Starre Vartan – Sofás, canetas esferográficas, portas de garagem, garrafas plásticas poderão se tornar fósseis
Você sabe que o consumismo desempenha um enorme papel na mudança climática –todo o combustível fóssil que temos de queimar para fabricar e transportar nossas coisas, todas as árvores cortadas para dar lugar a cidades e empresas em expansão, todo o gado que sacia nosso apetite crescente por hambúrguer e churrasco. Mas o impacto ambiental que todos os nossos bens materiais têm no planeta vai muito além dos gases do efeito estufa emitidos no processo de criar e transportar essas coisas.
Na verdade, grande parte dele tem a ver com o que deixamos para trás. É um fenômeno criado pelo homem tão grande que os cientistas sugerem que está sendo criada uma nova camada geológica sobre o planeta, feita de tecnofósseis. A maioria das pessoas associa as camadas geológicas a eras longínquas: os paleontólogos desenterram fósseis de estegossauros ou corais antigos, as incríveis linhas em camadas do Grande Cânion testemunham bilhões de anos de vida na Terra. Mas nós estamos criando nossa própria cobertura do planeta, que sobreviverá a nós.
Assim como os ossos de dinossauros e madeira petrificada persistem, também ficarão os marcadores de nossa época, e cada vez mais eles incluem os inorgânicos. Sofás, canetas esferográficas, portas de garagem, alfinetes de fralda, pendrives, garrafas plásticas, carros, prédios –quase qualquer coisa que não seja reciclada tem o potencial de se fossilizar, isto é, ser parcial ou totalmente preservada ao longo do tempo, embaixo da terra ou em camadas de outros fósseis –pense num depósito de lixo. Há quase certamente diversos futuros fósseis na sua frente neste momento.
Peso do que fabricamos chega a 30 trilhões de toneladas
Mais que apenas criar um mil-folhas geológico de nosso passado, os cientistas advertem que esse fenômeno também está causando um profundo impacto em nosso futuro terrestre. Assim como o Antropoceno –outra palavra popular na comunidade científica, usada para marcar uma nova época geológica em que a influência humana se tornou a força dominante na Terra–, ele representa uma mudança profunda.
Segundo uma estimativa geológica conservadora de uma equipe de pesquisadores internacionais liderada pela Universidade de Leicester (Reino Unido), todas essas coisas pesam 30 trilhões de toneladas. São 50 quilos, o peso de um pneu de caminhão pequeno, para cada metro quadrado da superfície da Terra. O grupo também calculou que a mera diversidade de tipos de tecnofósseis que nós fizemos como espécie já superam o número de espécies bióticas que vivem na Terra hoje e poderão até “exceder a diversidade biológica total da história da Terra”.
Tecnosfera, um parasita em nosso planeta
A escala de nossas coisas é tão gigantesca que também está criando toda uma nova esfera ao lado dos outros grandes sistemas de nosso planeta. Há muito temos a hidrosfera (água), a atmosfera (ar), a litosfera (terra), a biosfera (vida orgânica, como plantas e animais). Agora temos a tecnosfera (construções humanas). Diferentemente das esferas naturais, que desenvolveram sistemas de autorregulação e interações equilibradas ao longo de milhões de anos, a novidade geológica da tecnosfera é tão poderosa que descarta o equilíbrio bastante robusto de nossos sistemas naturais.
Os que a estudam se preocupam –entre muitas outras coisas– com que a tecnosfera não funcione como um sistema de modo geral fechado, como as outras esferas. Um exemplo simples é o ciclo hidrológico: o vapor de água se transforma em nuvens, que chovem sobre as paisagens, fluem para os rios e voltam ao mar. Esse ciclo levou éons (período de tempo tão grande que não é mensurável) para se desenvolver no sistema geralmente simétrico que desfrutamos hoje. Mas a tecnosfera está avançando em um ritmo de mudança medido em décadas, e não éons, o que significa que o complexo processo evolucionário de equilíbrio não teve tempo para se autorregular.
Pior de tudo, como nossos aterros de lixo começam a mostrar, ela é notavelmente fraca na reciclagem de seus materiais. Na biosfera, há pouco desperdício –a sequoia cai depois de séculos de crescimento e torna-se a casa de pequenos mamíferos, plantas e cogumelos, que a decompõem no solo abaixo; as sequoias bebês literalmente crescem do corpo da velha árvore, um ciclo em que a vida é continuamente sustentada e não se cria lixo. Em longo prazo, a falta de nutrientes e de reciclagem de energia é fatal para qualquer sistema natural, e a tecnosfera usa uma vasta quantidade de recursos finitos, como combustíveis fósseis, metais preciosos, solo, água doce e outros produtos da biosfera, litosfera e hidrosfera. Ela suga tantos recursos que Jan Zalasiewicz, um dos geólogos da Universidade de Leicester que há vários anos conduzem um estudo da tecnosfera, disse que a considera um parasita em rápida evolução em todo o nosso planeta.
