Internacional

50 anos dos Panteras Negras: a luta contra o racismo no coração do Império

Tempo de leitura: 25 min

AUGUSTO C. BUONICORE – No dia 15 de outubro comemoramos os 50 anos de criação do Partido dos Panteras Negras. Esta foi um dos principais movimentos de resistência negra dos Estados Unidos na década de 1960 e influenciaria a luta antirracista e anticapitalista em várias partes do mundo. Desde o início, adotou o marxismo como referência teórica da sua ação e logo se transformou no inimigo público número um do FBI. Através do uso sistemático da infiltração policial, espionagem e repressão, o Estado imperialista conseguiu destruí-lo. Dezenas de militantes foram mortos e centenas presos. Contudo, o seu exemplo ficou para as gerações que os sucederam. E, hoje, os “Panteras Negras” são um símbolo da luta antirracista e anticapitalista na América do Norte e no mundo.

Panteras Negras em protesto na Assembléia Legislativa da Califórnia contra o desarmamento dos negros.

Na metade da década de 1950 conseguiu-se derrubar na Suprema Corte dos Estados Unidos as leis segregacionistas (“iguais mais separados”) que impediam o acesso da população negra às melhores escolas, universidades e repartições públicas. Alguns anos depois – entre 1964 e 1965 –, foi aprovada uma série de leis garantindo os direitos civis e o voto a todos os negros. Aquelas haviam sido importantes conquistas democráticas – fruto de uma luta centenária que custou milhares e milhares de vidas –, mas a condição social dos negros, especialmente a dos mais pobres, não melhorou e, em muitos casos, piorou. A igualdade formal (apenas perante a lei) não tinha o condão mágico de eliminar por si só as profundas desigualdades sociais criadas pelo capitalismo. A situação nos guetos estadunidenses continuou explosiva.

Em agosto de 1965 eclodiu uma sangrenta revolta em Los Angeles, no estado da Califórnia. O conflito teve início quando policiais brancos abordaram de forma violenta um jovem negro acusado de “direção perigosa”. Aquela foi a gota d’água para uma comunidade que vivia sendo humilhada e agredida cotidianamente. Após duros confrontos entre a população e as forças de repressão, seguiram-se saques, incêndios de carros e de estabelecimentos comerciais. Aterrorizadas, as autoridades estaduais solicitaram a intervenção da Guarda Nacional. Como resultado desses conflitos, houve: 34 mortos, 1.032 feridos e 3.952 presos. E os prejuízos ultrapassaram a cifra dos 40 milhões de dólares. Este era o clima reinante na ensolarada e liberal Califórnia quando alguns jovens negros começaram a se auto-organizar para defenderem sua comunidade da ação truculenta da polícia.

Nasce o Partido Panteras Negras para Autodefesa

A história dos Panteras Negras começa em 15 de outubro de 1966 na cidade de Oakland, próximo a São Francisco no mesmo estado da Califórnia, quando Huey P. Newton e Bobby Seale (ambos na foto ao lado) criam o “Partido dos Panteras Negras para Autodefesa”. Os dois se conheceram no Merrit College e ali ingressaram numa das muitas associações afro-americanas. Depois disso Newton, cursou Direito e Seale entrou para o exército, onde ficou por quatro anos, passando os últimos seis meses detido por se confrontar com um oficial racista. Newton também conheceria a prisão por oito meses por ter se envolvido numa briga. Ao se reencontrarem, chegaram à conclusão de que era preciso organizar um partido que defendesse a comunidade negra da cidade.

Em pouco tempo a nova organização mudaria a face do movimento negro dos Estados Unidos e influenciaria a luta antirracista e anticapitalista em várias partes do mundo. O objetivo inicial, aparentemente, não tinha nada de revolucionário. Um dia, Huey e Bobby descobriram que podiam usar a própria legislação existente para defenderem-se das sucessivas investidas policiais. Uma dessas leis autorizava qualquer cidadão a ostentar arma de fogo com a finalidade de proteger-se. Outra dava-lhes o direito de acompanhar de perto a atividade policial. Os jovens viram nisso uma brecha que lhes permitiria montar um grupo negro de autodefesa.

