Lima Barreto – William Brown, linchado por uma multidão em 1919, acusado de molestar sexualmente uma branca. Estudo recente aponta: entre 1887 e 1950, cerca de 4 mil negros foram linchados nos EUA — um por semana, em média
Coletânea recém-lançada destaca atualidade das crônicas do escritor. Aqui, ele descreve com horror o linchamento de negros nos EUA e a tentativa de defendê-lo com argumentos “racionais”
Considerações Oportunas
(Publicado no A.B.C., em 16/08/1919)
No seu excelente, lúcido e irrefutável livro – Le préjugé des races –, J. Finot logo nas primeiras linhas diz com evidente comiseração: “La conception jadis innocente des races a jeté comme un linceul tragique sur la surface de notre sol”[1].
Que diria ele, se ainda vivo fosse, ao ler os telegramas que, nestes últimos dias, nos chegam de Washington e de Chicago?
Para os massacres da Turquia e da Rússia, não havia censura telegráfica diplomática ou de outra ordem; mas, para a dos negros americanos, deve ter havido uma.Chegam-nos secos, amputados, graduados; mas nós sabemos, pelos exemplos das matanças de armênios, na Turquia, e pela de judeus, na Rússia, o que devia ter sido a chacina de negros naquelas duas cidades dos Estados Unidos.
É preciso que a América do Sul, com as suas civilizações mais ou menos escuras (Roosevelt), fique, até certo e dado dia, convencida de que aquilo não foi nada, não passando de simples conflitos sem importância.
Abstenho-me de comentar tais fatos sob o ponto de vista político, porque, apesar de não ter nenhuma representação oficial e não possuir nenhuma autoridade, temo, entretanto, que as minhas singelas palavras possam desencadear a ira dos governantes e, após, a cólera das quarenta mil toneladas, eriçadas de canhões, que estão na Guanabara.
Nós estamos na época da brutalidade e da violência. Parece que todas as grandes aquisições científicas da humanidade foram entregues, sob a forma de instrumentos de guerra, a papuas ou carijós, que dominam o mundo. O destino da ciência, transformada em arma de guerra, foi nos embrutecer até ao mais último grau. Spencer tinha razão, quando, nos seus últimos anos de vida, via nos acontecimentos universais sinais certos do nosso regresso à barbaria…
O doutor Nicolau Ciancio, a quem me prende uma estima fraternal de antigos companheiros de quarto quando estudantes, teve a hombridade de vir pelo Rio-Jornal dizer alguma coisa de reprovação contra as execuções sumárias e crudelíssimas de negros, em duas grandes cidades dos Estados Unidos.
Trouxe, além do seu protesto sentimental e moral, a sua reprovação a certos doutores que, implicitamente, com as suas teorias desonestas, pretendem justificar tão inumanos e pouco modernos espetáculos.
Em 1889, num discurso perante o Congresso das Sociedades Sábias, o Senhor Daren, citado por Bouglé, dizia: “É no momento em que esta filosofia de raças é banida do gabinete do sábio que vemos a ideia vir para a rua”.
Isto, há vinte anos, ele dizia em França; e foi depois que ela caiu nas sarjetas desse país, que veio para outras, como estamos vendo.
Nada mais falso do que apelar para a Ciência em tal questão. O que se chama Ciência nesse campo da nossa atividade mental ainda não é nem um corpo homogêneo de doutrinas. Cada autor faz um poema à raça de que parece descender ou com que simpatiza, por isto ou aquilo. Os seus dados, as suas insinuações, os seus índices, todo aquele amontoado de coisas heteroclíticas que vemos, no nosso comuníssimo Topinard, são interpretadas ao sabor da paixão oculta ou clara de cada dissertador.
Basta dizer, como o mestre Finot, que a dolicocefalia[2], considerada como qualidade suprema entre os brancos, nada vale quando se a encontra entre os negros. Para Stewart Chamberlain, austero sociólogo das mais autorizados, Byron é um verdadeiro germano; mas, para Driessman, outro autor autorizadíssimo, é um celta vulgar. Assim por diante…
O critério mesmo de raça não é fixo de um autor para outro: e eles se emaranham numa porção de divisões e subdivisões, segundo esta ou aquela característica, abandonando aquela ou esta indicação do corpo humano estudada.
Não há dúvida nenhuma que, para classificar, é preciso abstrair de certos dados, para só procurar os gerais e comuns ao fenômeno a estudar, mas o resultado disso só pode valer para a Ciência, enquanto Ciência. Desde, porém, que passemos do campo espiritual, abstrato, para o da aplicação e da prática, esses resultados devem ser tomados com as necessárias reservas e convicções.
Na ciência que mais impressiona pelo rigor de suas predições – a Astronomia –, não é preciso ser um profissional para saber que são inúmeras as correções que se fazem às observações quaisquer. Há uma até – “a equação pessoal” – que é relativa ao próprio observador.
