Ewerton Martins Ribeiro – O mundo assiste a um surpreendente avanço da direita na política mundial, que vai da recente eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos ao caso da França, que parece decidida a escolher um presidente de direita – ou mesmo de extrema-direita – nas eleições do ano que vem.
Essa onda conservadora é analisada pelo professor Rodrigo Patto Sá Motta, da Fafich, especialista na história do Brasil República e em história contemporânea, atuando principalmente no campo da história política. Como principais causas do fenômeno – que se influenciam mutuamente –, Sá Motta aponta o crescimento dos fluxos migratórios, o aumento do conservadorismo religioso e a crise econômica. O historiador demarca as particularidades da direita brasileira atual – mais liberal e menos católica que a de 1964, por exemplo –, diz que é tempo de as esquerdas se unirem, superando as divergências internas e alerta: “Os países em que o radicalismo mais cresce são os que mais cortaram benefícios sociais”, afirma ele, na entrevista que se segue, concedida ao Portal UFMG.
Nos últimos tempos, há um nítido retorno das ideologias de direita e de extrema direita na cena política global. Quais as causas desse recrudescimento?
O aumento da força da direita política é incontestável, em todos os quadrantes do mundo. O fenômeno é complexo, mas, certamente, tem como pontos essenciais a crise econômica, o aumento nos fluxos migratórios e a maré montante do conservadorismo religioso. Não se trata de propor uma causalidade simplista, pois as condições variam a depender do lugar, e o mero fato de a situação econômica piorar não implica aumento imediato da força da direita radical. Porém, há estudos na Europa que mostram correlação entre o aumento do desemprego e a adoção de reformas liberais que reduzem a proteção social com o incremento da popularidade da extrema-direita.
Os países em que o radicalismo mais cresce são os que mais cortaram benefícios sociais, ampliando, com isso, os efeitos negativos da perda do (ou falta de) emprego. Em outras palavras, o desemprego, sozinho, pode não provocar efeitos políticos graves, mas a ausência de proteção social aumenta a chance de respostas radicais dos cidadãos afetados.
O senhor falou em fluxos migratórios, assunto que ganha ainda mais protagonismo com Donald Trump à frente dos EUA. Qual é a importância da xenofobia para impulsionar as direitas?
Ainda na Europa e nos Estados Unidos, o tema do aumento da presença de imigrantes também tem potencializado a direita radical. Tradicionalmente, a sensibilidade da extrema-direita (nacionalistas e fascistas) sempre foi aguçada contra o estrangeiro, o “outro”. Ele é recusado pelo medo de conspurcar a suposta pureza, ou integridade, do grupo receptor. Nas últimas décadas aumentou muito o fluxo de imigrantes para os países centrais, assim como a discriminação – e a violência – com base em razões religiosas e/ou étnico-raciais. Percebe-se que há um encontro entre os fatores econômicos e socioculturais: a recusa ao estrangeiro é agravada pela ausência de emprego e pela redução de recursos públicos, que são cada vez mais disputados. Em quadro de bonança econômica e pleno emprego, o preconceito provavelmente seria menor. Aliás, é bom lembrar que a imigração foi estimulada pelos governos desses países na época da prosperidade, pois precisavam de mão de obra.
Quais as particularidades e os reflexos desse fenômeno no Brasil, levando-se em conta também o desmoronamento do projeto de esquerda?
No caso do Brasil, o fator imigração é pouco relevante. Sabemos de casos de violência contra imigrantes haitianos, atos graves que são condenáveis e inaceitáveis, é claro. Porém, proporcionalmente, trata-se de problema menos importante do que na Europa ou nos EUA. O principal impulso da direita no Brasil é diferente da Europa. Aqui, o motor principal é o anticomunismo ou, mais precisamente, o antiesquerdismo, que tem raízes ao mesmo tempo sociais e religiosas. Os governos petistas basearam-se em uma aliança com setores da direita que, a propósito, foram importantes para a sua governabilidade. Os grandes empresários lucraram bastante na fase áurea do governo de Lula, e este não parecia ter intenção real de operar mudanças radicais. No entanto, os governos petistas sempre tiveram um viés de esquerda, que se manifestava nas políticas sociais e culturais, na política externa e também no projeto desenvolvimentista que tem o Estado como carro-chefe.
A ascensão das direitas ocorre como uma reação a esse viés?
