Rebeca Letieri – Catador de lixo, negro e favelado foi preso nas jornadas de 2013, e agora é acusado de tráfico
Apesar de antigo, o caso de Rafael Braga ainda é pouco conhecido e comentado. Único preso nas ‘jornadas de 2013’, inicialmente a cinco anos de prisão, o catador de latas cumpria regime aberto em pouco mais de um mês quando, em janeiro do ano passado, foi novamente preso sob acusação de tráfico de drogas e condenado a 11 anos e três meses de reclusão. O rigor da pena e as dúvidas lançadas sobre o processo tornam o caso de Rafael um símbolo de discrepâncias, num momento em que o país vive um conturbado momento político-social em que todas as instituições são questionadas.
“O Rafael é símbolo de um sintoma maior do que é a política criminal de drogas, que caracteriza vários jovens negros da periferia como inimigos públicos”, disse Carlos Eduardo Martins, secretário adjunto do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) e um dos advogados de defesa do ex-catador.
Para pessoas ligadas ao caso ouvidas pelo JB, foi seu grau de vulnerabilidade ao sistema penal, e não o cometimento de qualquer crime, que propiciou a condenação de Rafael Braga desde dezembro de 2013. Jovem negro, pobre favelado, e sem trabalho formal, o ex-catador seria a regra, e não a exceção. Tal como ele, 67,1% dos presos no Brasil são negros – representados na soma de 18,1% negros e 49% pardos –, não tiveram acesso à educação formal para além da alfabetização (52,9% não completaram o ensino fundamental) e pertencem à população empobrecida, de acordo com o diagnóstico do sistema carcerário publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Essa característica da população carcerária tem chamado atenção para uma das principais facetas do sistema penal: sua seletividade.
“Por mais que a defesa se esforce, ela não consegue refutar da mesma maneira que esses casos de corrupção no Brasil conseguem refutar os fatos. Há um enquadramento defensivo dentro de uma possibilidade menor”, acrescentou Carlos, comparando o caso aos crimes cometidos no âmbito dos recentes escândalos da Lava Jato.
Outro dado importante é o número de presos, que salta de 148.760, em 1995, para 711.463. Ou seja, a população carcerária brasileira aumentou quatro vezes nos últimos 20 anos, de acordo com informações do Conselho Nacional de Justiça. Mas esse é apenas mais um dos aspectos criticados desse sistema.
“O sistema penitenciário brasileiro não alimenta, ele pune muito e pune mal. Temos massacres que colocaram o estado na berlinda. O Carandiru e as recentes rebeliões em Manaus estão ai para nos mostrar isso”, lembrou o advogado, que continua buscando uma solução: “Precisa-se investir no combate à cultura autoritária que permeia a cabeça de juízes que consideram a prisão a única solução para o sistema de justiça, e abarrota os cárceres com pessoas que poderiam responder acusações em liberdade. É um caldeirão que cobra um preço e ele tem sido alto para o estado brasileiro”.
Rafael Braga Vieira posa ao lado de pichação na porta de presídio
O caso
Rafael Braga Vieira, 28 anos, vive uma verdadeira saga há três anos e dez meses. Em 20 de junho de 2013, o catador foi acusado de portar material explosivo quando, segundo sua defesa, levava dois frascos plásticos lacrados por produtos de limpeza. Em regime aberto, após exame do recurso de apelação pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Rafael, que antes se encontrava no Complexo Penitenciário de Bangu, foi autuado, em 12 de janeiro de 2016, por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.
“Tráfico, associação e colaboração são julgamentos desproporcionais. Não é possível uma convivência entre associação e colaboração segundo código penal — a colaboração pressupõe grau de associação menor”, alertou Carlos Eduardo.
A defesa afirma que há contradições nos depoimentos das testemunhas de acusação colhidos em audiências. O PM Pablo Vinícius Cabral, primeiro a depor, alegou que, antes de ser conduzido à 22ª DP (Penha), Rafael fora levado à sede da UPP local, versão que consta no registro da ocorrência e também relatada pelo ex-catador de latas. Já o policial Victor Hugo Lago afirmou que eles o levaram diretamente para a delegacia, sem parar na UPP. Além disso, o primeiro policial afirmou que Rafael foi levado na caçamba da viatura, ao passo que o segundo disse que ele foi colocado no banco de trás.
