Internacional

59 mísseis contra a paz

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Luiz Eça – Mesmo de­pois do se­cre­tário da De­fesa, Rex Til­lerson, ter de­cla­rado que afastar Assad não era mais pri­o­ri­dade dos EUA, dei­xando o fu­turo do líder sírio por conta do povo, ofi­ciais es­ta­du­ni­denses con­ti­nu­avam de­fen­dendo a queda do pre­si­dente.

Como se a fala de Til­lerson não ti­vesse acon­te­cido, Tio Sam vol­tara a for­necer ar­ma­mentos aos re­beldes, se­gundo re­pre­sen­tantes dos ini­migos do re­gime sírio.

Tudo in­dica que a sur­pre­en­dente vi­rada norte-ame­ri­cana, com acei­tação de Assad, teria sido mal re­ce­bida por ge­ne­rais e po­lí­ticos de peso nos EUA, for­çando Trump a dar o dito por não dito.

Foi quando, em 3 de abril, a ci­dade de Kham Sheikhoun so­freu um ataque aéreo com gás, que causou a ter­rível morte de 80 pes­soas apro­xi­ma­da­mente, in­clu­sive cri­anças, além de muitos fe­ridos.

A de­núncia de que o autor dessa atro­ci­dade fora o go­verno Assad foi en­cam­pada de ime­diato pela mídia in­ter­na­ci­onal e pelos lí­deres do Oci­dente.

Por que Assad faria isso?

Não se deu im­por­tância ao fato de as in­for­ma­ções terem par­tido de grupos re­beldes, que con­tro­lavam Kham Sheikhoun, e do Ob­ser­va­tório dos Di­reitos Hu­manos – ONG com sede em Lon­dres – cujo di­retor, Rami Ab­dul­rahman, é um no­tório ini­migo do re­gime sírio.

Trump foi o mais exal­tado na de­mo­ni­zação de Assad, cla­mando que os EUA vol­tavam a lhe negar o di­reito de go­vernar seu país. Ex­plicou que mu­dara sua po­sição an­te­rior de­pois de ver as trá­gicas fotos de cri­anças vi­ti­madas pelo gás.

Na ver­dade, isso acon­teceu antes, o que se prova pelo re­torno do for­ne­ci­mento de armas aos re­beldes pela CIA e as de­cla­ra­ções anti-Assad de ofi­ciais, quando ainda ecoava a fala de Til­lerson, atri­buindo o fu­turo do pre­si­dente sírio à von­tade do seu povo.

A Rússia con­testou a acu­sação oci­dental, ale­gando que o gás se ori­gi­nara de um va­za­mento, du­rante ataque de aviões sí­rios contra um ar­mazém usado por ter­ro­ristas para fa­bricar e es­tocar gases ve­ne­nosos. Uma se­leção de ex­perts, li­gados a ins­ti­tui­ções pró-Oci­dente, des­mentiu os russos.

En­quanto a mídia es­pa­lhava pelo mundo a nar­ração de mais essa bru­ta­li­dade de Assad, no Con­selho de Se­gu­rança da ONU, os EUA, Reino Unido e França apre­sen­tavam pro­posta de re­so­lução e pe­diam uma ri­go­rosa in­ves­ti­gação, que, aliás, nada teria de im­par­cial. Bus­cava ex­clu­si­va­mente evi­dên­cias das culpas da avi­ação síria, tais como ho­rá­rios das de­co­la­gens e ater­ris­sa­gens dos aviões da base donde par­tira o ataque, re­lação dos pi­lotos, planos de voos, tes­te­mu­nhos de pes­soal da base e das re­don­dezas etc.

A versão russa fora to­tal­mente ig­no­rada. Es­tranho, pois seria fácil provar sua ve­ros­si­mi­lhança ou fal­si­dade: bas­tava in­ves­tigar o de­pó­sito onde os sí­rios afir­mavam que os gases ve­ne­nosos es­tavam sendo fa­bri­cados e es­to­cados.

Por mais ar­ra­sador que tenha sido o bom­bar­deio, os pos­sí­veis ves­tí­gios le­va­riam muito tempo para de­sa­pa­re­cerem.

Como era óbvio, os russos e chi­neses ve­taram a re­so­lução oci­dental. No dia se­guinte, em reu­nião con­junta com a ONU, o di­retor da Or­ga­ni­zação Pela Proi­bição das Armas Quí­micas anun­ciou que sua en­ti­dade vinha reu­nindo e ana­li­sando in­for­ma­ções de todas as fontes dis­po­ní­veis e es­taria pre­pa­rada para en­viar uma equipe para in­ves­tigar o ataque o mais cedo pos­sível.