Desde a ascensão de Lula, grupos radicais de direita começaram a se articular – e a fazer propaganda nas redes sociais. Eles denunciaram os vínculos esquerdistas de alguns membros do governo, sua política externa e programas sociais. Os pontos essenciais dos ataques direitistas contra Lula-Dilma visaram as políticas sociais, especialmente os programas de distribuição de renda via bolsas e cotas, além dos aumentos para o salário mínimo. Outro grande alvo foram os programas voltados à igualdade de gênero, racial e ao respeito às minorias sexuais. Esses projetos feriram a sensibilidade conservadora em vários pontos, desde os dogmas religiosos até preconceitos sociais e o temor da perda de status.
Enquanto a economia cresceu forte e havia sensação de bem-estar, esses discursos de direita tiveram dificuldade para atingir público mais amplo, inclusive porque a grande mídia não lhes prestava maior atenção. Mas, a partir de 2013, com a desagregação econômica e política do projeto petista, a campanha de direita aumentou de intensidade e ofereceu grande contribuição ao processo de impeachment. Esse crescimento recente da direita foi alimentado pela ânsia de destruir o projeto político petista, com larga disseminação midiática. Há muito de oportunismo e superficialidade nisso; só com o tempo saberemos se a onda direitista deixará marcas perenes. De qualquer modo, os seus efeitos foram poderosos.
Como a direita se organiza e se subdivide internamente? No caso da atual direita brasileira, em que ela se distancia e em que ela se aproxima da ideia clássica de direita?
É importante registrar que também há uma direita liberal, não necessariamente conservadora, mas que às vezes converge com a direita conservadora por oportunismo. Os liberais criticam a era petista no que toca ao aumento da intervenção estatal, defendendo sua visão de que o mercado é mais eficiente. Nessa linha, vale destacar um ponto fundamental: na direita atual é mais forte o liberalismo do que foi em crises anteriores, como em 1964. Naquela época, o carro forte da direita era a religiosidade católica. Não é à toa que o evento de rua mais marcante foi a Marcha com Deus, com palanques organizados na Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Hoje, o lugar dos eventos da direita é a Avenida Paulista, coração do capitalismo brasileiro em que estão as sedes da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e dos grandes bancos.
Vem-me à mente aquela ideia que filósofos como Walter Benjamin e Giorgio Agamben já defenderam: a de que deus não morreu, como Nietzsche havia proposto, mas apenas tornou-se dinheiro, na medida do advento do capitalismo…
A religião segue importante como fator mobilizador da direita, não há dúvida, e a defesa da família tradicional continua na linha de frente contra o “comunismo”. Porém, a vanguarda do conservadorismo religioso não é mais o catolicismo, e sim os pastores evangélicos e sua forte bancada parlamentar, como vimos na votação da Câmara em 17 de abril [data em que foi aprovada a admissibilidade do processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff].
Essa ascensão da direita pode servir de ensaio para uma reemergência fascista?
Não creio que vai haver a reemergência do fascismo de modo semelhante ao que ocorreu nos 1930. As crises econômicas e sociais de hoje não são tão arrasadoras como naquela época; basta dizer que, no momento da ascensão de Hitler, a Alemanha tinha cerca de 40% de desempregados. Naquela época, praticamente inexistiam mecanismos de proteção social que minorassem o sofrimento dos desempregados e dos idosos. Além do mais, a experiência mostra o significado do fascismo no poder, e os conservadores tradicionais pensariam duas vezes antes de apoiar governos fascistas (ao contrário do que fizeram no século passado). No entanto, nem tudo se pode prever. O que podemos fazer é trabalhar para evitar o crescimento do fascismo, especialmente ensinando às pessoas, com destaque para os jovens, o que representaria um governo fascista.
Como isso pode ser feito?
Os fascistas provocaram uma guerra mundial e a morte de milhões de pessoas, em grande parte, civis desarmados. No mundo de hoje, provavelmente detonariam uma hecatombe nuclear. Mesmo que o risco de novo advento fascista seja, de fato, ainda limitado, devemos estar alertas e rejeitar aspectos da cultura fascista que proliferam por aí: a intolerância contra o outro (seja em termos políticos, raciais ou sexuais); a tendência a resolver os conflitos por vias violentas, sem respeito pela vida humana; a crença de que existem grupos naturalmente superiores, implicando recusa aos valores universalistas e humanitários.
Neste momento de radicalização e incerteza políticas no Brasil, é fundamental nos apegarmos aos valores democráticos e humanistas. Devemos fazer a luta política e defender nossos interesses e pontos de vista, é claro, mas respeitando (e exigindo que se respeite) o pluralismo, as diferenças, os direitos humanos e a preservação do sistema legal que organiza a nossa vida social.
