em verbetes interligados, mas autônomos.
Um pouco de história
Chiapas é a província mais meridional do México, ladeada pelos estados de Oaxaca, Vera Cruz, Tabasco, ao norte, o Oceano Pacífico a oeste e a Guatemala, a leste e ao sul. Tem cerca de 3,5 milhões de habitantes, na maioria indígenas das várias etnias maias ou seus descendentes. Historicamente a província teve uma contínua relação tensa com os sucessivos governos centrais mexicanos, desde a independência. Sua elite econômica – muito conservadora – aderiu tardiamente à independência do México. Posteriormente resistiu encarniçadamente contra os projetos de extinção da escravidão, de reforma agrária e trabalhista.
Em compensação, foi e é palco de um dos mais pujantes movimentos indigenistas do México e do mundo. A última expressão deste indigenismo foi a revolta do Exército Zapatista de Libertação Nacional, dos anos 90. Hoje este movimento, então armado, está em estado de trégua com o governo mexicano. Conquistou várias das reivindicações dos movimentos indígenas.
Mas as marcas de sua presença são muito fortes, em pichações pelas paredes e em organizações cooperativas que, inclusive, atendem o turismo na região. Seu líder, o Comandante Marcos, mergulhou num limbo, e até hoje se discute sobre sua identidade. O governo o identificou como Rafael Sebastián Guillen, ex-professor da Universidade Autônoma do México, mas o movimento zapatista nem confirma nem nega a afirmação.
Outro tanto de geografia
A geografia de Chiapas é muito acidentada. Com uma visada ampla, pode se dividi-la em Terras Altas e Terras Baixas. Estas ocupam vastas áreas junto ao Oceano Pacífico, à fronteira com a Guatemala e parte das divisas com os demais estados mexicanos. As Terras Altas ocupam uma serra ocidental que corre paralela à costa do Pacífico e um Altiplano Central, cuja altitude média vai bem acima dos dois mil metros. As Terras Baixas têm um clima tropical exuberante e as Terras Altas têm um clima temperado e de noites gélidas o ano inteiro e invernos de dias muito frios. No correr de nossa visita passamos pelas Terras Baixas a leste, perto e junto da fronteira com a Guatemala, e pelo Altiplano Central.
As armas e os varões assinalados
Viajar pelas estradas das Terras Baixas, onde as estradas são estreitas mas bem recapeadas, leva-nos ao encontro de verdadeiros pelotões de policiais e soldados armados até os dentes. Estão sempre em grupos grandes, nunca menos de dez militares, podendo chegar a vinte ou trinta. Os postos de polícia rodoviária parecem guarnições de guerra, com trincheiras e cabanas guarnecidas por sacos de areia ou grossas camadas de terra escavada. Por toda parte, armas de grosso calibre. Que será isto?
Provavelmente uma reminiscência da revolta zapatista. Além disto, pode ser fruto da presença do narcotráfico. Segundo se comenta na região, Chiapas não é um grande centro consumidor nem produtor de drogas pesadas, mas é um corredor de sua passagem, entre a Colômbia e outros países da América Central, o centro e o norte do México, e mais adiante os Estados Unidos.
Recomendamos, para qualquer viagem, recorrer a ônibus ou então a excursões guiadas. É mais seguro, e, para além de ver a paisagem, conhecer a região implica em percorrê-la (bem como as Terras Altas) na companhia de alguém tarimbado, com bom trato em história e antropologia.
As ruínas maias
Palenque é a mais grandiosa das ruínas, com seus vários conjuntos de edifícios em grande parte de fundo religioso
Nas Terras Baixas visitamos três conjuntos formidáveis de ruínas maias: Palenque, Yaxchilan e Bonampak, todos muito perto da fronteira com a Guatemala. Uma curiosidade: quando estudei História da América, na minha pré-história ginasiana, aprendi que os maias eram um povo extinto. Ledo engano. Visitando o sul do México, só dá maias e seus descendentes para todo lado.
Chiapas não é exceção. De onde veio esta lenda da extinção? Tenho uma hipótese bastante plausível. Quando os espanhóis dominaram a região, a partir de meados do século 16, já encontraram uma série de cidades abandonadas e em ruínas, entre elas aquelas três. Os motivos de sua decadência e abandono são até hoje assunto em debate.
Em geral, citam-se como causas: catástrofes naturais, como secas prolongadas; já o exaurimento das terras e dos recursos naturais para a agricultura, provocado por formas de monocultura; as guerras entre elas; e também revoltas internas, provocadas pela hierarquização extremamente rígida das sociedades maias.