Não é uma hipérbole: para criar nosso mundo das coisas, a tecnosfera está consumindo recursos de que o resto do planeta precisa para manter seus sistemas. E, assim como os protozoários dos vermes intestinais ou da malária, não se importa se incapacitar ou matar seu hospedeiro. Para ser claro, o lixo em si não é o parasita, é simplesmente a evidência dele — aqueles tecnofósseis são as carcaças que restaram de um sistema parasítico. Um sistema saudável não deixa lixo. Se a tecnosfera continuar irrestrita, afinal fará o que todos os parasitas fazem.
Infelizmente, a cura não será tão simples quanto livrar-se de moscas. A tecnosfera em si chegou para ficar. O sucesso humano na Terra está ligado ao mundo que construímos –nossas cidades, nossa agricultura, nossas fontes de energia, nossas roupas, nosso transporte e nossas tecnologias. Em suma, transformamos parte da Terra em uma máquina para sustentar a humanidade. E, como me disse Zalasiewicz, “somos uma parte da tecnosfera, um componente, e temos de mantê-la funcionando porque ela nos mantém funcionando”.
Mas tecnofósseis adicionais –e o sistema de desperdício que eles representam– não são necessariamente inevitáveis. Podemos tornar a tecnosfera mais interessante conduzindo-a para um relacionamento mais mutualista, em vez de parasitário.
Assim como as esferas naturais se desenvolveram durante milhões de anos na Terra, a tecnosfera pode evoluir com o tempo, e o fará. “Eu vejo os sistemas da tecnosfera como a próxima biologia”, disse Peter Haff, professor emérito de geologia e engenharia civil e ambiental na Universidade Duke, que primeiro cunhou o termo em 2013. Haff é filosófico, e pensa no tempo geológico quando considera as implicações em longo prazo da tecnosfera: “É apenas a coisa mais nova que a Terra está fazendo. Aconteceu de vivermos neste tempo, quando há uma mudança acontecendo”.
Essa “estrutura emergente”, como as outras esferas, cresce e se modifica para aperfeiçoar sua própria funcionalidade, e não a nossa –Haff sugere que deveríamos influenciar enquanto podemos a tecnosfera para que se comporte mais como as outras esferas benéficas. “Para a própria sobrevivência [da tecnosfera] em longo prazo, e para a nossa, reciclar é essencial”, disse ele.
Especialmente nestas fases iniciais, podemos provavelmente atenuar alguns de seus efeitos mais parasíticos, remodelando-a para funcionar melhor com as outras esferas bem sintonizadas e autorreguladas. Para começar, devemos forçar a tecnosfera a “funcionar em conjunto com uma biosfera que seja estável, e não uma que está rapidamente se degradando”, disse Zalasiewicz. Isso significa que precisa ser (muito) melhor ao reutilizar os recursos, imitando o modo como as outras esferas funcionam –todas se reciclam continuamente, em um processo circular.
A economia compartilhada na verdade representa um bom modelo para a tecnosfera –afinal, ela reduz o uso de recursos (e portanto dos detritos) ao fazer os consumidores repensarem a propriedade individual das coisas. Do mesmo modo, conceitos como a economia circular (em que o lixo é completamente eliminado ao deixarmos o modelo linear de fabricar-usar-descartar por um onde cultivamos ou produzimos coisas novas a partir de componentes reciclados) podem levar a tecnosfera de volta a um círculo relativamente saudável de uso e reuso de recursos –semelhante a como as outras esferas evoluíram.
O ponto crítico a se compreender sobre a tecnosfera é que, como as outras esferas, ela não se importa se os humanos sobreviverem. Ela existe fora de nós, mesmo que nos inclua. Não há ninguém encarregado da tecnosfera, ninguém sabe exatamente como ela funciona como um todo e ninguém a projetou.
Em última instância, em uma tecnosfera saudável nenhum lixo seria produzido e nenhum tecnofóssil ficaria para trás (ou pelo menos muito pouco, como o que é deixado pelas outras esferas). Poderia tornar o trabalho dos futuros geólogos menos interessante, mas pelo menos no futuro haveria cientistas quebrando a cabeça sobre seus ancestrais.
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/slate/2017/04/01/produzimos-tanto-lixo-que-criamos-nova-camada-geologica-repleta-de-fosseis.htm
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