Joachim Frank – Nos anos 1980 Leonardo Boff, enquanto principal representante da teologia da libertação e em função da sua crítica à igreja oficial, entrou em conflito com o Vaticano e seu principal guardião da fé Joseph Ratzinger. Depois de, por duas vezes, o proibirem de publicar, deixou a ordem em 1992 e renunciou ao sacerdócio.
Eis a entrevista.
Sr. Boff, o senhor gosta de canções de Natal?
O que o senhor acha? (cantarolando): “Noi – te fe – liz, noi – te fe – liz …” Em toda família que celebra o Natal a gente canta isso. No Brasil isso também é tradição, como entre vocês na Alemanha.
O senhor não acha que essa espécie de Natal cafona e comercializado?
Isso varia de um país para o outro. É claro que o Natal virou um grande negócio. Mesmo assim continua a alegria do convívio com a família, e para muitas pessoas também é um momento de fé. E do jeito que eu vivenciei o Natal na Alemanha, é uma festa do coração, um clima muito especial, maravilhoso.
Como é que uma fé que no Natal fala de “Deus da paz” combina com a falta de paz que estamos experimentando por toda a parte?
A maior parte da fé é promessa. Ernst Bloch diz: “A verdadeira Gênese está não no começo, mas no final, e ela só começa quando a sociedade e a existência se tornam radicais.” A alegria do Natal está nesta promessa: a terra e as pessoas não estão condenadas a continuar sempre desse jeito como experimentamos, com todas as guerras, violência, fundamentalismo. Na fé não se promete que no final tudo estará bem. E, apesar de todos os enganos, descaminhos e reveses, vamos ao encontro de um bom final. O verdadeiro significado do Natal não está no fato de “Deus se ter tornado pessoa humana”, mas que ele veio para nos dizer: “Vocês pertencem a mim, e quando vocês morrerem, estarão vindo para casa.”
O Natal significa que Deus vem para nos buscar?
Sim. Encarnação significa que algo de nós já é divino, eternizado. O divino está em nós mesmos. Em Jesus isto se mostrou da forma mais nítida. Mas está presente em todas as pessoas. Na perspectiva evolutiva, Deus não vem de fora para o mundo, e sim surge de dentro do mundo. Jesus é o aparecimento do divino na evolução – embora não o único. O divino também aparece no Buda, em Mahatma Gandhi e em outras grandes personagens de fé.
Isto não parece muito católico.
Não diga isso. Toda a teologia franciscana da Idade Média entendeu Cristo como parte da criação – não só como redentor de culpa e pecado, que vem de cima para o mundo. Encarnação, sim, também é redenção. Mas sobretudo e em primeiro lugar é uma exaltação, uma divinização da criação. E mais uma coisa é importante no Natal. Deus aparece em forma de criança. Não como velho grisalho e barbudo …
Como o senhor …
Bem, se for o caso, pareço mais com Karl Marx. Para mim o importante é o seguinte: quando, no final da nossa vida, tivermos que nos responsabilizar perante o juiz divino, estaremos diante de uma criança. Mas uma criança não condena ninguém. Criança quer brincar e estar junto com outras. É preciso enfatizar esse aspecto da fé.
O senhor é um dos mais eminentes representantes da teologia da libertação e, a bem dizer, acabou sendo rehabilitado pelo papa Francisco. Seria essa também uma reabilitação pessoal sua, depois de décadas de disputas com o Papa João Paulo II e seu principal guardião da fé, Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI?
Francisco é um dos nossos. Ele transformou a teologia da libertação num bem comum da igreja. E ele a ampliou. Quem hoje fala dos pobres também precisa falar da Terra, porque também esta está sendo depredada e violada. “Ouvir o clamor dos pobres” significa ouvir o clamor dos animais, das matas, de toda a criação torturada. A terra inteira está gritando. Portanto, diz o papa, citando o título de um livro meu, hoje precisamos ouvir o clamor dos pobres e ao mesmo tempo o da Terra. Ambos precisam ser libertos. Faz pouco tempo me ocupei intensivamente com essa ampliação da teologia da libertação. Esta também é a grande novidade em “Laudato si” …
… que é a “eco-encíclica’“ do Papa, de 2015. Quanto de Leonardo Boff se encontra em Jorge Mario Bergoglio?
A encíclica é do Papa. Mas ele consultou muitos especialistas.
Ele leu os seus livros?
Mais do que isso. Ele me solicitou material para a “Laudato si”. Eu o aconselhei e enviei algumas coisas que tinha escrito. Isso ele também utilizou. Certas pessoas me disseram que durante a leitura teriam pensado: “Ora, isso é Boff!” Aliás, o Papa Francisco me disse: “Não mande a papelada diretamente para mim.”
E porque não?
Ele disse: “Senão os sottosegretari [funcionários da administração do Vaticano; a red.] interceptam o material e não o receberei. Manda de preferência para o embaixador argentino, com quem tenho bons contatos. Então com certeza vou receber.” É preciso saber que o atual embaixador no Vaticano é um velho conhecido do Papa, do seu tempo em Buenos Aires. Tomaram mate juntos muitas vezes. Um dia antes da publicação da Encíclica o Papa ainda mandou ligar para mim para expressar seu agradecimento pela minha colaboração.