Nas suas rondas noturnas, quando presenciavam cenas de abusos do poder, saíam armados dos seus carros e com sua presença inibiam as ações mais truculentas da polícia. Ao serem questionados pelas autoridades, recitavam bem alto os seus direitos. Aqueles que assistiam à cena insólita passavam a espalhar a notícia sobre a existência de um bando de jovens negros corajosos que não temiam enfrentar os policiais racistas.

O programa dos Panteras Negras

O grupo, além de um nome, precisaria de um uniforme que impusesse respeito. Então,os “Panteras Negras” passaram a se vestir com camisas azuis, calças e boinas pretas e casacos de couro.  Eles desde o início tiveram consciência do papel estratégico da agitação e da propaganda na luta pela libertação da comunidade negra. O primeiro e principal documento produzido foi o Programa de 10 pontos (O que queremos), do qual fizeram uma primeira edição de mil exemplares. Nele, se afirmava:

1º Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossas comunidades negras.

2º Queremos pleno emprego para nosso povo.

3º Queremos o fim da ladroagem dos capitalistas brancos contra nossas comunidades negras.

4º Queremos casas decentes para abrigar seres humanos.

5º Queremos educação para nosso povo! Uma educação que exponha a verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.

6º Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.

7º Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas negras.

8º Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.

9º Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras.

10º Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.

Este programa sofreria modificações importantes conforme reforçava a adesão do grupo ao marxismo e ao anti-imperialismo. Entre essas mudanças está a inclusão das “comunidades oprimidas” ao lado da “comunidade negra”, sinalizando que os “Panteras” lutavam pela emancipação de todos os oprimidos e não apenas dos negros. Também ocorreria a fusão de alguns itens e a inclusão de outro: “Queremos o fim imediato de todas as guerras de agressão”, numa clara referência crítica às intervenções do imperialismo estadunidense no terceiro mundo, especialmente no Vietnã.

Estabeleceram uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca pelos militantes da organização, como a proibição do uso de drogas. Também era vetado o uso de bebida alcoólica durante o trabalho partidário. Outro item dizia: “nenhum membro do partido cometerá qualquer crime contra outros membros ou a população negra em geral; não poderá furtar ou tomar do povo, nem mesmo uma agulha ou pedaço de linha”. E: “todos os membros em posição de liderança devem ler no mínimo duas horas por dia”. O trabalho de formação teórica e política era uma das marcas dos “Panteras Negras”.

Uma das primeiras atividades foi fazer uma coleta entre os poucos militantes e alugar uma sede, que foi inaugurada em 1º de janeiro de 1967. Poucos meses depois, criaram o semanário The Black Panther, que teve 537 edições (1967 e 1971), chegando a 150 mil exemplares. Ainda em 1967 esta frente partidária ganhou um importante reforço com o ingresso do escritor e jornalista Eldridge Cleaver.

Os “Panteras” não passavam de um grupo de autodefesa negra local com algumas dezenas de membros. Contudo, um fato os projetaria nacionalmente. No começo de 1967, temendo pela existência de milícias negras, os deputados estaduais da Califórnia passaram a discutir um projeto de lei proibindo a exibição pública de armas por civis, o “Mulford Act”. Ironicamente, até então o direito de andar armado era uma das bandeiras dos conservadores e o governador era justamente o direitista Ronald Reagan.

No dia 2 de maio, dezenas de Panteras Negras, liderados por Seale, realizaram uma demonstração armada no recinto da Assembleia Legislativa, mas por engano entraram no plenário causando pânico entre os parlamentares. Assim, o pequeno grupo de Oakland ganhou as primeiras páginas dos principais jornais do país. De um lado, isso atraiu a simpatia de milhares de jovens negros e, de outro,chamou a atenção dos órgãos de investigação e repressão do Estado, especialmente do FBI.

Logo a mídia conservadora procurou difundir a falsa ideia de que os “Panteras Negras” eram racistas – um racismo às avessas – e que odiavam todos os brancos. Seale, numa entrevista, respondeu a essas acusações infundadas:

“- Quando alguém me diz que sou antibranco, coço a cabeça e penso: antibranco, o que quer dizer com isso?

– ‘Quero dizer que odeia os brancos’, retruca o jornalista.

– Eu, odiar os brancos? Mas o ódio é contra nós.

