MAURICIO PULS – Pequenas companhias criadas no século XIX, em grande parte por empresários ligados ao café, formaram posteriormente o setor elétrico paulista
Prédio da Companhia Água e Luz, em 1901. A empresa concessionária estava instalada no centro da capital paulista
Hoje controlado por grandes empresas, o setor elétrico de São Paulo surgiu no século XIX graças a dezenas de pequenas companhias fundadas, em boa parte das vezes, por empresários ligados ao cultivo do café. Segundo Gildo Magalhães dos Santos Filho, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o mesmo processo ocorreu nos Estados Unidos. “Lá existiam centenas de pequenas companhias locais, que depois se uniam em grupos que atendiam mais cidades. As pequenas empresas otimizavam a geração para mais clientes e as duas, três cidades viravam cinco, depois 10, e as associações se transformavam em companhias regionais. Foi exatamente o que aconteceu aqui”, diz o pesquisador, que coordena o projeto temático “Eletromemória II”. “Essa semelhança foi um resultado muito significativo do trabalho, agora em uma segunda fase.” Desde 2007 o grupo de Magalhães mapeia os acervos de documentos sobre a história da energia elétrica no estado. O projeto terá, ainda, um banco de dados sobre o tema, que ficará disponível para consulta pública.
A arquiteta Débora de Almeida Nogueira, pesquisadora-colaboradora do Laboratório de Empreendimentos da Universidade Estadual de Campinas (LaborE-Unicamp) e do Eletromemória II, conta que a primeira cidade a inaugurar um sistema de iluminação pública alimentado por uma termelétrica foi Rio Claro, em 1885. Três anos depois, no dia 5 de dezembro de 1888, os paulistanos acompanharam o acendimento das lâmpadas na rua Boa Vista, no centro da capital, graças a uma termelétrica a carvão instalada na rua Araújo pela empresa concessionária Água e Luz, que cobria o triângulo formado pelas ruas São Bento, Direita e Quinze de Novembro, a principal região comercial da cidade.
Como explica Débora, as térmicas tinham um custo inicial inferior ao das hidrelétricas, pois estas demandavam a construção de barragens. Mas, a longo prazo, sua operação se tornava menos vantajosa devido ao preço do carvão importado. A primeira hidrelétrica a entrar em operação no estado foi a usina de Monjolinho, em São Carlos, em 1893, seguida nesse mesmo ano pela Luiz de Queiroz, em Piracicaba. Até 1900, mais nove hidrelétricas foram construídas – todas na região entre Piracicaba e Ribeirão Preto. Para a pesquisadora, essa concentração indica que os lucros do café financiaram os investimentos em energia. “Das famílias dos cafeicultores provinham os empresários das novas indústrias, os acionistas das ferrovias e os concessionários na exploração dos serviços públicos”, diz.
Reportagem de A Gazeta (20/7/1965) mostra a construção da Cherp: o governo de São Paulo começou a aumentar a geração de energia nos anos 1950
Isso explicaria por que a luz elétrica apareceu inicialmente nas cidades do Oeste Paulista, onde estavam as fazendas de café mais rentáveis. Foi só a partir de 1900 que a eletricidade começou a chegar às zonas cafeeiras mais antigas, no Vale do Paraíba, disseminando-se pelas demais regiões do estado após 1910 (168 dos 204 municípios paulistas contavam com o serviço em 1920). A primeira hidrelétrica para atender a capital paulista surgiu em 1903, em Santana do Paranaíba, e era de grande porte, comparada com as centrais do interior do estado.
Ainda que os produtores de café estivessem à frente de muitos desses empreendimentos, empresários de outros segmentos também se interessavam pelo setor energético. “No estudo de caso que fizemos em São José do Rio Pardo vimos que, dos 13 subscritores originais, havia desde imigrantes italianos de baixo estrato, como um sapateiro bem-sucedido, até um fazendeiro de café que depois comprou as participações dos outros. O início da empresa foi até bem democrático”, avalia Magalhães. “Verificamos também que, para além do conhecido uso da eletricidade para iluminação e tração elétrica (bondes e trens), houve desde o início da eletrificação uma associação direta com a industrialização no interior do estado de São Paulo, notadamente nos setores de tecidos, papel e alimentos.”
Embora atraíssem muitos investidores, havia limites à expansão dessas empresas. Segundo Débora, os empresários advindos do café tinham capital para bancar a eletrificação, mas não para todo o potencial de aproveitamento, pois só destinavam à energia uma parcela de seu capital excedente, já que o grosso do lucro era reinvestido nos cafezais. Além disso, como os fazendeiros não tinham experiência nem conhecimento tecnológico do setor, eles tiveram de recorrer às empresas estrangeiras, que acabaram se instalando na região e dominando o mercado.
