Política

Para além da corrupção: “os próximos tempos serão de intensificação da política e das disputas ideológicas”

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Gabriel Brito – As in­ves­ti­ga­ções da Lava Jato con­ti­nuam na ordem do dia, ora atin­gindo um es­pectro mais amplo de par­tidos e ca­ci­ques, o go­verno Temer não em­placa saídas à crise e o clima de greve per­ma­nece. Sobre toda a pros­tração que vive o Brasil, en­tre­vis­tamos o so­ció­logo Léo Lince, es­tu­dioso de temas como Re­forma Po­lí­tica.

“Muita coisa faliu de­fi­ni­ti­va­mente, mas seus es­com­bros ainda não foram re­mo­vidos (…) O tal ‘acordão’ su­ge­rido, por exemplo, já foi por água abaixo. Não existe mais. Seus in­ven­tores já devem estar ma­qui­nando ou­tros si­mu­la­cros. Os ar­tí­fices da crise não pos­suem le­gi­ti­mi­dade para for­mular saídas. Tudo o que foi ten­tado neste sen­tido não pros­perou”, ana­lisou.

Dessa forma, Léo Lince traz a boa e má no­tícia: es­tamos vi­vendo tempos de tran­sição, mas ela ainda não foi capaz de se re­a­lizar. En­quanto isso, os ve­lhos donos do jogo tentam re­or­ga­nizar sua do­mi­nação. Como em suas tra­di­ci­o­nais co­lunas neste Cor­reio, o so­ció­logo des­taca a re­lação um­bi­lical entre Es­tado e ca­pital no Brasil, muito à frente dos de­bates que ilus­tram uma opo­sição his­tó­rica. Quanto à atu­a­li­dade, não poupa o PT de uma par­cela es­pe­cial de res­pon­sa­bi­li­dade para a de­bacle bra­si­leira.

“Car­lito Maia, o gênio que in­ventou os mais con­tun­dentes slo­gans da fase he­roica do pe­tismo, dizia, talvez com ou­tras pa­la­vras, o se­guinte: quando a es­querda co­meça a contar di­nheiro é porque já virou di­reita. Aliás, o sím­bolo maior da des­graça do PT foi a troca de Car­lito Maia por Duda Men­donça. Ao invés de ajustar o poder aos im­pulsos do po­de­roso mo­vi­mento po­lí­tico que lhe levou ao go­verno, o par­tido foi to­mado pela ló­gica do poder do­mi­nante. Delfim Netto, com seu sar­casmo ha­bi­tual, chamou a ‘Carta aos Bra­si­leiros’ de ‘Carta de Ri­beirão Preto’. Ele se re­feria, na re­a­li­dade, não à ci­dade, mas ao Pa­locci, aquele se­gundo o qual ‘não se dá ca­valo de pau em tran­sa­tlân­tico’”.

Apesar do quadro de de­sen­canto, que não chega a ser ex­clu­si­vi­dade do país, Leo vis­lumbra pos­sí­veis saídas po­si­tivas, em es­pe­cial se pau­tadas pela po­pu­lação mo­bi­li­zada, dado que o grau de me­tás­tase sis­tê­mica é ele­va­dís­simo e o ajuste fiscal pre­ten­dido talvez já tenha en­con­trado seu teto.

“Se as in­ves­ti­ga­ções da Lava Jato am­pli­arem o seu foco, com o grupo da ‘moral ho­mo­gênea’ do PMDB como bola da vez, e o tu­ca­nato en­trar na alça de mira, o sis­tema par­ti­dário se des­mo­rona, com larga re­per­cussão sobre os rumos da dis­puta elei­toral. Em­bora não ad­mitam aber­ta­mente, todas as forças po­lí­ticas em ação no ce­nário atual têm plano A e plano B. Nin­guém está se­guro da pro­jeção fu­tura de sua pró­pria força. O res­sur­gi­mento de pro­testos de rua vo­lu­mosos é outra va­riável que pode de­ter­minar mu­danças bruscas no quadro po­lí­tico. O go­verno pos­tiço do gol­pista não re­siste a uma sequência de grandes ma­ni­fes­ta­ções”.

