Daniel Santini – Adolfo Pérez Esquivel fala sobre o conceito da não violência ativa
Desde 2013, três estados da região Norte do Paraguai encontram-se em estado de exceção permanente, ocupados por tropas das forças armadas. Designados originalmente para combate emergencial ao Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo guerrilheiro que tem como estratégia a realização de sequestros, os militares instalaram-se e passaram a policiar de maneira contínua os estados Amambay, Concepción e San Pedro. A ação de “pacificação” do território, que não tem data para acabar, não só não resolveu o problema com o EPP, como gerou outros, não faltando denúncias, por parte da população, de violações graves de direitos humanos. Na lógica de guerra instalada, quem vive na região passou a lidar com medo e estigmatização – em Assunção, as pessoas olham diferente quem vive no norte.
A tática de repressão pura e simples não foi adotada apenas no Paraguai. A mesma lógica subsidiou ações em diferentes partes do mundo, da ocupação dos morros do Rio de Janeiro por Unidades de Polícia “Pacificadora” às intervenções militares internacionais apresentadas como Missões de “Paz” e “estabilização” pela Organização das Nações Unidas (ONU). Via de regra, tal política, que ganha espaço em meio à ascensão do conservadorismo em diferentes partes, tem se revelado pouco eficiente em termos de paz efetiva – como comprova a permanência de graves índices de homicídios no Rio de Janeiro e o colapso total de países inteiros no Oriente Médio ou a instabilidade política e social ainda presente no Haiti.
É contra essas políticas de guerra que Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980, defende a importância de desarmar consciências. Nesta entrevista concedida em meio ao Fórum Social do Norte*, em Horqueta, município de Concepción no epicentro das zonas em estado de exceção, o ativista argentino de 85 anos argumenta em favor da Não Violência Ativa como melhor caminho para resistir à militarização do mundo. Realizado pelo Serviço de Paz e Justiça (Serpaj), organização fundada por ele, o evento de caráter pacifista reuniu cerca de 1.500 pessoas, incluindo camponeses e camponesas de todo o país. A seguir, a entrevista.
Repressão e militarização ganham força no mundo como parte de um discurso bastante conservador. Como contrapor essa lógica a partir do conceito de Não Violência Ativa?
Primeiro, a violência que estamos vendo é um problema cultural, incrementado muitíssimo pelos meios de comunicação. Por meio dos filmes, pelo jornalismo, mas também pelas condutas, temos uma cultura da violência. Desde criança, se aprende que a violência é algo natural, que é viável. Para mudar isso há um eixo fundamental, que é desarmar a razão armada. A violência baseia-se no poder, na dominação. Quem a exerce quer se impor ao outro que é mais fraco pela força e, como diz Dom Hélder Câmara, esse arcebispo amigo de caminhada pela América Latina, a mãe de todas as violências é a mentira. A mentira exerce a violência porque faz crer o que não é.
Nesse sentido, falar de uma Missão de “Paz” da ONU ou uma Unidade de Polícia “Pacificadora” é algo emblemático, não? É semântica para minimizar ações que são simplesmente intervenções militares.
Sim, Missões de “Paz” não têm nada de paz. Trata-se de justificar a violência por meio da mentira. Foi o que George Bush, ex-presidente dos EUA fez com as Torres Gêmeas, com a invasão do Iraque. Porque ele precisava da justificativa e da mentira, e foi uma mentira coletiva, com os meios de comunicação, com toda a propaganda. É como agora com Síria, Líbia, Afeganistão. Está tudo baseado em mentiras. Lógico que houve reação de alguns setores, que reagiram violentamente e trataram de justificar essa reação por meio de fanatismos religiosos, segundo os quais todos aqueles que se opusessem teriam que ser combatidos porque isso seria anti-islâmico.
A Não Violência não tem nada a ver com passividade, é uma dinâmica permanente de uma transformação social, cultural, política e econômica. Não se deve reagir a uma violência com outra violência porque isso não resolve o problema. Ficamos com duas violências, mas não a solução do problema. Para saber desarmar a razão armada é preciso saber escutar o outro, antes de mais nada escutar. Depois ver se há possibilidade de abrir uma instância de diálogo. Se não se consegue, é preciso buscar um intermediador, um moderador que ajude a resolver o conflito. Isso acontece com os casais, com as famílias, as relações sociais e políticas, e até nas relações entre países.
Há algum contexto em que a luta armada é válida?