Poderia mapear a real extensão das motivações fascistas na cena contemporânea?
Por enquanto, o fascismo, propriamente dito, é minoritário. Às vezes, a expressão “fascista” tem sido usada de maneira muito imprecisa e rotulada. O fascismo clássico era baseado em um partido de massas, militarizado e violento, sempre conduzido por um líder absoluto. Outra característica essencial é o nacionalismo radical, que tem aversão ao liberalismo, embora possa tolerar a propriedade privada, mas não as forças livres do mercado. O anticomunismo visceral é mais um ponto-chave, assim como o desprezo pelas minorias. Considerando as características do fascismo original, temos poucos movimentos efetivamente fascistas relevantes no mundo, como no caso da Grécia. O que vemos com mais frequência são combinações heterogêneas entre ideias próximas ao fascismo, mescladas a valores liberais. E partidos que escondem seu viés fascista por medo de perder votos, como é o caso da Frente Nacional francesa.
O crescimento da tática black bloc pós-2013, entre outros fatores, indica que as práticas violentas também têm recrudescido no campo das esquerdas?
Na tradição da esquerda revolucionária, a violência pode ser admitida como recurso para garantir as transformações sociais. No entanto, há uma diferença em relação à direita fascista, para a qual a violência é positiva em si mesma e é parte integrante do movimento. Para a esquerda, a violência pode ser um meio temporário, mas não um fim. De qualquer modo, a maior parte das correntes de esquerda de hoje recusa a violência como meio de ação política. O fenômeno que você citou é claramente minoritário e não expressa a esquerda brasileira. Aliás, não sei se podemos classificar os grupos envolvidos em conflitos de rua como de esquerda.
Recentemente, surgiram as ocupações estudantis, criticadas, em alguns casos, por impor à coletividade desejos que não são exatamente coletivos nem mesmo no âmbito da esquerda, mas, sim, de grupos minoritários…
As ocupações não são movimentos violentos; na verdade, eles têm sofrido a violência das instituições estatais. Eu acho a ocupação uma forma legítima de luta política, uma estratégia para chamar a atenção e para questionar políticas de governo que afrontam o interesse público. O risco são os líderes das ocupações se empolgarem com seu empoderamento e esquecerem os objetivos da luta. As escolas e universidades públicas pertencem a todos, não apenas aos estudantes que as ocupam momentaneamente. Há que ter a inteligência política de saber a hora de desocupar e criar outras estratégias de luta.
Que estratégias as esquerdas devem adotar para fazer frente à ascensão das direitas?
Por falar em criatividade, volto a uma perspectiva mais geral sobre as esquerdas, para responder melhor à pergunta. Não há dúvida de que se trata de um momento de recuo e de defensiva para as esquerdas, que têm à frente um cenário adverso. Há que refletir e buscar alternativas para viabilizar novos projetos de poder orientados para a esquerda, ou seja, para políticas voltadas à distribuição de renda e à redução das desigualdades sociais.
Nos últimos anos, tem havido algumas tentativas de encontrar novos rumos para a esquerda. Primeiro, alguns partidos buscam moderar suas posições, aproximando-se da perspectiva liberal. Mas há dois problemas nessa estratégia: se a esquerda se aproxima da perspectiva liberal, deixando desbotar suas características próprias, o eleitor pode pensar que é melhor então votar nos liberais, propriamente ditos; em segundo lugar, qual a utilidade da esquerda se ela deixar de lado sua razão de ser, o combate às desigualdades sociais? Outras possibilidades têm sido tentadas, às vezes com sucesso, como a busca de estruturas organizativas alternativas aos tradicionais partidos, aproximando-se dos movimentos sociais e inventando novas formas para mobilização política das pessoas. Na Europa, há exemplos interessantes na Grécia, Espanha e França.
Finalmente, menciono um tema óbvio, de que todos falam, mas poucos praticam. É necessário que os grupos de esquerda façam alianças entre si e que se diminuam as diatribes internas. É um caminho difícil, devido a divergências ideológicas e a disputas pessoais entre os grandes chefes e suas camarilhas. Porém, em momento adverso como este, quem, de fato, tem compromisso ideológico e ético deveria abrir mão de interesses menores e juntar forças. De outro modo, será difícil enfrentar essa maré direitista.
https://www.ufmg.br/online/arquivos/046192.shtml
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