Os senhores que se têm entregue a esses estudos de antropologia, etnografia ou que outros nomes tenham, se esquecem muito de que um grande naturalista, creio que Lineu, disse: “a natureza não tem raças nem espécies; ela só tem indivíduos”.
Nas ciências naturais, como em outra qualquer, toda a classificação há de ser um produto do nosso espírito em função do nosso poder de abstrair. Fora dele, ela não existe, não é.
Coisas comezinhas como estas precisam ser repetidas para que esses senhores grosseiros de espírito, que se fizeram autoridades em coisas de raças com as quais não lidaram, e que, dos respectivos indivíduos, em geral, só conhecem partes mortas (o crânio sobretudo); precisam ser repetidas, dizia, para que eles, acantonados num pequeno departamento das cogitações espirituais da Humanidade, esquecendo as leis do nosso pensamento, as suas categorias e fatalidades, quando entra em relação com o mundo exterior, não transformem as suas pesquisas e generalizações em artigos de fé, em Corão obsoleto, a propugnar guerras santas e massacres.
Em matéria de raças, fazendo delas entidades concretas fora de nós, acabamos, se o fizermos, em erro tão lamentável como o geômetra que afirmasse haver na natureza esfera, cicloide, cilindro, linha, ponto etc.
Toda essa precaução de pensador honesto em não querer trazer para o mundo dos objetos, senão com as mais delicadas precauções, as suas concepções subjetivas parece não deter os difundidores de certa antropologia.
Mas a experiência, a observação?
Há experiência e experiência. Da mais simples, da física, a ciência experimental por excelência, requer-se o afastamento cuidadoso de toda a causa de perturbação; e é, portanto, fácil de ver que muito mais cautela se deve ter com as observações de fenômenos complexos como são os de raças humanas.
Além de tudo, os instrumentos de observação, inclusive nós mesmos, são sujeitos a erros e dependem de tantas circunstâncias para nos darem relativa certeza, que já alguém perguntou o que seria da bacteriologia se a nossa ótica estivesse aqui ou ali errada.
Nos grandes sábios, por menos que se tenha lidado com eles, como é o meu caso, só encontramos dúvidas, reservas quanto à verdade das suas observações e resultados gerais; mas, modernamente, com a democratização da ciência e seu fracionamento necessário, não há mediocridade mais ou menos sabichona, neste ou naquele campo de ciência, que não se arrogue infalível.
E, sem medirem as reações que um processo de estudo, visando certo objeto, pode ter sobre outros visando outros objetos, para avaliar o grau de certeza que têm os resultados a que chegaram, vão para adiante afirmando o que entendem e lhes parece ser verdade, num clarão ou num lampejo de sua inteligência.
Se há em nós um fundo de amor, há também um não menor de maldade que faz procurar justificativas honestas para as nossas antipatias sem razão. Toda a educação tem por fim anulá-lo, mas só o consegue lentamente.
Esses senhores que edificaram essas teorias de irremediável desigualdade de raças são tenazes e ferrenhos em remover todas as diferenças desta ou daquela natureza que possam separar o homem do macaco; mas, em compensação, são também tenazes e ferrenhos em acumular antagonismos entre os brancos e os negros. Às vezes mesmo, fazem enormes esforços para justificar, em teorias sociais, ódios de grupos humanos contra outros que, entretanto, têm diversa origem.
Nos Estados Unidos, esse ódio coletivo achou a sua aplicação no negro; como na Turquia, no armênio; como em certas partes da Rússia, no judeu.
Negro lá é tudo que não é branco, e isto vacilando numa antropologia que tem por sábios máximos os condutores de estrada de ferro e uns autores de romances idiotas. Como sabem, há lá, nos caminhos de ferro, carros para brancos e outros para negros. Pois bem: os condutores de trem têm expulsado dos vagões destinados a brancos, como sendo negros, autênticos italianos. Finot conta isto e diz que, por causa, têm havido reclamações diplomáticas.
Depois de vencido o Sul, na Guerra de Secessão, de 1861 a 65, os vencedores trataram de dar todos os direitos políticos aos antigos escravos. Mal saídos da escravidão, sem instrução alguma, por serem maioria, nos Estados do Sul, foram se apossando dos cargos eletivos e outros, de muitas localidades. Como é fácil de ver, os brancos, mais ou menos seus antigos senhores, não viram nisso só o cômico da coisa; foram além: exacerbaram-se, irritaram-se, apelaram para a violência, legalizada ou não, a fim de impedir tão inominável coisa. Nesse semisséculo último, essa primitiva irritação cresceu, desdobrou-se, espalhou- se pela União toda num verdadeiro sentimento de asco, de ódio que o negro atual está longe de justificar, mas que a brutalidade, a limitação de ideias e a pobreza de sentimento da massa popular dos Estados Unidos favorecem sobremaneira a premência, senão a intensificação.
