Política

Desafios para um novo ciclo da esquerda

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Guilherme Boulos – Encerra-se um ciclo na esquerda brasileira

O partido dos Trabalhadores foi durante os últimos 35 anos a força hegemônica no campo da esquerda. Desde sua fundação, o PT constituiu um guarda-chuva que envolveu quase todos o movimento social e os chamados setores progressistas. Aqueles 25% a 30% da população brasileira que se identificam de algum modo com as propostas da esquerda foram seu eleitorado cativo e tiveram nele sua grande referência política. Este guarda-chuva foi devastado por uma tempestade.

Pelos limites de sua estratégia, pelos rumos desastrosos de seu governo após as eleições de 2014, por sua incapacidade de resistência ao golpe e, é claro, também pelos ataques impiedosos vindos do consórcio direita/judiciário/mídia – consórcio este que os governos petistas recusaram-se a enfrentar durante 13 anos – o PT chegou a este ponto. As eleições desse ano foram mais um sintoma da gravidade de sua crise.

Alguns exageram e decretam o fim do PT. Devagar com o andor. O partido ainda dirige a maior central sindical do país e parte expressiva do movimento social. Além disso, tem à frente a principal liderança política brasileira, que, mesmo desgastada após quase dois anos de linchamento público, permanece liderando qualquer pesquisa de intenção de voto. Não, o PT não morreu. Mas perdeu as condições para hegemonizar o campo de esquerda e de arrastar consigo os setores progressistas.

A questão é compreender o que se esgota com a crise do ciclo petista. Esgotam-se, ao meu ver, a estratégia do pacto social e o modelo conservador de governabilidade. A crise econômica e o golpe parlamentar precipitaram esse desfecho.

Em relação à estratégia, a aposta dos governos petistas foi impulsionar moderados avanços sociais, sem tocar nos privilégios da burguesia. A política de aumento da renda dos trabalhadores, crédito fácil e programas sociais foram a cota do andar de baixo. Lá em cima, porém, os lucros aumentaram, o sistema da dívida permaneceu intacto e nenhuma reforma estrutural foi sequer ensaiada. Este pacto, que cimentou o consenso capaz de garantir 13 anos no poder, dependia de níveis expressivos de crescimento econômico e começou a ruir tão logo a crise se aprofundou.

Curioso notar que quem rompe com ele é a própria burguesia, ao apoiar o golpe de 2016, passando a apostar numa estratégia mais agressiva de espoliação. O golpe é a expressão da falência do pacto social e de quão ilusório é pretender reeditá-lo. A Globo derrubou Dilma Roussef com verbas públicas, repassadas sem parcimônia nos 13 anos de governos petistas. A burguesia quer sempre mais e aproveita qualquer oportunidade para remover eventuais obstáculos políticos. Neste sentido, um programa de esquerda no Brasil precisa ser capaz de recuperar a radicalidade do enfrentamento a privilégios e das reformas estruturais. Precisa romper com a ilusão do consenso e assumir a perspectiva do conflito.

Isso implica compreender que não há governabilidade de esquerda sem ampla mobilização social. Apostar somente nos apoios parlamentares para sustentar um governo significa, no sistema político brasileiro, ficar refém dos setores mais conservadores e reproduzir o método de formação de maiorias que tem na corrupção sua regra mais sagrada. Reduzir governabilidade ao parlamento é tornar inviável a aplicação de um projeto político de transformação. Isso só é possível com a criação de mecanismos ousados de participação popular e com o estimulo permanente à mobilização social. Esta perspectiva passou longe da órbita dos governos petistas.

Essas lições importantes precisam ser tiradas da experiência do PT. A partir disso, é preciso compreender o cenário e os desafios que se colocam para a esquerda diante da crise do projeto petista.

Primeiro, não há dúvida de que o declínio da força do PT teve como efeito imediato um fortalecimento dos setores mais à direita na sociedade brasileira. O caráter regressivo do governo Temer – em sua composição e agenda política – é a maior expressão disso. A vitória dos partidos tradicionais nas últimas eleições também fortalece o avanço conservador.

É evidente que o processo é mais complexo e que coexistem com esta tendência o aprofundamento da crise de representatividade (expresso na vitória eleitoral do “ninguém”) e o surgimento de novas e dinâmicas mobilizações sociais, a exemplo das ocupações de escolas pelos secundaristas. Mas o avanço da agenda neoliberal e conservadora, que inclui ainda a criminalização das lutas, é notável.

Do lado das alternativas ainda estamos aquém, do necessário para a construção de um novo “guarda-chuva”, capaz de dar coesão ao campo da esquerda, ao movimento social e ao conjunto dos setores progressistas.

No âmbito partidário, o PSOL passa a ocupar um lugar mais importante. O acerto de sua política no enfrentamento ao golpe, a eleição de bancadas representativas em importantes cidades e as campanhas de Freixo e Edmilson no segundo turno deram maior expressão ao partido e o fortaleceram como referência em setores da juventude. O PSOL sai maior desse processo. Mas não tem condições isoladamente de encampar o novo ciclo político da esquerda, como, aliás, ninguém tem.

No âmbito do movimento social, a Frente Povo Sem Medo representa a tentativa de impulsionar um campo independente e amplo para e encampar a resistência aos ataques de Temer e, ao mesmo tempo, apontar novos caminhos para a esquerda. Com sua diversidade, desempenhou papel importante na luta contra o golpe, preservando as críticas necessárias ao governo Dilma, e agora no “Fora Temer”. Mas, da mesma forma, não tem condições de, sozinha, representar uma nova alternativa.

Este cenário coloca dois grandes desafios imediatos para a esquerda brasileira, para que seja capaz de superar a crise do PT e apontar para um novo projeto.

O primeiro é retomar sua capilaridade social. A esquerda de modo geral deixou de fazer trabalho de base, perdeu sua conexão com a vida real das massas populares e com suas demandas e lutas cotidianas. Precisamos ser capazes de reconstruir esses vínculos e impulsionar um novo ciclo de mobilização social em nosso país. Nenhuma grande alternativa política de esquerda surge “a frio”, no descenso.

O segundo desafio é ter um equilíbrio político na relação com a experiência do PT. Não construiremos algo novo com mais do mesmo, reeditando os caminhos do PT. Por isso é preciso romper com a estratégia do pacto e com a ilusão da “governabilidade” conservadora. Mas também não formaremos um novo campo político reproduzindo o antipetismo, sendo incapazes de dialogar com os acertos desta experiência e principalmente com os setores sociais ainda ligados a ela.

O caminho não é simples. Enfrentaremos contradições e obstáculos. Mas se, no final, tivermos conseguido resgatar a esperança em torno de um projeto popular, radical e de esquerda terá valido a pena.

http://psol50sandre.com.br/desafios-para-um-novo-ciclo-da-esquerda/

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