Não deu tempo, os EUA op­taram pela sen­tença antes da in­ves­ti­gação dos fatos. Na ma­dru­gada do dia 7 de abril, 59 mís­seis To­mahawk foram dis­pa­rados contra a base aérea de Shayrat, donde teria par­tido o su­posto ataque a gás.

Os danos ma­te­riais cau­sados foram pe­sados, mor­reram seis pes­soas, se­gundo os EUA, nove civis e quatro mi­li­tares, se­gundo a Síria.

Trump ime­di­a­ta­mente trom­be­teou: que isso sirva de aviso, nova de­linquência do re­gime Assad será du­ra­mente pu­nida.

Nikki Haley, a fo­gosa em­bai­xa­dora dos EUA na ONU, dou­trinou que como a ONU vinha “con­sis­ten­te­mente” fa­lhando em agir contra Assad, os países po­de­riam atuar uni­la­te­ral­mente sem a au­to­ri­zação da en­ti­dade global.

Til­lerson foi mais longe: ele con­firmou afir­ma­ções de ofi­ciais de que os EUA es­tavam con­si­de­rando a ideia de re­mover Assad do poder.

Os con­gres­sistas do war party (par­tido da guerra) aplau­diram rui­do­sa­mente. A be­li­cosa Hil­lary Clinton juntou-se a eles, porém, queria mais, que todas as 26 bases aé­reas sí­rias fossem bom­bar­de­adas.

No en­tanto, muitos con­gres­sistas pro­tes­taram, a mai­oria sob o fun­da­mento de que sendo o ataque dos mís­seis um “ato de guerra”, pre­ci­saria ser pre­vi­a­mente apro­vado pelo le­gis­la­tivo. Vá­rios ou­tros também con­de­naram a falta de in­ves­ti­gação.

Por sua vez, Philip Gi­raldi, ex-membro da CIA e di­retor do Con­selho Pelo In­te­resse Na­ci­onal in­formou, no The Li­ber­ta­rian, de 7 de março, que mi­li­tares e pes­soas in­ti­ma­mente fa­mi­li­a­ri­zadas com a In­te­li­gência dos EUA en­dos­savam a versão de que foi o va­za­mento de gases ve­ne­nosos ar­ma­ze­nados em de­pó­sito bom­bar­de­ados pelos sí­rios que causou a tra­gédia.

As fontes de in­te­li­gência de Gi­raldi de­cla­raram-se es­tar­re­cidas com as acu­sa­ções falsas da im­prensa e do go­verno norte-ame­ri­cano.

Como se es­pe­rava, as con­de­na­ções da Síria, Irã e Rússia foram ve­e­mentes: o ataque es­ta­du­ni­dense seria uma vi­o­lação da so­be­rania síria e, por­tanto, das leis in­ter­na­ci­o­nais.

Não deixa de ser ver­dade, mas não foi a pri­meira vez, nem será a úl­tima, que os EUA in­ci­diram nesse de­lito. Vide a in­vasão e ocu­pação do Iraque.

Gi­raldi pode não estar cor­reto

Há uma ob­jeção que soa me­lhor: de­pois da tomar Aleppo, as forças do re­gime de Da­masco es­tavam ga­nhando todas e se apro­xi­mavam de uma vi­tória final. Talvez por isso, o go­verno de Washington, pela voz de Til­lerson, de­sis­tira de exigir a queda de Assad, em­bora hou­vesse al­guns si­nais de que essa po­sição po­deria mudar.

Por que ar­riscar esse quadro al­ta­mente fa­vo­rável com um ataque que in­dig­naria o mundo e for­çaria os EUA a uma re­ta­li­ação? A ideia de que Assad pre­tendia hu­mi­lhar os EUA, mos­trando que podia fazer o que qui­sesse, é in­con­sis­tente. Afinal, o líder sírio nunca de­mons­trou ter um QI in­fe­rior ao normal…

Peter Ford, ex-em­bai­xador do Reino Unido na Síria (2003-2006), con­corda no Middle East Eye, de 7 de abril: “Assad não é louco e sa­beria que quando Do­nald Trump es­tende um ramo de oli­veira para ele, qual­quer uso de armas quí­micas seria con­tra­pro­du­cente”.