Trabalhadores na construção de barragem na margem esquerda do rio Paranapanema, em 1926
A Light possuía mais recursos e logo atraiu o apoio da elite paulista. “A Light chegou ao Brasil com a proposta de usar a matriz hidrelétrica. Como dispunha de dinheiro para investir, ganhou apoio de políticos e outros homens públicos para seus projetos considerados modernizadores pela elite”, conta Ricardi. De acordo com Alexandre Macchione Saes, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, sua ascensão não se processou sem resistência, como mostrou em sua tese de doutorado “Conflitos do capital: Light versus CBEE [Companhia Brasileira de Energia Elétrica] na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927)”, defendida no Instituto de Economia da Unicamp, em 2008. A multinacional, no entanto, soube firmar “um amplo sistema de alianças e relações com grupos políticos locais”, em um momento de baixa presença do governo federal no qual as concessões de energia estavam nas mãos das Câmaras Municipais.Internacionalização
O historiador Alexandre Ricardi, orientando de doutorado de Magalhães na FFLCH e integrante do Eletromemória, estudou durante seu mestrado o principal exemplo da internacionalização do capital no setor e detalhou o processo de organização da Companhia Água e Luz, a partir de 1886. Ele explica que, apesar de contar com grandes empresários e políticos em sua diretoria, a Água e Luz não conseguiu o capital necessário para erguer uma hidrelétrica, o que barrou a expansão da empresa. “Eles já tinham a posse da cachoeira do Rasgão e a escritura de compromisso de compra da cachoeira de Pau d’Alho, no rio Tietê. Eram necessários 13 mil contos de réis para as obras, mas a diretoria só conseguiu 2 mil contos”, afirma. Diante disso, em 1909 os ativos e passivos da Água e Luz foram definitivamente incorporados à contabilidade da Light and Power, empresa de capital canadense, que já detinha desde 1900 o controle acionário da companhia paulista.
Em 1927, quando a Light já tinha consolidado seu domínio na capital e no Vale do Paraíba, a norte-americana American & Foreign Power (Amforp, do grupo General Electric) desembarcou no Brasil e, em três anos, comprou 22 concessionárias no Oeste Paulista e em outros estados. Naquela época, as perspectivas das duas empresas estrangeiras eram bastante promissoras: as concessões de energia valiam por até 90 anos e as tarifas podiam ser reajustadas quando a taxa de câmbio se desvalorizava.
As primeiras hidrelétricas paulistas a entrar em operação foram Monjolinho (acima), em São Carlos, e a de Luiz de Queiroz, em Piracicaba, ambas em 1893
A Revolução de 1930 promoveu mudanças no setor. Em 1934 Getúlio Vargas instituiu o Código de Águas, que limitou as concessões a 30 anos e mudou o cálculo das tarifas, restringindo a remuneração do capital das empresas a 10% ao ano. Nesse cenário, tanto a Light como a Amforp reduziram drasticamente seus investimentos, e os blecautes foram se tornando cada vez mais frequentes. Como ressalta Marcelo Squinca da Silva no livro Energia elétrica – Estatização e desenvolvimento, 1956-1967 (Alameda, 2011), o estado então assumiu o ônus de ampliar a geração de energia, mas deixou a distribuição – o setor mais lucrativo – com o setor privado.
Em 1951, o governo paulista começou a construir hidrelétricas no rio Paranapanema; em 1955 criou a Companhia Hidrelétrica do Rio Pardo (Cherp) e, em 1961, as Centrais Elétricas do Urubupungá. Essa mudança foi analisada pelo historiador Renato de Oliveira Diniz em tese defendida na FFLCH em 2011. “O que justifica uma mudança de rumo, de estatal para privado ou de privado para estatal, é a questão do financiamento”, diz Diniz, que dirigiu a Fundação Energia e Saneamento e trabalhou na diretoria de Comunicação e Relações Institucionais da CPFL Energia (sucessora da Amforp), com sede em Campinas. “No momento da estatização havia uma demanda crescente por energia, mas não havia investimentos, por falta de interesse do setor privado estrangeiro e de recursos do setor privado nacional. Então o estado entrou para construir esse parque energético.” Os pesados investimentos estatais criaram as condições para que São Paulo ampliasse seu parque industrial. “Depois que a Cesp [Companhia Energética de São Paulo] construiu as usinas de Jupiá e Ilha Solteira, São Paulo chegou a gerar 50% da energia elétrica do Brasil. O reflexo disso foi a industrialização”, complementa Magalhães.
As encomendas do setor público possibilitaram a consolidação das grandes empreiteiras de capital nacional. Como esclarece Diniz, até a República Velha (1889-1930) a construção civil era dominada por empresas estrangeiras: “Os projetos de engenharia em geral eram feitos no exterior. Os escritórios nacionais intermediavam a contratação e depois supervisionavam a execução. A partir dos anos 1950 as empresas nacionais passaram a projetar e executar as obras. Deixaram então de ser empresas regionais e ganharam dimensão nacional”.
Painel de controle em mármore de Carrara, de 1912, da usina Santa Alice, em São José do Rio Pardo: ainda em funcionamento
As informações do projeto Eletromemória não se limitam à parte econômica. Também são analisados os aspectos culturais da eletrificação. “A usina Santa Alice, em São José do Rio Pardo, de 1907, é um museu vivo”, ressalta Magalhães. “Ela opera com os equipamentos daquela época, não foi repotenciada, tem o painel todo em mármore de Carrara, e o relógio original, da Siemens, continua funcionando.” Esse patrimônio tem grande potencial de aproveitamento turístico e museológico. “O problema é que poucos dão valor para o patrimônio industrial”, queixa-se. Segundo ele, o próprio Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) reluta em considerar usinas como patrimônio histórico. “A usina de Corumbataí, em Rio Claro, é a única tombada pelo estado. As secretarias municipais de Cultura em geral não se movimentam para isso.”
Magalhães igualmente chama a atenção para a questão ambiental. “Em grande parte das localidades onde ficam essas usinas o entorno foi devastado, substituído por plantações e pastagens, mas a área da hidrelétrica está preservada, inclusive a mata natural”, diz. “As pequenas centrais são muito bonitas. A usina Esmeril, em Patrocínio Paulista, tem uma cachoeira de 90 metros. Dá para andar por cinco minutos a partir da casa de força e chegar a um lago formado pela cachoeira e só se vê natureza em volta”, conta. A linda paisagem, segundo ele, hoje não é vista por quase ninguém.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/02/13/forca-e-luz/?cat=humanidades
Deixe uma resposta