A en­tre­vista com­pleta com Léo Lince pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: O país está es­tu­pe­fato e sem re­ação, ta­manho o acú­mulo de casos de cor­rupção e pro­mis­cui­dade pú­blico-pri­vada, tendo a Ope­ração Lava Jato à frente, mas não so­zinha. O que o atual mo­mento sin­te­tiza de nossa de­mo­cracia, e talvez de nosso pró­prio pro­cesso da re­de­mo­cra­ti­zação?

Leo Lince: Sem dú­vida, há uma im­pres­si­o­nante sequência de es­cân­dalos que deixa qual­quer um es­pan­tado e con­fuso. É na­tural. Até porque essa fi­eira de es­cân­dalos se ar­ti­cula com um feixe de crises. Crises que se re­tro­a­li­mentam e nos re­metem para o tipo mais des­con­cer­tante de in­cer­teza, a in­cer­teza es­tru­tural. Desde aquela es­pan­tosa, di­fusa e con­fusa ex­plosão de des­con­ten­ta­mento acon­te­cida em 2013, o povo bra­si­leiro vive as agruras de um gi­gan­tesco fim de ciclo. Além da crise crô­nica, re­sul­tante das nossas tra­di­ci­o­nais “tran­si­ções in­tran­si­tivas” (co­op­tação, saída ne­go­ciada “de cima”, re­ar­ranjo no in­te­rior das elites pa­tri­mo­niais), pas­samos a con­viver com a ma­ni­fes­tação aguda de um tipo sin­gular de ir­rupção con­tes­ta­tória, ainda sem rumo po­lí­tico de­fi­nido, mas re­ve­la­dora de um pro­fundo mal-estar com os mais va­ri­ados as­pectos do mo­delo do­mi­nante.

Um ciclo finda quando a he­ge­monia que o ali­men­tava entra em co­lapso de­fi­ni­tivo. Ou seja, co­meça a ex­pe­ri­mentar o tempo tur­bu­lento da sua fa­lência his­tó­rica. Nada fun­ciona mais como fun­ci­o­nava antes: o mo­delo econô­mico, o sis­tema par­ti­dário, o pa­drão de po­lí­tica, o for­mato de fi­nan­ci­a­mento das cam­pa­nhas e tudo mais. Mas a fa­lência his­tó­rica não sig­ni­fica, au­to­ma­ti­ca­mente, fa­lência po­lí­tica real. Ela só se con­suma quando, no plano da ação po­lí­tica e so­cial, se con­so­lidam os polos de con­den­sação de uma outra he­ge­monia. É no in­te­rior deste hiato, ou seja, no in­ter­valo entre a fa­lência his­tó­rica e a efe­tiva cons­trução de outra al­ter­na­tiva que es­tamos vi­vendo nos dias de hoje.

É um tempo pe­ri­goso e car­re­gado de de­sa­fios fas­ci­nantes. Muita coisa faliu de­fi­ni­ti­va­mente, mas seus es­com­bros ainda não foram re­mo­vidos. Tempos bi­cudos, esses que nos cabem viver. Ou­tras épocas co­nhe­ceram tempos assim e foram ana­li­sadas por ob­ser­va­dores ar­gutos. Hannah Arendt, por exemplo, os si­tuava “entre o não mais e o ainda não”. Ou, como de­finiu Antônio Gramsci, tempos do “in­ter­regnum”, onde tudo pode acon­tecer, in­clu­siva nada. En­quanto per­durar tal si­tu­ação, es­ta­remos con­de­nados a viver no pa­tamar do im­passe.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você en­xergou a de­cla­ração do pa­tri­arca dos Ode­brecht, Emílio, a su­gerir uma hi­po­crisia ge­ne­ra­li­zada di­ante da cor­rupção es­can­ca­rada pelas de­la­ções, dado que todos sa­be­riam há muito tempo como a roda gira?