Os linchamentos são crises agudas desse estado de espírito da população yankee branca, que, com aquela mentalidade própria às multidões fanatizadas por isto ou aquilo, procura justificar a seus olhos e aos dos estranhos os seus atos selvagens com supostos e fantásticos atentados à honestidade das mulheres brancas, por parte dos negros.
Seria tolice negar que tal fato se possa dar uma ou outra vez; mas, assim, quase todos os dias, é impossível e nada faz admitir a sua verossimilhança. Um comissário inglês, cujo relatório o Jornal do Comércio publicou há anos, encarregado de estudar essa questão de raças nas Antilhas inglesas, nega-o; e, nós, que vivemos entre pretos e brancos, não podemos afirmar com honestidade que seja isto aqui coisa comum. Ao contrário: as estatísticas e o noticiário dos jornais demonstram que longe do estupro e de violação serem crimes negros, são crimes brancos. Daí linchar etc. etc.
Além ainda. Tenho retalhos de jornais franceses que cortei há anos, para me documentar, noticiando tão repugnantes fatos acontecidos em França e perpetrados por soldados franceses.
Podia transcrevê-los; mas ficarão para o que der e vier.
Com a minha ignorância reconhecida, em falta de alguém mais competente, eu pretendi com essas linhas ligeiras dizer que a Ciência (com C grande) não autoriza, no seu estado atual, nenhuma matança de seres humanos, por serem desta ou daquela raça. Ela as autoriza tanto quanto os Evangelhos autorizaram as fogueiras de Sevilha, no tempo de Torquemada, ou o Saint-Barthélemy.
Representação do mundo, segundo fatalidades e necessidades do nosso espírito, ela é e será sempre uma hipótese sobre ele, à espera de correções de todo o dia. Não se pode ter por isso como infalível e traduzindo exatamente a ordem do Cosmos, a ponto de autorizar crimes monstruosos. Não o pode ser assim no domínio das ciências sociais, como não o é em geometria, coisa muito mais simples, a tal ponto que um geômetra russo, professor em Cazã, Nicolau Lobatchevski, pode organizar uma outra muito diferente da codificada por Euclides, sendo seguido de outros geômetras que organizaram outras, a ponto de o célebre matemático Poincaré desprezar o grau de “verdade” nelas, para só atender ao de “comodidade”. Se assim é em geometria…
Para terminar, a fim de mais uma vez mostrar ao leitor o quanto são precárias essas generalizações dos chamados antropossociólogos, vou-me socorrer de Bouglé e da sua curiosa obra – La démocratie devant la science.
Afirmava-se como artigo de fé (o que hoje não é), depois dos trabalhos de Lamarck e Darwin, mais com aquele do que com este, que os caracteres adquiridos pelo indivíduo se transmitiam por hereditariedade e se fixavam na sua descendência.
O que era afirmado para o campo especial dos estudos daqueles sábios, os antropossociólogos, publicistas, romancistas etc., trouxeram para as organizações sociais e ampliaram, exageraram. Garantiam eles que devíamos voltar ao regime das castas, pois assim as aquisições paternas em dado ofício se transmitiriam aos descendentes sem perdas e, no correr de gerações, o aperfeiçoamento neles seria acelerado! Dado que assim fosse, objeta Bouglé, no fim de algumas dezenas de gerações os seus representantes estariam tão adaptados, em toda a sua organização, para tal ofício ou profissão que seriam perfeitamente incapazes de exercer uma outra.
Esqueceram tais senhores, explica Bouglé, da Índia, onde há desde muitos séculos o regime de castas, ferozmente delimitadas por preconceitos religiosos e penalidades legais. Era um campo de experiência, onde se poderia ver se o filho de guerreiro não seria capaz de ser legista; o filho de negociante não “daria” para militar; etc. etc.
Foi o que o domínio inglês veio mostrar à saciedade, desmentindo os dogmáticos teoristas. Os ingleses, no seu serviço, não reconhecem castas e cada qual pode seguir a profissão que lhe aprouver. Não houve nenhuma impossibilidade individual; e, depois de não sei quantos séculos de disciplina hierática de castas e subcastas, no mundo anglo-indiano, das proveniências mais inesperadas se viram surgir capacidades para atividades diferentes, dignas de atenção dos próprios ingleses. Bouglé cita nomes e não o sigo para não me tornar fastidioso. Está aí em que deu a tal vaga coisa chamada ciência antropossociológica!
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[1] “La conception jadis innocente des races a jeté comme um linceul tragique sur la surface de notre sol” (fr.): A concepção outrora inocente das raças jogou como que uma mortalha trágica sobre a superfície da terra
[2] Dolicocefalia condição de quem tem o crânio com largura menor que o comprimento
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