Sociedade

Tempos estranhos

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LIRA NETO – Cena 1: Um batalhão de soldados aparelhados de fuzis investe contra a multidão, deixando atrás de si um rastro de destruição e brutalidade. As paredes das habitações coletivas são demolidas com violência, embora lá dentro ainda existam moradores que não tiveram para onde ir nem oportunidade de correr. Em meio aos estampidos, entre nuvens de fumaça e poeira, homens, mulheres e até crianças fogem atarantados, sem direção definida. Pela imprensa, o prefeito comemora, minimizando a ocorrência de feridos e desabrigados.

Essa bem que poderia ser uma narrativa do final do século 19. A descrição da derrubada do Cabeça de Porco, por exemplo, o maior cortiço do Rio à época. Um episódio ocorrido no tempo em que questões sociais e de saúde pública eram tratadas pelas autoridades a bala, como caso de polícia. O prefeito carioca de então, Barata Ribeiro, definira aquela ação armada como medida civilizatória, cruzada em nome da ordem e do progresso. Resultado do imbróglio: pessoas em situação de extremo risco, desalojadas à força, ocuparam as encostas dos morros vizinhos, dando origem às primeiras favelas do país.

Infelizmente, custa crer, tal barbárie não faz parte do passado. Não à toa, os tempos verbais do primeiro parágrafo deste texto estão todos no presente. O absurdo da cena deu-se há poucos dias, século 21, no coração da cidade mais rica e desenvolvida do país. A pretexto de exterminar a cracolândia, uma megaoperação posta em prática em São Paulo apenas conseguiu espalhar um problema que já era crônico por outras regiões da cidade. Mais de cem anos antes, um jornal carioca, “O Paiz”, indagara a Barata Ribeiro: “A cabeça está decepada, mas o rabo, toda essa cauda de expulsos que trazeis atrás, onde a acomodareis?”

Cena 2: Ao tomar posse de um cargo público, um sujeito relativamente jovem e que diz representar o “novo” trombeteia discurso supostamente moderno, pregando a primazia da eficiência administrativa sobre as contingências do fazer político. A demonização da política e dos políticos profissionais é, quase sempre, a tônica de seus pronunciamentos e entrevistas. A imprensa compra a ideia e propaga a imagem de um líder jovial, capaz de fazer uma gestão baseada na excelência técnica e na impessoalidade das decisões.

Dessa vez, o que parece ser uma cena atual, é antiquíssima. O parágrafo acima descreve os instantes iniciais da chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, após a vitória da chamada Revolução de 30. Instalado no governo, Getúlio fez valer a potoca de que não era político “embora tivesse ocupado vários cargos públicos ao longo da vida” e apresentou-se à sociedade como um renovador dos costumes. Ele, que se gabava de acordar cedo e trabalhar muito, utilizou-se da insatisfação popular contra os políticos para implantar um governo autoritário, que desdenhava a democracia e flertava com os regimes fascistas que então despontavam na Europa.

Na revista “Careta”, uma charge publicada em novembro daquele ano mostrava a imagem de uma bruxa, personificação da política, morta, pendurada na forca. “Tomara que essa megera não tenha deixado filhos por aí”, dizia o carrasco.

Impressiona que, mesmo depois de a história demonstrar que a tentação totalitária se esconde por trás desse tipo de mensagem, há quem ainda pretenda adotá-la como sinônimo de modernidade.

Cena 3: Antes de se apresentarem para o público, vários artistas recebem a mesma advertência, por escrito, deixada sobre as mesas dos respectivos camarins. Todos eles são avisados de que, caso não se resumam a tocar e cantar, evitando assim qualquer comentário ou manifestação de ordem política, a prefeitura estará sujeita às penas determinadas pelas autoridades promotoras da ameaça. O responsável por transmitir a informação, numa frase que já se ouviu inúmeras vezes ao longo da história, lava as mãos e declara que está apenas repassando ordens dos poderes situados acima dele.

Nesse caso, seria possível imaginar a cena em qualquer ditadura sanguinária, uma autocracia que imponha a censura às manifestações culturais e persiga artistas e intelectuais como insidiosos inimigos. Não. Ocorreu, também, em São Paulo, na Virada Cultural, por determinação de uma representante do Ministério Público, órgão que em tese teria o dever de atuar em defesa da democracia e de zelar pelos direitos constitucionais, que preveem ampla liberdade de expressão e opinião. Tempos estranhos. Tempos sombrios.

http://m.folha.uol.com.br/colunas/lira-neto/2017/05/1887757-tempos-estranhos.shtml?cmpid=comptw

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