Leo Lince: De­cla­ração im­por­tan­tís­sima, não apenas pelo que re­vela dos bas­ti­dores das te­ne­brosas tran­sa­ções. Mas, prin­ci­pal­mente, por nos mos­trar o perfil psi­co­ló­gico do grande cor­ruptor. Sor­ri­dente e bo­na­chão, ele dis­tribui pi­a­di­nhas e co­men­tá­rios pró­prios de quem ainda se con­si­dera acima da lei. Como Pi­latos, ele dis­tribui sen­tenças e julga que é alheia a culpa que é prin­ci­pal­mente sua. Lava as mãos, mas pode que­brar a cara. Ainda não se deu conta de que está em curso uma mu­dança na cul­tura re­la­ci­o­nada ao tema.

An­ti­ga­mente, só o pas­sivo da re­lação era con­si­de­rado cor­rupto e, como tal, sub­me­tido à exe­cração geral. O ativo da cor­rupção, o cor­ruptor, era visto como um re­a­lista que foi “obri­gado” a jogar as re­gras do jogo. Aos poucos, na ro­ta­tória da crise e na sequência de es­cân­dalos, tal men­ta­li­dade vai se al­te­rando. Cada dia fica mais claro: o cor­ruptor é o grande res­pon­sável pelo fun­ci­o­na­mento das en­gre­na­gens da cor­rupção sis­tê­mica. O fato novo, gente en­di­nhei­rada indo para ca­deia, é a prin­cipal razão do apoio po­pular à Lava Jato. Mas não foi a Lava Jato que de­ter­minou essa in­versão. Pelo con­trário, ela pró­pria foi de­ter­mi­nada por tal mu­dança cul­tural. O grande cor­ruptor ainda faz gra­cejos, mas a tor­no­ze­leira já en­feita o seu “cal­ca­nhar de Aquiles”.

Afora tal con­si­de­ração geral, as re­ve­la­ções do pa­tri­arca da Ode­brecht ainda podem ser de grande uti­li­dade para ul­te­ri­ores in­ves­ti­ga­ções. Vale res­saltar duas delas. A mais im­por­tante foi o puxão de ore­lhas na mídia grande. Sempre sou­beram como a roda toca e agora si­mulam es­panto. A mídia oli­go­po­li­zada sempre foi as­so­ciada dos grandes ne­gó­cios e atas devem existir deste co­núbio mais que carnal. Um filão para in­ves­ti­gação do Mi­nis­tério Pú­blico, caso haja in­te­resse e co­ragem para a ta­refa.

Outra re­ve­lação pre­ciosa é a que fala da pro­pina que corre solta entre as em­presas. Não apenas no in­te­rior do cartel, mas também fora dele, no opaco mundo do dia a dia das grandes cor­po­ra­ções. Essa seria uma linha de in­ves­ti­gação que nos le­varia ao fa­bu­loso mundo da so­ne­gação fiscal, da elisão fiscal, dos sub­sí­dios. Os mi­lhões que pas­saram pelo caixa 2 dos po­lí­ticos são apenas a parte menor e des­co­berta do gi­gan­tesco “ice­berg”, o do caixa dois que corre solto no mundo das em­presas.

Nin­guém gosta de pagar im­posto e, no Brasil, os muito ricos con­se­guem não pagar. Te­ríamos, caso tal linha de in­ves­ti­gação pros­pe­rasse, um outro tipo de ajuste fiscal, que sa­cri­fi­caria pri­vi­lé­gios para ga­rantir di­reitos. Não este, pa­tro­ci­nado pelo go­verno gol­pista, que sa­cri­fica di­reitos para ga­rantir pri­vi­lé­gios.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como sair de toda essa en­ca­la­crada, con­si­de­rando o des­cré­dito de todas as ins­ti­tui­ções to­ma­doras de de­cisão? O que pensa do “acordão” su­ge­rido após en­contro entre FHC, Lula e Temer?

Leo Lince: Quando a crise é geral, a en­ca­la­crada também é geral. Todos nós es­tamos, de uma ma­neira ou de outra, en­vol­vidos nas ma­lhas da in­cer­teza es­tru­tural. Em tais con­di­ções, não há saída fácil. Tam­pouco se vis­lumbra, le­vando em conta a atual cor­re­lação de forças, al­ter­na­tiva de mu­danças no curto prazo. E os si­mu­la­cros de mu­dança, pa­drão “ga­to­pardo” do fa­moso livro de Lam­pe­dusa (mudar tudo para que nada mude), não duram uma se­mana. O tal “acordão” su­ge­rido, por exemplo, já foi por água abaixo. Não existe mais. Seus in­ven­tores já devem estar ma­qui­nando ou­tros si­mu­la­cros.

