Robert Kuttner – A questão-chave não é se sua base vai perceber as contradições, mas quando. No curto prazo, ele poder continuar a enganá-la.
Que tipo de presidente será Donald Trump? Temos boas razões para ficar nos alarmar com o seu desprezo pela Constituição e por seus comentários desastrosos sobre a política externa. Mas vamos deixar isso de lado por um momento e olhar para seu suposto populismo em questões econômicas.
Depois de apenas uma semana após sua eleição, apesar de uma campanha baseada em falso populismo, a impressão é que Trump será um republicano de direita bastante convencional, uma exceção possível sendo os acordos de comércio – e outra a questão da infraestrutura.
A questão-chave não é se sua base vai perceber as contradições, mas quando. No curto prazo, ele poder continuar a enganá-la. Por duas razões.
Enquanto se alia às elites financeiras nas questões fiscais, regulatórias e de gastos, Trump pode satisfazer sua base com a carne crua cultural que ela ansiava, sob a forma de repressão contra imigrantes, universalização de controles policiais, aumento das restrições ao voto, adoção de posições de direita nas questões sociais em geral e nomeação juízes de extrema-direita.
Em segundo lugar, Trump pode muito bem produzir um boom econômico no curto prazo. O mercado de ações parece pensar assim.
É muito provável que ele feche um acordo em três partes com o líder da Câmara Paul Ryan e companhia: cortes importantes de impostos; reduções no gasto social, talvez por meio de cortes em food stamps (programa social de auxílio alimentação) e Medicaid (programa de saúde pública); e aumento nos gastos com infraestrutura. Como pessoas como eu vêm escrevendo há muito tempo, este é o momento certo para aumentar as despesas com infraestrutura financiada pelo déficit, porque as taxas de juros estão baixas e não há sinal de inflação.
Suas reduções de impostos serão anunciadas como cortes na oferta, mas na realidade seu impacto será keynesiano. Maiores déficits estimularão a demanda, assim como os gastos com infraestrutura.
O controle republicano da Comissão de Orçamento do Congresso significa que o impacto no déficit dos cortes de impostos pode ser disfarçado com um velho truque conhecido como análise dinâmica. Supostamente, os cortes produzirão tanto crescimento que a perda de receita será compensada.
Os falcões do déficit serão massacrados, mas e daí? Daqui a um ano, a taxa de desemprego pode muito bem estar menor. Trump estará roubando algumas práticas progressistas em certas questões econômicas, e pode funcionar, pelo menos por um ano ou dois.
Geralmente, a primeira eleição de meio de mandato presidencial (para assentos no Congresso) produz um revés para um novo presidente. Mas Trump ainda pode estar em alta em 2018 com a força de um boom keynesiano. Dependendo da sorte, os democratas defenderão cinco cadeiras no Senado em estados vermelhos (tradicionalmente republicanos). As divisões de zonas eleitoras apoiadas pelos republicanos, somada à supressão de eleitores, tornam improvável que os democratas cresçam muito em número de deputados em 2018.
Mas, supondo que tenhamos eleição presidencial em 2020, e sem muita manipulação, penso que o próprio Trump estará então vulnerável – muito vulnerável.
Em 2020, outro democrata de Wall Street não se sairia bem contra Trump. Mas um democrata populista poderia derrotá-lo.
A ala Wall Street-Clinton do Partido Democrata já era. O fato de Chuck Schumer, o derradeiro democrata de Wall Street, ter se unido a Elizabeth Warren no apoio ao congressista Keith Ellison, co-presidente da convenção progressista da Câmara dos deputados, para a presidência do Partido Democrata sugere que até o centrista Schumer sabe em que direção o vento está soprando.
Se você quiser uma amostra de que tipo de progressista é capaz de desafiar Trump, basta lembrar que Elizabeth Warren foi muito mais eficaz em expor as contradições de Trump em 2016 do que a própria candidata democrata.
