Sociedade

Pesquisa sobre as paradas de sucesso americanas derruba certezas e gera críticas

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SILVIO ESSINGER – Estudo britânico analisou mais de 17 mil músicas que foram sucesso entre as décadas de 1960 e 2010

Patrimônios britânicos e mundiais, os Beatles e Rolling Stones não teriam sido, como se pensava, tão responsáveis assim pela mudança de rumos musicais nas paradas americanas de sucessos quando chegaram com estardalhaço aos EUA, em 1964. Revolução mais significativa no grande índice orientador de tendências do pop mundial aconteceria, de fato, em 1991, quando o hip-hop, uma criação local, teve a sua explosão comercial. Ao menos essas são as conclusões do estudo britânico “The evolution of popular music: USA 1960–2010”, conduzido por Matthias Mauch (da Queen Mary University de Londres), Robert M. MacCallum e Armand M. Leroi (ambos do Imperial College de Londres) e Mark Levy (do site britânico Last.fm, misto de rádio on-line e comunidade virtual focada em música com cerca de 50 milhões de usuários).

Publicado nesta quarta no periódico “Royal Society Open Science”, o estudo, feito com mais de 17 mil músicas que estiveram nas paradas americanas da revista “Billboard” entre 1960 e 2010, baseia-se na análise de estrutura musical para dar fundamento científico a explicações sobre as oscilações estilísticas da música pop com êxito comercial em 50 dos seus cruciais anos. Algo que, até então, tinha sido alvo de estudos voltados para as ciências humanas, ou de textos, mais ou menos apaixonados, de cronistas e comentaristas culturais.

“Pela primeira vez podemos analisar as propriedades musicais de gravações em grande escala. Podemos realmente ir além do que os especialistas em música nos contam, ou o que sabemos sobre essas gravações, olhando diretamente para elas, dissecando sua composição e entendendo como eles mudaram”, disse, em comunicado, Mathias Mauch, que conduziu o estudo. “Sem dúvida, alguns irão discordar da nossa abordagem científica, e acho que ela é muito limitada para um assunto tão emocional, mas acho que podemos ir além da fruição da música, aprendendo mais sobre ela”.

A MÚSICA POP COMO FÓSSIL

Da mesma forma que paleontologistas se debruçariam sobre um fóssil, os pesquisadores (que vêm das áreas de engenharia eletrônica e ciências biológicas) buscaram nas canções gravadas informações que pudessem ajudá-los a organizar uma espécie de história evolutiva da música pop — a grosso modo, para mostrar que, assim como o homem tem muito do macaco, a música de Beyoncé pode muito bem ser uma descendente daquela de Elvis Presley. “Você pega algo que existe, e que na biologia seriam os genes. Mas aqui são estilos musicais. Você pode recombiná-los, como os genes, e daí vem algo bem parecido como uma mutação”, explica Mauch, em entrevista concedida à revista “Scientific American”.

Na impossibilidade de estabelecer classificações puramente musicais para subgêneros como synthpop, rock sulista ou pop coreano, os estudiosos decidiram trabalhar com 13 agrupamentos de estilos básicos, de acordo com as características observadas nas canções. Ou seja, observando as características de sequências de acordes, de timbre dos instrumentos, coloração e intensidade da execução, o rock pode estar num agrupamento com o classic rock, o pop e a new wave, ou então em outro com o mesmo classic rock, o alternativo e o hard rock. Contingências científicas de um trabalho que lida com grande complexidade.

Resumido em um gráfico (acima), com a variação de presença nas paradas de cada um dos agrupamentos de estilos básicos, o painel evolutivo da música pop traçada pelos pesquisadores ressalta três anos que podem ser considerados “revolucionários”. O primeiro foi 1964, aquele em que os Beatles e os Stones foram descobertos pela América, e que, segundo o pensamento corrente, teriam provocado uma profunda mudança na música jovem do país, levando milhares de garotos a formar suas selvagens bandas de garagem e deixar para trás as baladas açucaradas que dominavam o rádio. O que o estudo diz (com a fria certeza da ciência) é, basicamente, que a mudança teria acontecido mesmo sem eles, pois ela já estava em curso entre os artistas da cena local.

Outro ano revolucionário, segundo o estudo, foi 1983, em que uma onda britânica de grupos identificados com a new wave e baseados em sintetizadores (Duran Duran, Depeche Mode e Yazoo) e do hard rock (Van Halen, Def Leppard, Kiss) mudaram radicalmente as características musicais do rádio. O uso cada vez mais disseminado de recursos digitais (baterias eletrônicas, samplers) também teria outro efeito não revolucionário, mas relevante, em 1986: foi o ano, em todo o período analisado, em que a música soou mais homogeneizada, menos variada.

Mas nada foi como 1991, quando o movimento hip-hop chegou ao mainstream e os estilos associados ao rap (gangsta, old school), segundo o estudo, configuraram-se como “o mais importante evento a moldar a estrutura musical das paradas americanas no período estudado”. A partir do momento em que grupos como Public Enemy e NWA surgiam, com novos paradigmas de melodia e harmonia, além de distintas formas de produção (DJs que trabalham com colagens de sons), o estudo começa a verificar aumento considerável no padrão H5 de harmonia (“sem acordes identificáveis”) e o declínio do H1 (“acordes com sétima dominante”), o que coincide com o declínio do jazz e do blues nas paradas.

Outra conclusão importante é que, a despeito do rolo compressor da tecnologia, a variedade musical geral das paradas não declinou no período, havendo até lugar para uma ressurgência, no fim dos anos 2000, de fenômenos como o R’n’B baseado em vocais femininos, como o de Beyoncé.

ESTUDO ‘SOB SUSPEITA’

Ouvido pelo GLOBO, o musicólogo da Escola Superior de Música de Catalunha Rubén Lopéz Cano diz ver “com muita suspeita” o estudo.

— Em geral, estudos com enormes quantidades de dados são decorrentes da possibilidade técnica de fazer grandes somas, não de alguma necessidade firme de conhecimento. Normalmente, a abordagem de questões de investigação e os pressupostos metodológicos são falhos. Amostras coletadas não são representativas de uma população específica e, em inúmeras ocasiões, os responsáveis não têm ideia de como interpretar os resultados — diz. — Além do mais, a lógica da mudança adaptativa de espécies não é compatível com as transformações estilísticas da música. Se não contemplarmos a interação das estruturas musicais, das canções, dos horizontes de expectativas dos ouvintes, dos locais de consumo musical, da infraestrutura da indústria e do tempo histórico e social, não se pode dizer nada academicamente crível sobre as transformações da música popular dos últimos 70 anos.

Em entrevista ao jornal inglês “The Guardian”, o professor Mike Brocken, conferencista da Liverpool Hope University e diretor do primeiro programa de mestrado em Beatles no mundo, também bateu firme: “Não creio que o tipo de análise musical formalista que é sugerido seja de alguma valia. Os Beatles ‘comunicavam’ coisas para as pessoas; se foi através de um acorde de lá maior ou lá menor, não faz a menor diferença. Abordagens semióticas rendem muito mais que formas de acordes e de marcações de tempo”.

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