Os ar­tí­fices da crise não pos­suem le­gi­ti­mi­dade para for­mular saídas. Tudo o que foi ten­tado neste sen­tido não pros­perou. Lá atrás, o tal “Pro­jeto Brasil”, da dupla Renan-Jucá, não chegou a sair do papel. A “pin­guela” para o fu­turo, da qua­drilha Temer-Cunha-Mo­reira-Geddel, ob­teve o apoio dos donos do poder econô­mico para des­fe­char o golpe do im­pe­a­ch­ment, mas agora des­mo­rona no pân­tano de uma co­a­lizão de in­ves­ti­gados pela Lava Jato.

Vez por outra se ouve uma voz vinda do coral dos con­tentes: fe­liz­mente, as ins­ti­tui­ções estão fun­ci­o­nando. Os fun­ci­o­ná­rios que abrem e fe­cham as portas no início e final dos ex­pe­di­entes, acendem a luzes, ligam os com­pu­ta­dores estão ope­rando re­gu­lar­mente. Os ti­tu­lares de todos os po­deres estão re­ce­bendo nor­mal­mente os seus sa­lá­rios, je­tons e emo­lu­mentos. Mas estão fun­ci­o­nando mal, em com­pleta dis­sin­tonia com os an­seios da ci­da­dania, de­ses­pe­rada e de­ses­pe­ran­çada com as agruras de uma crise que se agrava a cada dia.

O ti­tular do poder exe­cu­tivo, os atuais e os an­te­ri­ores pre­si­dentes das duas casas do Con­gresso Na­ci­onal, os pre­si­dentes e prin­ci­pais lí­deres dos mai­ores par­tidos da ordem estão todos no pro­pi­no­duto da cor­rupção sis­tê­mica. No Ju­di­ciário, a di­reita to­gada se ar­ti­cula cada vez mais na ló­gica do es­forço para conter a “san­gria de­sa­tada”. A nin­guém é per­mi­tido nu­trir es­pe­ranças de que mu­danças possam ser ges­tadas nestes en­de­reços. Há quem lute por mu­dança no in­te­rior de al­gumas das nossas ins­ti­tui­ções, mas sem pressão de fora, vinda do es­paço livre das ruas, nada mu­dará.

Cor­reio da Ci­da­dania: Os sim­pa­ti­zantes do lu­lo­pe­tismo batem há anos na tecla da se­le­ti­vi­dade com que al­guns pro­testam contra a cor­rupção e da pró­pria forma como ela é mi­di­a­ti­ca­mente apre­sen­tada. De toda forma, con­si­de­rando que se tra­tava de um par­tido que jac­tava seu ca­ráter ide­o­ló­gico, não há re­al­mente uma res­pon­sa­bi­li­dade maior no es­fa­ce­la­mento da Re­pú­blica? Não há uma ce­gueira de boa parte da es­querda nesse sen­tido?

Leo Lince: Por su­posto, não foi o PT que in­ventou a cor­rupção. Muito menos, é mais do que claro, a cor­rupção sis­tê­mica, como querem fazer crer os ini­migos de classe da es­querda em geral. O poder cor­ro­sivo do di­nheiro e o sis­tema larvar que apri­siona a po­lí­tica aos di­tames da plu­to­cracia econô­mica são mais ve­lhos do que a Sé de Braga. O PT pegou esse bonde an­dando. Seu erro foi sentar na ja­ne­linha e acre­ditar que po­deria fazer, im­pu­ne­mente, o que os ou­tros já fa­ziam. Car­lito Maia, o gênio que in­ventou os mais con­tun­dentes slo­gans da fase he­roica do pe­tismo, dizia, talvez com ou­tras pa­la­vras, o se­guinte: quando a es­querda co­meça a contar di­nheiro é porque já virou di­reita.