Mas se tratava do passado de Trump como homem de negócios, sonegando impostos, trapaceando empreiteiros e enganando estudantes na Trump University.
Em 2020, Trump já terá acumulado bagagem como presidente.
Para a maior parte, terá sido uma continuação das políticas que entrega da maior parte dos ganhos para os americanos mais ricos. Um candidato progressista forte deverá ser capaz de evidenciar as contradições entre o que Trump prometeu e o que fez – mostrar Trump como um homem de negócios conservador como outro qualquer, embora destemperado, a serviço principalmente dos ricos.
Esse candidato deverá ser capaz de perguntar às pessoas se suas vidas estão melhores. Trump será a situação. Tendo gozado de controle total do governo por quatro anos, o status quo será ele. “Será ótimo” não soará como em 2016.
Mesmo com um programa de infraestrutura e um boom fiscal relativamente curto em 2017-2018, é difícil ver Trump fazer qualquer coisa que mude fundamentalmente a queda no padrão de vida dos 70% mais pobres. Por causa tanto da automação quanto dos tratados de comércio, é difícil enxergar que um grande número de empregos bem pagos em indústrias volte para o país. Trump não pode balançar uma varinha mágica ou fingir que as agências ambientais não existem para reativar o uso do carvão, porque o gás natural e a energia solar já são mais baratos do que o carvão como fonte de energia elétrica.
Estratégias que podem fazer realmente diferença, como a possibilidade de cursar faculdades sem se endividar, um salário mínimo mais elevado, o ressurgimento da negociação coletiva, são justamente as políticas a que Trump se opõe.
E até 2020, a parte simbólica e cultural do apelo populista de Trump pode estar desgastada. Ele pode deportar mexicanos, discriminar muçulmanos, precarizar os direitos civis dos afro-americanos e até dar legitimidade ao discurso do ódio, tornando os EUA um lugar pior. Mas nada que Trump possa fazer vai trazer de volta o país dos anos 50, quando um único emprego numa fábrica pagava o suficiente para sustentar uma família de classe média, e quando negros e esposas “conheciam seu lugar”.
A primeira figura política recente a popularizar a palavra rigged (manipulado de forma injusta, desajustado) não foi Trump, mas Elizabeth Warren. Na definição de Warren, o sistema é injusto. Não se consegue avançar porque os bons trabalhos estão desaparecendo, o sistema bancário nega crédito sustentável e põe em risco seu imóvel financiado. Seus filhos não conseguem avançar por causa do alto custo de uma faculdade, salários ruins, aluguéis caros, e despesas com os filhos.
A versão de Warren descreve as frustrações dos americanos médio muito melhor do que a de Trump. A eleição não foi manipulada no sentido utilizado por Trump de que a fraude eleitoral era generalizada ou alguém errou a contagem. Ela é manipulada apenas na medida em que os operadores republicanos exigiram identificação eleitoral para tornar mais difícil o voto das minorias e dos pobres, que uma bizarra aliança entre os hackings de Vladimir Putin e a intromissão de James Comey provavelmente roubou uma eleição que Hillary Clinton ainda assim ganhou por quase dois milhões de votos populares.
Dessa forma, em 2020, um populismo progressista ao estilo de Franklin Roosevelt poderia derrotar Trump. A ala Warren-Sanders do Partido Democrata, quem quer que seja o candidato, tem todas as razões para insistir que chegou sua vez, e terão energia para isso. Já em 2016, foram muito mais convincentes como antídoto contra Trump, e serão ainda mais em 2020.
Meu lado otimista precisa acreditar que Trump não transformará os EUA em uma ditadura, mas meu lado realista sabe que a democracia já estava muito enfraquecida para que fosse possível que Trump ganhasse. Nos próximos quatro anos, será preciso lutar em duas frentes: para promover um populismo real, e para defender e reativar a própria democracia. Esperemos que uma luta fortaleça a outra.
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-vulnerabilidade-do-falso-populismo-de-Trump/6/37287
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