– É a KKK que me odeia e quer matar-me devido à cor da minha pele. Eu não quero matar nem maltratar ninguém pela cor da sua pele. Sim, há alguma coisa que odiamos. Odiamos a opressão de que somos vítimas. Odiamos os policiais que agridem e matam os negros. A nossa energia queremos consagrá-la não a odiar quem quer que seja em virtude da cor da pele, mas à luta para acabar com a opressão”.

Os “Panteras Negras” não realizaram apenas demonstrações armadas, eles também montaram um eficiente sistema de assistência social, com refeitórios que serviam café da manhã para crianças e adolescentes, clínicas médicas, escolas primárias e cursos de formação política. Fizeram campanhas contra o alcoolismo e as demais drogas, pois acreditavam que contribuíam para a desagregação das comunidades negras. Possivelmente, o exemplo do movimento de libertação da Argélia, vitorioso em 1962, os tenha inspirado. De um grupo exclusivamente masculino, ele logo passou a aceitar o ingresso de mulheres, que chegaram a representar mais da metade da militância. A ativa participação delas – como Kathleen Cleaver, Elaine Brown e Assata Shakur– mereceria uma página especial na história dessa organização.

Os Panteras Negras tinham uma forma de organização original. Seu órgão dirigente denominava-se Comitê Central, seguindo a antiga tradição comunista. Mas este não se organizavaatravés de um secretariado, comandado pelo secretário-geral ou primeirosecretário. Uma concepção militarista (com influência de Régis Debray) e nacionalista-negra (que entende a população negra como uma nação dentro da nação) leva que o cargo principal seja o de ministro da Defesa, assumido por Newton. Seguido pelo presidente (Seale). Depois vinha o ministro da Informação (Eldridge Cleaver), o chefe do Estado-Maior (David Hilliard), o marechal de campo (Don Cox), o ministro da Educação (Ray Massai Hewitt), o ministro da Cultura (Emory Douglas), a secretária de comunicações (Kathleen Cleaver, primeira mulher a assumir um cargo na direção nacional).Em fevereiro de 1968,foi anunciada a integração do Comitê de Coordenação Estudantil da Não Violência (SNCC, na sigla em inglês)aos “Panteras Negras”. Três dirigentes daquela organização passaram a compor o Comitê Central: Stokely Carmichel (primeiro-ministro), H. Rap Brown (ministro da Justiça) e James Forman (ministro de Assuntos Exteriores).

Marxismo e terceiro-mundismo

Inicialmente, o partido era influenciado pelo exemplo de Malcolm X, morto em fevereiro de 1965, mas ao contrário deste não tinha relação como islamismo negro. Sua perspectiva era laica, marxista e terceiro-mundista. O assassinato de Luther King em 4 de abril de 1968 representou um duro golpe nas correntes que advogavam a resistência pacífica contra a opressão à comunidade negra e levou a uma radicalização maior de setores do movimento, inclusive os “Panteras Negras”. Estes passaram por um momento de rápida ascensão, com um aumento significativo da abrangência da sua organização e no número de militantes.

Os “Panteras Negras” foram muito influenciados pelo maoísmo e faziam proselitismo do Livro vermelho do camarada MaoTse-tung, mas também mostravam simpatias por outros revolucionários. Como disse Ray (Massai) Hewitt: “Aprendemos com o presidente Mao, com Ho Chi Minh e temos um profundo carinho por Fidel Castro”. Outro de seus líderes, George Murray, já havia dito: “nosso pensamento se inspira em Che Guevara, Malcolm X, Lumumba, Ho Chi Minh e Mao Tse-tung”. Don Cox, por sua vez, afirmou: “aprenderemos com todos aqueles que anteriormente mantiveram bem alto a chama (revolucionária): Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel, Che, Lumumba e Malcolm X. E continuaremos aprendendo com todos que continuam mantendo essa chama bem no alto: Ho Chi Minh, esses irmãos e irmãs do Al Fatah, essas guerrilhas palestinas, e todos os camaradas em armas, da Ásia e da América Latina”.

Theodore Drapper, no seu livro Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, constata que “até o final de 1969, para os ‘Panteras Negras’, o comunista estrangeiro favorito parecia ser Kim Il Sung, presidente da Coreia do Norte, a julgar pelo espaço (no jornal) dedicado às suas declarações e a seus discursos”. Como podemos notar, a ideologia dos “Panteras Negras” era marcada por certo ecletismo – uma mistura nem sempre bem articulada de diversas correntes marxistas.