Não creio na guerra justa, por mais que os teólogos, os grandes professores teólogos como Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino falem em guerras justas. Para mim, nenhuma guerra é justa, todas as guerras levam à destruição e à morte. Acredito, isso sim, em causas justas, não em guerras justas. Um povo oprimido tem direito a rebelar-se contra o opressor e há razão para isso. Há muitos caminhos, alguns que recorrem à violência. Por exemplo, em Cuba, Fidel Castro, de Sierra Maestra, começa todo um trabalho de resistência para se opor à ditadura de Fulgêncio Batista e ao final triunfa. Cuba, depois de vários anos e de ver isso com claridade, não recorre à violência para se sustentar, mas sim ao desenvolvimento cultural, social, político. A economia, mesmo com o bloqueio dos Estados Unidos, segue com dificuldade mas se sustenta por mais de cinquenta anos. Fazem não violentamente, mas quando uma potência como os Estados Unidos de Kennedy tratam de invadir a Baía dos Porcos, Cuba reage com as armas. Pense nas forças invasoras dos Estados Unidos, há uma dinâmica entre as relações de forças. Muitas vezes, fala-se de situações extremas. O que alguém faria ao ver um agressor está para matar um filho? Por aí pode ser que se recorra a uma ação violenta, mas esse não é um eixo central, é um momento que por aí encontrou esse caminho, não algo definitivo. O que fez Mahatma Gandhi pela liberação da Índia tem vários aspectos. Tem o conteúdo ético, religioso, social, mas também uma estratégia na relação de forças. Se Ghandi se opusesse ao Império Britânico pelas armas, perderia.
Falando em extremos, pensando em um caso hoje, o que fazer se Trump começar a concretizar muito do que disse que faria durante sua campanha em termos de perseguições, de políticas claramente racistas? Já estão ocorrendo marchas anti-Trump. Há um limite contra as ações fascistas?
Fundamentalmente a Não Violência, é ação coletiva. É quando um povo toma consciência e diz “tenho que resolver esse conflito, mas de outra forma, não com o mesmo método do opressor”. Sem isso, muitos oprimidos, quando triunfam, tornam-se opressores. Tratam de repetir os mesmos mecanismos. Por exemplo, a revolução, de que tanto se fala, é uma roda. Estão abaixo os oprimidos, quando gira, os debaixo terminam em cima. Mas, se não há mudanças, se não se avança, repete-se o mesmo.
Em meio à crise de democracia no mundo, muita gente questiona os formatos de poder. Em sua apresentação no Fórum Social Norte, você defendeu uma democracia mais participativa do que representativa, com mais transparência sobre as estruturas de poder. Trata-se de fazer com que a democracia se radicalize?
A democracia é um sistema que significa direito e igualdade para todos, mas que hoje não atende a todos, e sim a alguns. Depois que votamos, ficamos em um estado de indefesa jurídica total. Não temos a capacidade de modificar absolutamente nada e o governante sabe disso e aproveita. O governante tem que ser um servidor do povo e não se servir do povo para seus interesses. Na democracia representativa, o povo não tem capacidade de mudar isso; mas em uma democracia participativa sim. Por meio de plebiscitos, consultas populares e representações de diversos tipos, pode-se chegar a controle ou mesmo revogar o mandato, quando necessário. Por isso digo, a violência sempre se baseia no poder e na mentira.
Claro, estou totalmente de acordo com o socialismo de redistribuição dos bens, da participação social, cultural. Que tipo de democracia queremos? Falei hoje das utopias. Thomas Morus, quando fala dessa famosa ilha chamada Utopia [nome do livro de Morus], descreve os utopianos organizados por meio de uma participação interativa. Creio que é isso, e o socialismo tende a isso. Não é fácil porque requer uma tomada de consciência através da educação. Nós fomos educados para uma cultura de violência. Os protótipos que nos apresentam são todos heróis e guerreiros. Quando nos ensinam História, as épocas se dividem pelas guerras e revoluções, não pelos avanços sociais, culturais, políticos. A cultura que temos é de violência. Desarmar a consciência armada é gerar consciência crítica e valores nos jovens, para que possam discernir, não é impor-lhes um modelo.
Uma educação Não Violenta não tem nada a ver com a passividade, é uma dinâmica permanente de relações humanas entre as pessoas e os povos. O ser humano tem necessidades básicas – saúde, educação, habitação, trabalho – para poder ser feliz, e tem também o sentimento de pertencimento, uma identidade, valores, religião. Existe uma diversidade de pensamentos filosóficos, culturais, políticos, religiosos e temos que alcançar a convivência na diversidade e não na uniformidade. A riqueza dos povos é a diversidade. A mais perigosa dos monoculturas é a monocultura das mentes. Nós temos parâmetros que a sociedade nos impõem, que cortam a liberdade de decidir.