Rafael alega, de acordo com a defesa, desde o seu primeiro depoimento, que aquele material não lhe pertencia e que, sob ameaça e agressões “caso ele não delatasse os traficantes da região”, os policiais “jogariam arma e droga na conta dele”. Rafael também conta que, na ocasião, ele caminhava da casa de sua mãe para uma padaria na Vila Cruzeiro, favela no bairro Penha, Zona Norte do Rio, onde vive sua família, sem portar qualquer objeto ou droga. Ainda de acordo com a defesa, somente na 22ª Delegacia de Polícia (Penha), o ex-catador se depara com 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão, porte atribuído pelos policiais que o prenderam.
Rafael: ‘Nunca vendi droga na minha vida’
“Mandaram eu abrir a mão, abriram o plástico, botaram pó na minha mão, me forçando a cheirar. Mas eu não cheirei. Aí me levaram para a 22ª DP e apresentaram essas drogas, que não eram minhas não. Nunca participei [de tráfico], nunca vendi droga na minha vida”, relata Rafael à defesa.
Como os policiais que o prenderam caíram em contradição, o DDH, que atua na defesa do ex-catador desde dezembro de 2013, identificou a necessidade de obter acesso ao registro legível do GPS da tornozeleira eletrônica que Rafael usava no então regime aberto e também as imagens da câmera da viatura em que ele fora levado pelos PMs, e da câmera da UPP Vila Cruzeiro, para onde fora conduzido antes de seguir para a delegacia.
Em fevereiro deste ano, o juiz Ricardo Coronha Pinheiro, que julga o atual processo contra o ex-catador, negou à defesa o pedido de diligências sob o argumento de que o registro e as imagens seriam desnecessários para o desfecho do processo. Se atendido, o DDH afirma que poderia mudar o rumo do caso.
“É uma visão clássica de um juízo que tem o entendimento conservador sobre o tema de diligências. Ele é o destinatário da prova, ele pode modificar o pedido de defesa. Só que, na verdade, a gente mostrou que não é impertinente. É uma informação importante para o processo.”, explicou o advogado de Rafael, acrescentando: “O STF tem várias decisões atribuindo esse poder ao juiz. O nosso sistema de justiça criminal é falho em geral. Não estou falando do perfil de um juiz, estou partindo de um diagnóstico de dados que juízes atuam conservadoramente”.
A defesa destaca ainda duas características comuns das duas prisões de Rafael: nos dois casos, ele foi preso apenas com base na palavra dos policiais — algo propiciado pela súmula 70 no estado do Rio de Janeiro — e adiciona um trecho do processo publicado pelo TJRJ no último dia 20 de abril: “a sua personalidade voltada para a criminalidade”.
“A maioria das fundamentações dos tráficos de droga no Rio partem da súmula 70 do Tribunal, que diz que a palavra dos policiais é suficiente quando é prova única para condenar alguém. Como policiais que têm atuação de flagrante forjado vão admitir o flagrante? É algo que vulnerabiliza a defesa. Enfrentar um tema sumulado em toda essa conjuntura é muito mais complicado”, completou Carlos Eduardo.
2013
Na grande manifestação do dia 20 de junho de 2013, o Centro do Rio de Janeiro foi tomado por quase um milhão de pessoas. Rafael Braga foi abordado por dois policiais civis quando saía do local onde dormia e armazenava as latas, garrafas e demais objetos que recolhia nas ruas – uma loja abandonada em frente à Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), na Rua do Lavradio, bairro da Lapa. Segundo Rafael e os próprios policiais que o detiveram, a prisão ocorreu porque ele levava consigo dois frascos de produtos de limpeza – um de cloro (água sanitária “Barra”) e um de desinfetante (“Pinho Sol”), ambos lacrados.