A aceitação do marxismo os levou, corretamente, a que fossem contrários às teses de retorno à África, defendidas por grupos minoritários, herdeiros de Marcus Garvey. Para os “Panteras”, o país materno dos atuais negros era os Estados Unidos e não a África. Discordavam de certo nacionalismo pan-africano, que pretendia estabelecer a cultura africana como a verdadeira cultura do negro estadunidense. Newton e Seale achavam que era preciso realizar uma incorporação seletiva do que tinha de revolucionário e progressista na cultura africana (e de outros povos do mundo) e não os seus aspectos atrasados. Newton diria: “O que a nós concerne cremos que é importante reconhecer nossas origens e nos identificarmos com os povos negros revolucionários da África e os povos de cor de todo o mundo. Porém, quanto a retornar aos antigos costumes, não vemos necessidade de fazê-lo”. George Murray, ministro da Educação, seria mais contundente ao considerar o nacionalismo pan-africano “reacionário, insensato e contrarrevolucionário”. Outro artigo do jornal dos “Panteras Negras” ridicularizaria “os tontos que andam por aí declarando que estão ‘simplesmente tratando de ser negros’ por usar turbantes e túnicas e dizem aos negros que eles devem se vincular aos costumes africanos e à herança africana, que deixamos faz trezentos anos, que isto os vai fazer livres”.

Eles não acreditavam que o combate principal era entre a totalidade da comunidade negra e a totalidade da comunidade branca. Eles acreditavam que o motor das transformações sociais era a luta de classes, a luta contra o imperialismo e o capitalismo, que tinham à sua cabeça o governo e as classes dominantes dos Estados Unidos. A derrota do racismo e da opressão estava vinculada diretamente a uma vitória nesse campo.

O presidente dos “Panteras”, Bobby Seale, afirmaria: “Os nacionalistas culturais e os Panteras estão em conflito em muitas áreas. Basicamente, o nacionalismo cultural vê o homem branco como opressor e não faz distinção entre brancos racistas e brancos nãoracistas, como os Panteras fazem. Os nacionalistas culturais dizem que o negro não pode ser inimigo do povo negro, enquanto os Panteras acreditam que os capitalistas negros são exploradores e opressores. Embora os Panteras Negras acreditem no nacionalismo negro e na cultura negra, eles não acreditam que levarão à liberdade negra ou à derrubada do sistema capitalista, e são, portanto, ineficientes”.

Seale reafirmaria essas ideias em outras oportunidades: “não combatemos o racismo com racismo. Combatemos o racismo com solidariedade. Não combatemos o capitalismo explorador com o capitalismo negro. Combatemos o capitalismo com o socialismo de base. Não combatemos o imperialismo com mais imperialismo. Combatemos o imperialismo com o internacionalismo proletário”. Referindo-se à relação entre racismo e dominação capitalista, insistiria: “o racismo e as diferenças étnicas permitem que as estruturas de poder explorem as massas trabalhadoras, porque é a chave através da qual mantém o controle. Dividir o povo e submetê-lo é o objetivo da estrutura de poder (…). É realmente a classe dominante, pequena e minoritária, que domina, explora e oprime os trabalhadores e o povo laborioso (…). Então, esta não é de todo uma luta racial (…). Na nossa visão é uma luta de classes entre a massiva classe trabalhadora e a pequena minoria da classe dominante, exploradora e opressora. Deixe-me enfatizar novamente: acreditamos que a nossa luta é uma luta de classes e não uma luta racial”.

Era essa concepção que permitiria aos “Panteras Negras” fazerem alianças com outros grupos radicais e socialistas, compostos predominantemente por brancos, como o Partido Comunista dos Estados Unidos, sem se subordinarem a eles. Muitas vezes se dirigem ao conjunto do povo e não apenas aos negros. “O Partido dos ‘Panteras Negras’ é um partido do povo. Estamos fundamentalmente interessados em uma coisa: libertar todo o povo de todas as formas de escravidão, com o objetivo de que cada homem seja seu próprio dono”.