Aliás, o sím­bolo maior da des­graça do PT foi a troca de Car­lito Maia por Duda Men­donça. Foi uma mu­dança de eixo, não apenas re­la­ci­o­nada ao trato dos va­lores co­me­zi­nhos do metal so­nante. Ou­tros va­lores, mai­ores, re­la­ci­o­nados aos prin­cí­pios da luta ide­o­ló­gica trans­for­ma­dora também foram des­lo­cados. De “pe­queno in­so­lente” na pla­nície, o par­tido foi aos poucos se trans­for­mando em “gran­da­lhão in­do­lente” no Pla­nalto. São ex­pres­sões também de Car­lito Maia. Ao chegar ao go­verno da Re­pú­blica, o PT re­solveu pra­ticar o que não pre­di­cava na opo­sição. De­sa­prendeu as prá­ticas que lhe davam forças e aprendeu ou­tras prá­ticas, que lhe pro­vo­caram a ruína. Uma es­pécie de cor­rupção pro­gra­má­tica, que ter­mina por ser a mãe de todas as ou­tras cor­rup­ções.

Ao invés de ajustar o poder aos im­pulsos do po­de­roso mo­vi­mento po­lí­tico que lhe levou ao go­verno, o par­tido foi to­mado pela ló­gica do poder do­mi­nante. Delfim Netto, com seu sar­casmo ha­bi­tual, chamou a “Carta aos Bra­si­leiros” de “Carta de Ri­beirão Preto”. Ele se re­feria, na re­a­li­dade, não à ci­dade, mas ao Pa­locci, aquele se­gundo o qual “não se dá ca­valo de pau em tran­sa­tlân­tico”.

Essa es­colha ini­cial er­rada está na raiz dos de­sa­certos pos­te­ri­ores. A des­cons­trução da mís­tica ra­dical e da vi­ta­li­dade po­lí­tica do par­tido como ins­tru­mento trans­for­mador, seu efeito des­mo­bi­li­zador e des­po­li­ti­zante do ati­vismo mi­li­tante nos mo­vi­mentos so­ciais. O erro em po­lí­tica, muitas vezes, é pior do que crime, in­clu­sive porque pro­picia crimes. Não faltou, nas es­querdas, quem cri­ti­casse de ma­neira ime­diata, em tempo real e de forma subs­tan­ciosa, tal desvio de rota. E não foi apenas entre aqueles que saíram do par­tido para fundar o PSOL. Dentro do pró­prio PT sempre houve e ainda há os que for­mulam o mesmo tipo de crí­tica. Tais crí­ticas não foram, é óbvio, su­fi­ci­entes para evitar o des­ca­labro que ar­rastou o par­tido para a sua con­dição atual: uma por­ten­tosa ruína.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível en­xergar algo de po­si­tivo em volta de tudo, a des­peito das se­quelas na vida do tra­ba­lhador bra­si­leiro que a atual crise pro­voca? Acre­dita que há ou ha­verá um pro­cesso de ama­du­re­ci­mento po­lí­tico da po­pu­lação?

Leo Lince: Os tra­ba­lha­dores sempre mo­eram no ás­pero. Não há no­vi­dade nesta con­dição. E, como falou Gui­ma­rães Rosa pela boca do ja­gunço Ri­o­baldo, “quem moi no ás­pero não fan­ta­seia”. Sem dú­vida, a crise e a onda re­gres­siva pa­tro­ci­nada pelos donos do poder são um de­sastre para os que vivem do pró­prio tra­balho. O pes­si­mismo da razão manda avisar que atra­ves­samos tempos de grandes di­fi­cul­dades. Mas o oti­mismo da von­tade, an­co­rado na ex­pe­ri­ência his­tó­rica, en­sina que o di­fícil é sempre es­ti­mu­lante. Quando o “apa­rato total” da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade po­lí­tica se torna im­per­meável para os an­seios e in­sen­sível para as agruras que agitam as bases da so­ci­e­dade, essas mesmas bases passam a buscar ou­tros ca­mi­nhos. Quando o beco é sem saída, sair do beco é a saída.