Quando fala em diversidade, há relação com o conceito do Bem Viver, não?
Sim, claro. Exatamente.
Em pelo menos dois países, Equador e Bolívia, onde houve uma aproximação com esse discurso, onde foram adotados Estados Plurinacionais e toda uma linha de institucionalização da diversidade, depois de um momento inicial, os governos se afastaram dos princípios. Mantiveram o discurso, mas adotaram práticas que não tem nada que ver com Bem Viver. E há também casos como os dos governos progressistas que entraram em crise e há críticos que relacionam o fracasso de muitas estratégias a partir das políticas baseadas muito mais em consumo do que em cidadania. Há os que fazem essa mesma crítica à União Soviética, por exemplo.
São processos de aprendizagem. Por exemplo, quando se fala de desenvolvimento, trata-se do uso justo das necessidades do ser humano. A gente precisa da mineração, dos combustíveis, mas, quando há consumismo, existe um abuso. Recordo do meu tio, que era correntino [de Corrientes, na Argentina], que, nas Cataratas do Iguaçu, me ensinava a pescar os dourados, peixes lindos. Ele me ensinou a pescar com miolo de pão, fazer bolinhas de pão, jogar na água e depois com um anzol tirar o dourado. Mas ele me dizia: não se esqueça que tem que pescar o que vai comer. Não mais que isso. Se vai comer um, pesca um. Se dois, dois. Não mais. Porque dos mesmos peixes dependem outros pescadores. Uma coisa é o desenvolvimento, outra a exploração. O que fazem as grandes corporações com a soja ou com as megamineradoras é exploração, é privilegiar o capital financeiro em detrimento da vida dos povos. Isso prejudica a vida dos povos. Veja os agrotóxicos. Os agrotóxicos rompem a biodiversidade, a cadeia da vida. É curioso ver que na monocultura não há pássaros, não há sapos, não há mosquitos, não há nada. Não há alimento.
Quem defende agrotóxicos argumenta que, em termos de eficiência, eles permitem produzir mais rápido, com velocidade.
Creio que é isso que está provocando hoje danos mundiais. Porque os agrotóxicos esgotam a terra, contaminam a lavoura, a vida, os animais, os vegetais. Na Argentina uma empresa de mineração, a Barrick Gold contaminou diferentes rios, mas isso não interessa às empresas [mais informações sobre esse caso e outros relacionados disponíveis na publicação Na Justiça]. As empresas querem ganhar dinheiro, o ser humano não conta. O ser humano, como diz o Papa Francisco, está submetido a uma cultura de descarte. O ser humano já não conta, cada vez é menos necessário pela tecnologia. A fábrica que antes necessitava de cem operários hoje faz o mesmo com dois.
Com a situação política atual mais dura, com os avanços conservadores, com esse contexto econômico, como falar de utopia? Como manter a esperança?
Dentro de todo esse caos mundial há lugares em que as pessoas trabalham com alternativas. Alternativas agrícolas, por exemplo, agroecologia, criação de bancos de sementes naturais, as chamadas sementes crioulas. Esse processo ainda não tem uma dimensão política, mas tem sim uma dimensão social. É preciso traduzir tudo isso em alternativas políticas. Hoje os dirigentes políticos não estão preparados para isso como os cientistas, por exemplo. Fritjof Capra, um físico, começa a descobrir como a ciência está unida à espiritualidade e escreve O Tao da física. E há um livro em que ele fala sobre a medicina holística que se chama O ponto de mutação. Na medicina tradicional, se te dói o fígado, te curam o fígado mas destroem todo o resto. O médico não se preocupa em ver que a dor no fígado tem a ver com todo o organismo. Nós temos um pensamento cartesiano, analítico, que aportou muito, mas que é muito fragmentado. Hoje temos que ter um pensamento holístico, integrador. Nós somos parte de um todo, e esse todo é parte da gente. É como compreendemos não só a mãe terra, mas o cosmos. Havia um paleontólogo francês, Teilhard de Chardin, que falava da evolução do ser humano. Ele trata da biogênese, da antropogênese e da cosmogênese. Ou seja, o ser humano não está limitado e completo, nós estamos em um processo de construção. Se estamos destruindo a biogênese com tudo isso que falamos, estamos nos prejudicando. A evolução não vai ser natural, mas sim forçada, como uma semente da Monsanto. Na antropogênese, o ser humano está em um processo evolutivo, não só fisicamente, mas de consciência. A cosmogênese é quando um se considera parte do todo. Por isso, quando alguém diz, somos filhos das estrelas, faz sentido. O ser humano é filho das estrelas, tudo que existe é filho dessa famosa explosão mundial. Chardin sintetiza a espiritualidade também. O ser humano evolui espiritualmente também, com todas as suas contradições. Más há uma consciência que é de toda humanidade.