Como vemos, os “Panteras Negras” – como partido revolucionário e socialista – não se restringia à defesa dos negros estadunidenses, pois sabiam que – apesar de mais oprimido – representavam apenas 12% da população. Por isso, incorporaram bandeiras mais amplas. Estiveram na linha de frente da campanha contra a guerra do Vietnã, conscientizando os jovens de que aquela era uma guerra imperialista e não devia ser apoiada. Fizeram frentes de ação política com várias entidades, como a dos “Estudantes por uma sociedade democrática”. Contribuíram para a formação do “Partido da Paz e da Liberdade” – uma organização multiracial–, que lançaria Eldridge Cleaver como candidato à presidência da República nas eleições de 1968, obtendo 50 mil votos.

Em julho de 1969, os “Panteras” patrocinaram a Conferência nacional pró-frente única contra o fascismo. Dela, participaram representantes do Partido Comunista dos EUA, e entre eles o doutor Herbert Aptheker, especialista na história dos negros americanos, que fez um longo discurso. Diante das críticas feitas por alguns grupos negros, Seale afirmou que os comunistas haviam trabalhado mais pelo sucesso da conferência contra o fascismo que qualquer outra organização e, por isso, garantiram o direito de estarem ali e utilizarem a palavra. Isso, é claro, não eliminava as diferenças teóricas e políticas entre as duas organizações de esquerda, que mantinham entre si relações respeitosas. Sabiam que o inimigo era outro.

Por isso, chegaram mesmo a propor a constituição de “um partido novo, um novo partido dos trabalhadores, ou como o queiram chamar-lhe (…) uma frente de libertação norte-americana, composta por todos os povos dessa nação”, afirmou Seale.

A posição de Newton e Seale em fazer alianças com organizações radicais e socialistas brancas – inclusive em constituir um partido de frenteúnica – fez com que surgisse uma divergência no interior da organização. Estas, por exemplo, foram as causas da demissão de Carmichael e de outros militantes da direção dos “Panteras Negras” em julho de 1969. “Não posso aprovar politicamente as alianças realizadas pelo partido, porque a história dos africanos que vivem nos Estados Unidos tem demonstrado que qualquer aliança prematura com radicais brancos tem levado à completa submissão dos negros aos brancos, mediante o controle direto e indireto da organização negra”, declarou Carmichael. Em 1966, quando ainda era presidente do SNCC, ele havia afastado todos os estudantes radicais brancos e agora via o seu novo partido se aproximar desses mesmos estudantes e propor-lhes a construção de uma organização política de frenteúnica. Seale rebateu afirmando que Carmichael tinha um temor paranoico em relação à militância radical branca, fruto das dificuldades encontradas no passado no interior da SNCC. Os “Panteras”, que tinham outra história, não carregavam tais preconceitos.

Num discurso, Newton chegou a afirmar: “Houve um tempo em que acreditávamos que só os negros eram colonizados. Porém agora creio que devemos mudar o nosso discurso em certa medida, porque todo povo norte-americano tem sido colonizado, se consideramos a exploração como um efeito do colonialismo, já que esse povo é explorado”. O líder dos “Panteras” amalgamava os conceitos de exploração e colonização. Assim, todos os trabalhadores brancos e negros eram explorados e, portanto, colonizados pelo capitalismo na sua fase imperialista. Uma argumentação original, embora bastante imprecisa.

Novamente, contra aqueles que acreditavam ser possível constituir um cinturão de Estados negros e socialistas na América do Norte, Newton argumentava que essa experiência não poderia sobreviver se o restante dos Estados Unidos continuasse capitalista.  “Atualmente, o Partido dos Panteras Negras opina que não queremos estar numa situação típica de enclave, pois ficaríamos mais isolados que estamos agora”. Ou, como afirmaria Newton: “Não poderíamos (vencer) somente na colônia (referindo-se à comunidade negra americana), porque seria como cortar um dedo de uma das mãos, pois elas continuariam funcionando (…). Para vencer o monstro é preciso vencê-lo em sua totalidade”.  Para isso, era preciso unificar a luta dos “radicais brancos e brancos pobres” dos Estados Unidos para realizar uma revolução socialista em escala nacional e internacional.