Em si­tu­a­ções como a atual, mar­cada pela fa­lência his­tó­rica de um pa­drão de he­ge­monia, as pri­meiras ma­ni­fes­ta­ções de mal-estar ad­quirem a forma da ir­rupção con­tes­ta­tória. Di­fusa e con­fusa, como foi em 2013. Nin­guém he­ge­mo­niza, nin­guém se sente in­tei­ra­mente in­ter­di­tado. São ex­plo­sões lo­ca­li­zadas em ca­madas tectô­nicas “abaixo da base”, ex­pres­sões frag­men­tá­rias do “mal-estar geral”, uma mi­ríade não hi­e­rar­qui­zada de pos­tu­la­ções que não se en­ca­mi­nham para um vetor uni­tário, capaz de in­ter­ferir na cor­re­lação de forças.

A busca de nexos entre os mais va­ri­ados mo­vi­mentos e a cons­trução de agendas co­muns entre as di­fe­rentes cul­turas crí­ticas em ação na cena po­lí­tica é o passo se­guinte deste pro­cesso. O que se moveu “abaixo da base” in­ter­fere e pode re­ge­nerar a “base” e con­ta­minar al­gumas das “es­tru­turas in­ter­me­diá­rias” de poder. São pe­quenos mo­tores que podem, ar­ti­cu­lados, aci­onar o motor maior que produz mu­danças de qua­li­dade no or­de­na­mento da vida po­lí­tica e so­cial.

Não se trata, no des­crito acima, de um ro­teiro abs­trato. Há muita luta em curso. E, na cons­trução delas, ama­du­re­ci­mento po­lí­tico. O agra­va­mento dos con­flitos pro­vo­cados pela in­ves­tida re­gres­siva já tem pro­vo­cado re­sis­tência. In­dí­genas, qui­lom­bolas, sem-terra, sem-teto, os mais va­ri­ados mo­vi­mentos, pre­ser­va­ci­o­nistas, iden­ti­tá­rios, a luta contra as opres­sões, o novo fe­mi­nismo, o mo­vi­mento ju­venil, as ocu­pa­ções das es­colas se­cun­da­ristas, a lista pode ser in­ter­mi­nável. O nexo entre estes di­fe­rentes mo­vi­mentos pode levar o pro­cesso para um novo pa­tamar.

Nesse sen­tido, o ma­ni­festo con­junto da CNBB, OAB e Fe­de­ração dos Eco­no­mistas, que cri­tica de­mo­lição de di­reitos pra­ti­cada pelo atual go­verno, é um dado novo e ex­tre­ma­mente po­si­tivo. Assim como o su­cesso da greve geral do dia 28 de abril. Foi assim nos tempos he­roicos da luta contra a di­ta­dura civil-mi­litar. O pro­cesso de cons­trução de uma nova he­ge­monia, ta­refa de longo prazo, re­corre ao mesmo ca­minho: novos mo­vi­mentos, novas li­de­ranças e en­vol­vi­mento das es­tru­turas in­ter­me­diá­rias de poder da so­ci­e­dade.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga o atual con­texto bra­si­leiro em com­pa­ração com ou­tros re­gimes que po­demos chamar “de­mo­cra­cias de mer­cado”, con­si­de­rando os quase 10 anos de crise econô­mica e suas po­lí­ticas de aus­te­ri­dade?

Leo Lince: A nossa crise é parte in­te­grante de uma crise maior que afeta, hoje, os quatro cantos do mundo. Ela tem aqui muitas par­ti­cu­la­ri­dades, mas guarda uma li­gação es­sen­cial com o pro­cesso mais amplo. A nova ordem mun­dial, mar­cada pela in­vasão dos es­paços pú­blicos pela ló­gica pri­va­tista do ideário ne­o­li­beral, os­tenta cada vez mais as fei­ções trá­gicas da bar­bárie. Nunca como agora, o im­pulso de des­truição, sempre em­bu­tido na ló­gica da acu­mu­lação ca­pi­ta­lista, se mos­trou tão vi­sível. É a era do to­ta­li­ta­rismo fi­nan­ceiro glo­ba­li­zado. Nela, a saúde do ca­pital e a do­ença da so­ci­e­dade são verso e re­verso da mesma moeda. Essa onda re­gres­siva gi­gan­tesca, que avas­salou o mundo no pós-queda do Muro de Berlim, co­meça a gerar re­sis­tên­cias ori­gi­nadas a partir de di­fe­rentes cul­turas crí­ticas.