Mesmo sem qualquer indício de envolvimento nos protestos, e totalmente à parte da militância política, Rafael foi conduzido à 5ª Delegacia de Polícia, sob a alegação de que os produtos que levava seriam usados como coquetel molotov (arma química incendiária comumente utilizada em protestos).
“Existem vaguezas dentro do laudo que torna ele uma peça – ‘mínima aptidão e ínfima possibilidade de atuar como incendiário explosivo’. Dentro de uma lógica jurídica que trabalha com sim ou não, se é mínima ou ínfima, a resposta é não”, acrescentou o advogado de defesa.
Entretanto, diferentemente dos vários manifestantes presos durante a onda de protestos de junho de 2013, a maior parte brancos de classe média, Rafael foi impedido de responder ao processo em liberdade, permanecendo detido até o julgamento.
Os principais argumentos defendidos no recurso de apelação de Rafael, no qual o DDH deu entrada em 20 de fevereiro de 2014, baseiam-se nas “contradições entre o laudo e a condenação por ele motivada”, dada a “absoluta impropriedade” das garrafas para funcionarem como coquetel molotov, e consideram absurdo que a posse de substância livremente comercializada no país configure crime de porte de artefato explosivo.
Os embargos declaratórios também refutam o fato de o julgamento “macular o Princípio da Presunção de Inocência”, direito fundamental salvaguardado no Artigo 5º, LV e LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O desembargador Carlos Eduardo Roboredo, relator da apelação que diminuiu a primeira sentença de Rafael em dois meses, admite que o “coquetel molotov” do ex-catador tinha baixo poder de impacto, mas diz que ainda assim o artefato não deixa de ser incendiário.
Procurada pelo JB, a assessoria do TJRJ disse que “juiz não comenta a decisão em processo”.
Campanha de Liberdade
Ativistas abraçaram a causa e, cerca de um mês após a prisão de Rafael, deram início às reuniões que culminaram na criação da campanha “Pela Liberdade de Rafael Braga Vieira”. Formado por coletivos, movimentos e militantes de direitos humanos, o grupo se reúne todas as terças-feiras na Cinelândia, no Centro do Rio, para definir atividades, que envolvem doações de mantimentos para a custódia de Rafael e o acompanhamento do caso.
No ano passado, movimentos e coletivos de outros estados e países, como Uruguai, Alemanha e Estados Unidos, aderiram à campanha e realizaram, paralelamente, atividades culturais e debates que discutem a “seletividade do sistema penal brasileiro, discriminação racial e questões sociais”.
Deisi Souza é professora e membro da campanha. Ela conta que o único foco é a liberdade do ex-catador. “O Rafael não era manifestante, era alguém que trabalhava no Centro do Rio e, como ele não tinha grana para voltar para casa, ele optava por dormir ocasionalmente na rua”, disse.
O movimento também busca dar amparo à família e criar formas de organização política. “Tentamos visibilizar o caso dele”, afirmou Deisi. Na última quinta-feira (5), um ato, puxado pelo movimento saiu da Cinelândia até a Lapa às 17h, passando em frente ao TJRJ, onde, segundo organizadores, reuniu aproximadamente 500 pessoas em prol da causa. “Essa condenação foi tão arbitrária que o assunto está reverberando e cada vez mais gente adere ao protesto”, contou a professora.
Os cantores de rap Criolo e Emicida também aderiram à causa e manifestam publicamente, tanto em redes sociais quanto em shows, seu apoio à campanha pela liberdade de Rafael Braga.
O secretário adjunto do DDH, Carlos Eduardo, finaliza contando sobre o estado emocional do acusado: “Ele não consegue compreender todas as nuances desse processo. Ele não entende por que, de repente, ele foi guindado à situação de acusado. Uma pessoa que não tem nem noção da conjuntura política que o Brasil viveu e depois se tornar símbolo, sem que ele fizesse esforço no sentido de angariar essa popularidade, só pode ter sentimentos ambivalentes. Rafael se tornou símbolo do processo de violação de direitos humanos dentro do estado do Rio”.
Criolo e DJ DanDan manifestam apoio à Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga
http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/05/07/caso-rafael-braga-expoe-a-dramatica-estatistica-das-prisoes-brasileiras/
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