Em um dos discursos feitos na Conferência antifascista de Oakland, Seale afirmaria: “Não dizemos que a autodeterminação do povo negro nas comunidades negras seja incorreta. É necessária. Porém, não estamos dizendo que o povo negro é uma nação só por ser negro. Dizemos que é uma nação porque sofre essa mesma opressão econômica; porque, em segundo lugar, tem uma característica psicológica básica em sua forma de reagir ante o meio que vive; terceiro porque eles se explicam pelo que está ocorrendo; pois o povo negro na comunidade negra compreende o genocídio; porque a linguagem, as características psicológicas, as condições econômicas e (4) a localização geográfica em que o povo negro vive se definem geralmente como guetos. Esta localização geográfica, juntamente com outros pontos, define o povo negro como nação (…). Se estamos divididos e cindidos é porque estamos colonizados, porque os povos do terceiro mundo estão colonizados. Isto é o que define uma nação. Não nos baseamos no racismo. Entendemos o nacionalismo nos termos do que é uma nação e compreendemos o internacionalismo”. Neste ponto a ideologia dos “Panteras” demonstra suas contradições, pois algumas vezes nega o nacionalismo negro e em outras assume alguns dos seus pontos centrais: como a ideia de que os negros estadunidenses formam uma nação à parte no interior da América do Norte.

O Império contra os Panteras Negras

Em 1968 os “Panteras” possuíam filiais em 20 cidades e dois anos depois esse número subiria para 45 – e calcula-se que no seu auge tenha chegado a5 mil membros –, tornando-se um dos movimentos da esquerda revolucionária mais importantes dos Estados Unidos. É justamente desse período a afirmação de Edgard Hoover, diretor do FBI, segundo a qual eles representavam a maior ameaça interna ao país. Desde então os aparelhos de controle e repressão dos Estados Unidos colocaram como uma de suas tarefas principais a erradicação dessa organização, com processos fraudulentos, prisões e mesmo execuções extrajudiciais. Contra ela foi utilizado o CounterIntelligence Program (COINTELPRO) – um programa de contrainteligência que tinha o objetivo de coordenar o trabalho de infiltração de espiões e provocadores nas organizações de esquerda e a criação de um esquema de contrainformação visando a isolar e desmoralizar as organizações-alvo de sua ação.

Na metade da década de 1970 – quando o grupo praticamente não mais existia –, o próprio Congresso estadunidense formou uma comissão de inquérito que constatou os abusos cometidos pelo FBI e outros órgãos governamentais contra os “Panteras Negras”. Recentemente, por exemplo, se descobriu que um dos ativistas que fornecia as armas ao grupo, o nipo-americano Richard Masato Aoki, era na verdade um agente infiltrado.

Apenas nos primeiros quatro anos de existência 34 de seus militantes foram assassinados – a maioria em supostos confrontos com a polícia. Em 28 de outubro de 1967, Newton se envolveu num conflito com alguns policiais que levou à morte de um deles. Julgado por um tribunal composto exclusivamente por brancos,ele foi condenado em setembro de 1968 a 15 anos de prisão. Houve a partir de então uma grande campanha para que fosse libertado e, em agosto de 1970, ele acabou sendo solto após novo julgamento.

No dia 6 de abril de 1968, contra a vontade da direção nacional, uma ala dos “Panteras Negras”, comandada por Cleaver, resolveu realizar uma ação armada contra policiais num protesto contra o então recente assassinato de Luther King. Após o confronto, que resultou em vários feridos, Cleaver e Bobby Hutton – de apenas 17 anos – se refugiaram no porão de uma casa e rapidamente foram cercados. Cleaver, temendo por uma execução sumária, recomendou que tirassem as roupas e saíssem nus, demonstrando que estavam desarmados. Contudo, Bobby tirou apenas a camisa e ao sair do esconderijo foi morto com vários tiros, inclusive pelas costas. Ele foi o primeiro membro do partido a ser assassinado pela polícia. Cleaver foi preso e no transcorrer do processo fugiu para Cuba, depois seguiu para Argélia, onde montou um escritório de relações internacionais do grupo.

Um ano depois do assassinato de Hutton, 21 dos principais líderes dos “Panteras Negras” em Nova Iorque foram presos e falsamente acusados de terrorismo. A fiança estabelecida pelo juiz foi astronômica. Esta foi outra estratégia para enfraquecer financeiramente a organização, que era obrigada a fazer grandes esforços para conseguir recursos visando a pagar as despesas das dezenas de processos que eram abertos. O processo contra os 21 durou mais de um ano e foi concluído pela absolvição dos réus.