Das três ruínas, Palenque é a mais grandiosa, com seus vários conjuntos de edifícios em grande parte de fundo religioso ou tumular, para garantir que o descanso final de seus reis e rainhas não seria perturbado por violadores. Consta que nos seus primórdios Palanque teria sido dirigida por um matriarcado – coisa que também se registrou em outros grupos étnicos mexicanos.
Entretanto o conjunto mais impressionante é o de Yaxchilan, às margens do Rio Usumacinta, que separa o México da Guatemala. Para chegar-se até lá deve-se percorrer um trecho do rio em pequenos barcos. Nas margens, plácidos jacarés descansam ao sol. A parte da cidade que se visita era habitada pelas classes dominantes, de aristocratas e religiosos. A plebe camponesa e serviçal residia do outro lado do rio, em choupanas simples.
Em Yaxchilan se cultuava sobretudo o “mundo inferior” dos maias (que nada tinha a ver com o inferno cristão). Parte de suas ruínas é formada por entradas para este “mundo inferior”, cheias de aranhas e morcegos, com passagens escuras e algo sinistras. Um aviso: ao ir, leve uma lanterna ou pelo menos um celular que possa iluminar-se. E não é um lugar para crianças pequenas nem pessoas com dificuldades de caminhar.
Já Bonampak é um lugar luminoso, e guarda um dos únicos resquícios maias de pinturas coloridas. O tema das pinturas (além de outros desenhos maias) nem sempre é agradável, representando a tortura e o sacrifício de prisioneiros de guerra. Mas a sua qualidade estética é inegável e muito impressionante. Em resumo, visitar o mundo dos maias é para corações fortes e veteranos.
As Terras Altas
Nosso epicentro nas Terras Altas foi a cidade – linda e cativante – de San Cristobal de las Casas, a 2.400 metros de altitude. De dia, uma temperatura relativamente equilibrada, mas que não permite andar apenas de manga curta. De noite e de madrugada, um gelo. O nome rememora o padre Bartolomé de las Casas, que atuou na região e em outras partes do México em favor dos indígenas já no século 16. A cidade impressiona pela simpatia dos habitantes, pela quantidade de igrejas de fachadas ricamente trabalhadas, pelos mercados coloridos de frutas e doces.
Nela encontramos uma esplêndida cooperativa indígena, remanescente do movimento zapatista, de nome TierrAdentro, onde se vende artesanato da região e onde há um restaurante muito bem servido, com tudo o que se possa imaginar, e barato. Com base em San Cristobal, fizemos uma excursão guiada pelos arredores, a Zinacantán e San Juan Chamula. Zinacantán é uma vila de artesanatos, sobretudo de tecidos. Tudo é muito forte e colorido. A religião está em toda parte: nas tecelagens se depara com os altares de culto, tudo muito sincrético e pleno de resquícios maias.
O sincretismo continua em San Juan Chamula. Em sua catedral (em cujo interior é proibido filmar e fotografar) se realizam cultos de cura e purificação, com sacrifício de animais, diante de uma profusão de imagens de todos os santos e todas as santas que se possa imaginar. Também deparamos com histórias violentas da região. Havia uma igreja junto ao cemitério, cujo cura não gostava dos cultos maias na outra igreja, ameaçando excomungar quem lá fosse. Os habitantes simplesmente mataram o padre!
Então houve um grande terremoto na cidade: a velha igreja desabou, mas a imagem de São João Batista dentro dela ficou intacta. Isto foi lido como um castigo pelo assassinato do padre, e a imagem intacta como um sinal de culto. Ela foi levada para a outra igreja, onde está até hoje.
Esta igreja, que depois daqueles acontecimentos violentos, fora destituída de seu status, hoje está reintegrada à comunhão católica, e todos os domingos um padre a visita, realizando batizados em seu interior. Outra história (esta pode ser confirmada no Youtube): em meados do ano passado uma turba de camponeses enfurecidos cercou a prefeitura, reclamando que o prefeito tardava em distribuir uma quantia em dinheiro que o governo federal havia enviado para eles. Resultado: seguiu-se uma discussão que desandou em tiroteio. Morreram o prefeito, mais quatro funcionários da prefeitura e um camponês.
Terminando
Visitar Chiapas é visitar “o México profundo”. Ou um destes Méxicos. Trata-se de um país fascinante, “cheio de som e fúria”, como diz a peça Macbeth, de Shakespeare. Ao se ir, não se volta o mesmo. Boas viagens!
http://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-do-velho-mundo/2017/07/mexico-a-dupla-viagem-a-chiapas
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