Ro­bert Parry, em Con­sor­tium News, su­gere um lance es­tilo Wag the Dog. Nesse filme, um pre­si­dente norte-ame­ri­cano vê sua re­e­leição ame­a­çada por ter as­se­diado uma jovem nos jar­dins da Casa Branca. Para que o pú­blico es­queça o es­cân­dalo, um pro­dutor de ci­nema (vi­vido por Dustin Hoffman) in­venta uma guerra contra a Al­bânia. En­ga­nado pela farsa, o pa­trió­tico povo es­quece as di­a­bruras pre­si­den­ciais e passa a vi­brar com a falsa guerra. E re­e­lege o pre­si­dente.

Como às vezes a vida imita o Ci­nema, em 1998 o pre­si­dente Bill Clinton talvez tenha se ins­pi­rado no filme: para des­viar a atenção do povo, cho­cado com suas aven­turas se­xuais com a ga­rota Lewinski, lançou 75 mís­seis contra uma fá­brica de ar­tigos far­ma­cêu­ticos no Sudão, de­pois de acusá-la de pro­duzir bombas quí­micas.

Agora, em 2017, Trump vê-se em maus len­çóis com o es­cân­dalo da su­posta es­pi­o­nagem dos hac­kers russos dos com­pu­ta­dores da cam­panha pre­si­den­cial de Hil­lary Clinton. O ataque a gás em Khan Sheikhoun teria caído do céu. As­su­mindo o papel de jus­ti­ceiro, The Do­nald or­dena o lan­ça­mento de 59 mís­seis contra base aérea síria. Em se­guida, apre­senta-se no papel de ma­chão, ame­a­çando Assad com os raios de Zeus.

O povo es­quece os russos e, to­mado de ardor pa­trió­tico, aclama seu pre­si­dente, que mos­trou como os EUA são fogo. E Trump ganha al­guns pontos nas pes­quisas. Pode ser exa­gero, mas fato é que, pla­ne­jado ou não, o en­redo pa­rece plau­sível.

Como Trump, os re­beldes sí­rios também saíram ga­nhando no epi­sódio. Graças à grande mídia, Assad ficou mar­cado como um bad guy, capaz de usar as mais si­nis­tras armas contra in­de­fesos civis. Aqueles que querem depô-lo, numa ló­gica dos wes­terns de Hollywood, são ne­ces­sa­ri­a­mente good guys, me­re­ce­dores do apoio de todos.

Triste é ver a ONU mais uma vez des­mo­ra­li­zada. Ela sempre teve como pro­posta fun­da­mental usar o mul­ti­la­te­ra­lismo para re­solver con­flitos entre na­ções. Tem de ser assim, sinal verde para que Es­tados ajam mi­li­tar­mente de forma uni­la­teral pode levar o caos à ordem in­ter­na­ci­onal. Mais uma vez os EUA vi­o­laram essa regra. E, in­fe­liz­mente, a ONU não tem como aplicar san­ções à nação mais po­de­rosa do globo.

Putin também perde

A re­ação russa, re­forçar as de­fesas das ins­ta­la­ções mi­li­tares na Síria, é muito pouco. Can­celar o acordo com os norte-ame­ri­canos para evitar cho­ques entre os aviões dos dois países é uma ati­tude ir­res­pon­sável, que se es­pera re­vo­gada em breve.

O mais grave é que os mís­seis de­to­naram por muito tempo os es­forços para que EUA e Rússia che­gassem a um con­vívio, se não ami­gável, pelo menos ci­vi­li­zado. Que daria uma chance à paz na Síria.

As re­pe­tidas acu­sa­ções do trio Trump-Til­lerson-Nikki Haley de cum­pli­ci­dade russa ou mesmo co­par­ti­ci­pação no su­posto ataque a gás pi­o­raram ainda mais as ima­gens da Rússia e de Putin nos EUA e países de sua ór­bita.

Se ação de Trump foi aplau­dida pela po­pu­lação, de outro lado en­fu­receu o povo russo. A hos­ti­li­dade entre as duas na­ções pode de­ge­nerar em algo muito pior nos fronts da Ucrânia, Síria e dos países da OTAN. O pri­meiro-mi­nistro Med­vedev es­creveu na mídia so­cial que o ataque dos EUA chegou a um passo da con­fron­tação mi­litar com a Rússia.

Al­guns dias atrás, um re­pórter per­guntou ao in­flu­ente se­nador re­pu­bli­cano, John Mc­Cain: “a si­tu­ação tensa entre Rússia e EUA não po­deria levar a uma guerra?” Mc­Cain res­pondeu: “nós ven­ce­remos uma guerra com a Rússia porque somos mais fortes”.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12485-59-misseis-contra-a-paz

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