Aquele im­pulso ar­ro­gante da ide­o­logia de res­tau­ração pura e dura do ca­pi­ta­lismo co­meça, aos poucos, a per­correr sua es­cala des­cen­dente. A his­tória não acabou e, tudo in­dica, se pre­para para mi­nis­trar novas “li­ções”. Esse pro­cesso geral ad­quire no con­texto bra­si­leiro um ritmo pró­prio. Assim como foi tardia a im­plan­tação entre nós do re­cei­tuário ne­o­li­beral, o mesmo re­tardo se ob­serva nas lutas pela sua su­pe­ração.

As cha­madas po­lí­ticas de aus­te­ri­dade, que sa­cri­ficam di­reitos para manter pri­vi­lé­gios, co­meçam a fazer água por toda a parte. No Brasil da in­te­gração su­bal­terna ao cas­sino fi­nan­ceiro, o que deve ser cha­mado pelo nome cor­reto de “aus­te­ri­cidio” segue na ordem do dia. É a ló­gica do “ajuste” aos de­síg­nios do to­ta­li­ta­rismo fi­nan­ceiro. O go­verno pos­tiço re­sul­tante do golpe, a co­a­lizão con­ser­va­dora que tem mai­oria no par­la­mento e a mídia oli­go­po­li­zada mar­telam todos os dias na mesma tecla.

Por outro lado, co­meça a tomar corpo, na base da so­ci­e­dade, a luta de re­sis­tência contra o des­monte dos di­reitos. Uma nova onda? Uma re­com­po­sição de forças no in­te­rior do mundo do tra­balho capaz de in­verter a ló­gica do­mi­nante? Só o ul­te­rior de­sen­vol­vi­mento da luta po­lí­tica po­derá dar res­postas para tais per­guntas.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que vis­lumbra para os pró­ximos tempos? É pos­sível prever algo para 2018?

Leo Lince: Os pró­ximos tempos serão de in­ten­si­fi­cação da po­lí­tica e das dis­putas ide­o­ló­gicas. A eleição de 2018 é uma mi­ragem posta além da linha do ho­ri­zonte. O tempo que nos se­para dela será mar­cado pela tur­bu­lência da mais pro­funda crise da his­tória bra­si­leira re­cente. Neste quadro, qual­quer pre­visão sobre as con­di­ções em que se dará a pró­xima eleição geral é te­me­rária. Até a data pre­vista no ca­len­dário ou a pró­pria re­a­li­zação do pleito, vistos com os olhos de hoje, podem ser postos em questão. Quando a in­cer­teza é a única coisa certa, é pre­ciso se pre­parar para o sur­gi­mento sú­bito de novas en­cru­zi­lhadas, novos de­sa­fios, al­ter­na­tivas até então ines­pe­radas.

Se as in­ves­ti­ga­ções da Lava Jato am­pli­arem o seu foco, com o grupo da “moral ho­mo­gênea” do PMDB como bola da vez, e o tu­ca­nato en­trar na alça de mira, o sis­tema par­ti­dário se des­mo­rona, com larga re­per­cussão sobre os rumos da dis­puta elei­toral. Em­bora não ad­mitam aber­ta­mente, todas as forças po­lí­ticas em ação no ce­nário atual têm plano A e plano B. Nin­guém está se­guro da pro­jeção fu­tura de sua pró­pria força.

O res­sur­gi­mento de pro­testos de rua vo­lu­mosos é outra va­riável que pode de­ter­minar mu­danças bruscas no quadro po­lí­tico. O go­verno pos­tiço do gol­pista não re­siste a uma sequência de grandes ma­ni­fes­ta­ções. Há nos es­ca­ni­nhos e ga­vetas do Con­gresso Na­ci­onal pro­postas de an­te­ci­pação das elei­ções ge­rais ou de eleição sol­teira para este ano. De­pen­dendo dos rumos as­su­midos pela ro­ta­tória da crise, tudo isso pode acon­tecer de uma hora para outra. “Fora Temer”, “Di­retas Já”, “As­sem­bleia Cons­ti­tuinte” são slo­gans que co­meçam a agitar a su­per­fície das águas. Tudo isso e mais al­guma coisa – que não se sabe qual – pode acon­tecer antes de 2018.

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