Mas um encontro pessoal com o Papa ainda está em aberto?
Ele buscou a conciliação com os principais representantes da teologia da libertação, com Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino e também comigo. Com referência ao Papa Bento respectivamente Joseph Ratzinger eu disse “Mas o outro ainda está vivo!” Ele não aceitou. “Não”, disse ele, “il Papa sono io” – “o Papa sou eu.” Portanto não deveríamos deixar de ir. Por aí se vê a coragem e a postura resoluta dele.
Por que sua visita ainda não deu certo?
Eu tinha um convite e até já tinha aterrissado em Roma. Só que justamente nesse dia, imediatamente antes do início do Sínodo sobre a Família em 2015, 13 cardeais, entre eles o cardeal alemão Gerhard Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, estavam ensaiando a rebelião contra o Papa com uma carta a ele dirigida, a qual, porém – olha só, quem diria! – também acabou publicada no jornal. O Papa ficou furioso e me disse: “Boff, não tenho tempo. Antes do sínodo preciso acalmar as coisas. Vamos nos ver numa outra ocasião.”
Isso de acalmar as coisas também não deu muito certo, ou?
O Papa está sentindo a força do vento contrário vindo das próprias fileiras, principalmente dos Estados Unidos. Esse Cardeal Burke, Leo Burke, que agora, junto com o Cardeal Emérito Meisner de vocês, já escreveu uma carta de novo, é o Donald Trump da Igreja Católica. (ri) Só que, diferentemente do Trump, Burke agora está neutralizado na cúria. Graças a Deus. Essa gente realmente acredita que precisa corrigir o Papa. É como se estivessem acima do Papa. Isso é fora do comum, para não dizer inaudito na história da igreja. Pode-se criticar o Papa, discutir com ele. Isso também fiz bastante. Mas cardeais acusarem o Papa publicamente de espalhar erros teológicos e até heresias já é demais, penso eu. É uma afronta que o papa não pode permitir. O papa não pode ser condenado, isso é doutrina da igreja.
Ante todo esse entusiasmo pelo Papa, como é que ficam as reformas da igreja, que tantos católicos esperavam de Francisco, mas onde na prática ainda não aconteceu muita coisa?
Sabe de uma coisa, no quanto eu o entendo, o principal interesse dele nem é mais a igreja, muito menos o que se faz dentro da igreja, e sim a sobrevivência da humanidade, o futuro da Terra. Ambas correm perigo e é preciso perguntar se o cristianismo consegue fazer uma contribuição para superar essa enorme crise na qual a humanidade corre o risco de sucumbir.
Francisco preocupa-se com o meio ambiente enquanto a igreja ruma de frente contra a parede?
Acredito que para ele há uma hierarquia de problemas. Se a terra for à breca, todos os outros problemas também estarão resolvidos. Mas quanto às questões intra-eclesiásticas, vamos ver! Faz pouco tempo o Cardeal Walter Kasper, confidente do Papa, disse que meio logo haveria grandes surpresas.
O que o Senhor espera?
Quem sabe? Talvez o diaconato da mulher. Ou a possibilidade de padres casados voltarem a ser engajados no cuidado pastoral [Seelsorge]. Este é um pedido expresso dos bispos brasileiros ao Papa, principalmente do seu amigo emérito Cardeal brasileiro na cúria Cláudio Hummes. Ouvi dizer que o Papa gostaria de atender esse pedido, inicialmente numa fase experimental no Brasil. Este país com seus 140 milhões de católicos precisaria de pelo menos 100 mil padres. Mas só há 18.000. Sob ponto de vista institucional isso é uma catástrofe. Não admira que os fiéis migram aos milhares para os evangelicais e pentecostais, que preenchem o vácuo de recursos humanos. Ora, se os muitos milhares de padres casados pudessem voltar a exercer seu ministério, este seria o primeiro passo para melhorar a situação e ao mesmo tempo um impulso para a igreja católica soltar as algemas do celibato obrigatório.
Caso o Papa tomasse essa decisão, o senhor como ex-padre franciscano voltaria a assumir funções sacerdotais?
Eu pessoalmente não preciso de uma decisão dessas. Para mim ela nada mudaria, porque até hoje faço aquilo que sempre fiz: batizo, faço sepultamentos, e quando chego a uma comunidade que não tem padre, também celebro a missa junto com as pessoas.
Seria muito “alemão” perguntar: é lícito o senhor fazer isso?
Até agora nenhum bispo que eu conheço jamais o criticou ou proibiu. Os bispos até ficam contentes e me dizem: “O povo tem direito à eucaristia. Portanto continue assim!” Meu mestre teológico, o cardeal Paulo Evaristo Arns, falecido faz poucos dias, por exemplo, tinha abertura nesse sentido. Ele chegava ao ponto de, quando via padres casados sentados no banco durante a missa, chamá-los para junto ao altar e com eles celebrar a eucaristia. Isso ele fez e disse muitas vezes: “Você continua sendo padre e assim permanecerá!”
http://www.ihu.unisinos.br/563682-leonardo-boff-em-entrevista-o-papa-francisco-e-um-dos-nossos
Deixe uma resposta