No mês de setembro de 1969, em meio à campanha para libertar Newton, Bobby Seale foi preso em Chicago sob a acusação de conspirar para um motim e de ter assassinato um suposto informante do FBI dentro de sua organização. Diante de sua postura inconformista no tribunal, o juiz determinou que fosse amordaçado e amarrado na cadeira. Uma atitude despótica que ocasionou protestos em todo o país. Nesse ínterim – estando Newton e Seale presos e Cleaver exilado–, David Hillard tornou-se presidente interino, mas mesmo ele não escapou das perseguições da justiça.

Outros casos escandalosos foram os assassinatos de Fred Hampton e Mark Clark, dois líderes da atuante seção partidária no estado de Illinois, ocorridos em 5 de dezembro de 1969. Foram executados dentro do apartamento de Hampton, possivelmente enquanto dormiam. Poucos meses antes de ser assassinado – num comício em defesa da liberação de Newton –, Hampton havia dito:“vocês podem prender um revolucionário, mas não podem prender a revolução”. Agora eles não apenas prendiam, mas matavam.

Quatro dias depois do duplo homicídio, 300 membros da SWAT iniciaram um feroz ataque contra o escritório dos “Panteras Negras”. O confronto durou mais de cinco horas e três pessoas ficaram feridas. Nesse mesmo período, várias outras sedes foram atacadas com igual furor. Ninguém tinha mais dúvidas de que ali se travava uma guerra.

Toda essa monstruosa operação de cerco e aniquilamento levada a cabo pelo Estado surtiu efeito. Ocorreram vários rachas internos – uma parte deles incentivada por infiltrados e pelo pessoal da contrainformação – e muitos militantes, impactados pelas sucessivas derrotas, abandonaram o grupo. No ano de 1971, Cleaver e vários ativistas, especialmente de Nova Iorque, romperam com a direção. E também um grupo de tendência militarista funda o Exército Negro de Libertação, que organizou várias ações armadas.

A última grande campanha dos “Panteras Negras” ocorreu em 1972, quando o que restava da organização em todo o país foi mobilizado para eleger Seale à prefeitura de Oakland. Para isso, fecharam as sedes em várias cidades importantes e transferiram os seus militantes para aquela batalha eleitoral local. Algo que lhes trouxe grande prejuízo organizativo, do qual o grupo jamais se recuperou. Visando a alcançar o seu objetivo eleitoral, adotaram um discurso menos radical e até se ligaram ao Partido Democrático. Apesar das concessões e dos enormes esforços empreendidos, os “Panteras” não elegeram nem o prefeito nem a sua candidata à vereadora, Elaine Brown.

A grave derrota levou ao aprofundamento da crise interna. Seale e Newton se desentenderam sobre o rumo do movimento, e o primeiro renunciou à presidência. Nesse momento, o Partido dos Panteras Negras estava reduzido a algumas dezenas de militantes. Para complicar a situação, Newton – acusado de assassinar uma prostituta – foi obrigado a fugir do país e se abrigar em Cuba em agosto de 1974, deixando Elaine Brown no seu lugar. Newton voltou em 1977 durante a administração do presidente Carter, quando o clima político havia desanuviado – sendo julgado e absolvido. Contudo, acabou sendo assassinado por um pequeno traficante em 22 de agosto de 1989. Com esse episódio – simbolicamente – fechava-se tragicamente mais uma página heroica da história de luta dos negros estadunidenses.

Bibliografia

FRANKLIN, John Hope; MOSS JR., Alfred A. Da escravidão à liberdade: a história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989.

DRAPER, Theodore. Nacionalismo negro em Estados Unidos. Madri: Alianza Editorial, 1972.

JOHNSON, Ollie A. Explicando a extinção do Partido dos Panteras Negras. In:Cadernos CRH, n. 35, jan.-jun. 2002, Salvador.

PETERSON, John.Que caminho seguir para os trabalhadores e jovens negros? In:Esquerda Marxista, 2014.

ROCQUES, Marcel. Há uma esquerda nos EUA? Lisboa: Estampa, 1971.

Filmografia

Panteras Negras; direção de Mario Van Peebles (1995)

Os Panteras Negras: vanguarda da revolução;direção de Stanley Nelson (2014)

Panteras Negras: todo poder ao povo; direção de Lee Lew-Lee (1997)

http://www.grabois.org.br/portal/artigos/153094/2016-10-10/50-anos-dos-panteras-negras-a-luta-contra-o-racismo-no-coracao-do-imperio

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