Quando fala em espiritualidade, sua perspectiva é diferente da do fundamentalismo, não só do islâmico, mas do fundamentalismo cristão também. No Brasil, temos hoje avanços de linhas religiosas fundamentalistas. Há quem analise esse fenômeno a partir dapercepção de que os políticos ignoraram e deixaram de fazer trabalho de base e na política não existe vácuo. Grupos muito fundamentalistas ganharam espaço entre o povo.
Sim, existe isso, lamentavelmente. É o que eu designo como monocultura das mentes. É o absoluto e depois o abismo. Se sai disso, não há nada. Os fundamentalismos são como agrotóxicos, contaminam-se uns aos outros. É isso que se vê também nas forças armadas, na polícia. Eu muitas vezes tento imaginar que um ser humano torture, mate e depois lave as mãos, chegue em casa e ame a mulher, os filhos? Isso é a suspensão da consciência. É o que acontece quando todo um grupo faz o mesmo. É o que aconteceu com os nazistas, com as ditaduras latino-americanas, com os soldados que vão combater no Oriente Médio. São fundamentalismos. Se todos fazem o mesmo, violam, matam, torturam, a culpabilidade se dilui no coletivo. É incrível como isso se dá. Uma tomada de consciência, uma compreensão da Não Violência, não é somente quando se está diante de um conflito, mas na forma de viver, na forma de compreender a realidade. A Não Violência não se aplica somente nos conflitos; quando se chega a um conflito a pessoa já se sabe o que fazer.
Viver é um ato político.
Sim, e isso tem a ver com o olhar que cada um tem para com os demais e consigo mesmo. É preciso colocar em prática tudo isso. Eu muitas vezes falo de Henry David Thoreau, que escreveu A desobediência civil, ele é o Não Violento que inspirou Gandhi, Luther King. Ele, em algum momento, diz que toda pessoa amante da liberdade deve ser respeitosa com a lei. Porque a lei em uma sociedade é necessária. Porém, em seguida, Thoreau diz: cuidado, nem toda lei é justa. Devemos resistir às leis injustas, é preciso rebelar-se contra as leis injustas até sua total nulidade. Ele negou-se a pagar os impostos da guerra de Estados Unidos contra México, porque dizia que não poderia dar aval a uma guerra injusta. Por isso foi preso, mas manteve a posição de não aceitar uma injustiça.
Para finalizar, quais são as suas principais referências?
Para mim, a espiritualidade. Quando alguém lê o Evangelho, vai descobrindo as coisas. Além disso, há os exemplos de vida de muita gente que conheci e que também estudei como Gandhi, Luther King, Cesar Chavez [líder sindicalista de trabalhadores rurais mexicanos nos Estados Unidos], Hélder Câmara. Há Leônidas Proaño, bispo dos índios do Equador. E há o trabalho com as comunidades de base, indígenas, camponeses, homens, mulheres. É com essas vivências que uma pessoa aprende. Se a gente não muda e aprende, acaba entrando nesse caminho de autodestruição. O apocalipse está sendo gerado pelo próprio ser humano quando destrói a natureza, a vida, o próximo. A gente pode ser feliz, não estamos aqui para sermos desgraçados, mas para sermos homens e mulheres livres. Como transformamos a cultura de violência em uma cultura de paz? A cultura de paz não é ausência de conflitos, mas sim a cultura das relações. É preciso trabalhar, estudar, aprender, sempre respeitando a diversidade. Se não respeitamos, entramos nesse caminho sombrio que não sabemos onde vai dar.
Pela história sabemos, não?
Claro. Há um escritor argentino Leopoldo Marechal que diz que muitos se metem nos labirintos e depois não podem sair. Mas dos labirintos a gente sai por cima. Genial. Así es.
http://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano/9256-capitalismo-militariza-se-a-cada-dia-e-nao-e-possivel-vence-lo-pela-forca-diz-nobel-da-paz
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